Bel Pedrosa/Divulgação

 

Em 2008, em poucos meses,um grupo de leões devorou 26 pessoas na Vila de Palma, no norte de Moçambique. O biólogo e escritor Mia Couto acompanhou o caso de perto: ele estava lá, a serviço, quando aconteceu o primeiro ataque. E como a empresa em que trabalha havia mandado diversos outros funcionários à região, tornou-se necessário contratar caçadores para protegê-los. A ordem era eliminar as feras o quanto antes. Mas o que se seguiu foi um período de terror e dificuldade, em que se fundiram medo, mistério, violência e superstição. Um drama que, a Mia Couto, inspirou a escrita de seu livro mais recente, A confissão da leoa, que trata tanto de conflitos sociais gravíssimos quanto do esboroamento das fronteiras entre humanidade e mundo animal.

 

Na versão ficcional de Mia, as vítimas são sempre femininas. E o que começa como narrativa aparentemente aventuresca acaba por se revelar um romance sobre a terrível condição das mulheres na sociedade africana de hoje. Na trama, uma expedição é enviada ao local dos incidentes, a aldeia Kulumani. Juntos, seguem o caçador Arcanjo Baleiro, o escritor Gustavo Regalo, o administrador do distrito, Florindo Makwala, e sua esposa, Naftalinda. E é do conflito entre esses personagens e os aldeões em perigo, todos supostamente interessados no bem comum, no extermínio do mal que os leões representam, que nascem a originalidade e a força política do romance de Mia Couto.

 

Na entrevista abaixo, o autor fala da gênese de sua nova obra. Conta do medo que sentiu de ser devorado. Discorre sobre o poder transformador da biologia e da literatura, as cicatrizes da guerra e do colonialismo no seu continente, suas responsabilidades como cientista e seu amor por Moçambique. E ainda traça um paralelo entre as atividades de um escritor e um caçador. Ambos se dissolveriam naquilo que passam de si para sua caça ou sua criação, diz ele. “O prazer da escrita está nessa transferência total para a vida da personagem, tal como o prazer da caça está no modo como o predador morre sempre um pouco na presa que abate.”

 

Não sei se você concorda, mas as feras predadoras desempenham um papel importante em nossas vidas: elas devolvem ao humano a consciência de ser carne. Lembro de ler que você, ao receber a notícia da morte da primeira vítima dos leões na Vila de Palma, sentiu medo de ser devorado (“o primeiro medo que nos percorre enquanto espécie”). Foi a primeira vez que sentiu esse medo? Como ele se manifestou? Foi o que o moveu a escrever (ou reescrever) esta história?

Como sabe, sou biólogo e exerço a profissão de ecologista em Moçambique. Há quatro anos, eu estava numa pequena aldeia costeira do Norte do país quando começaram a ocorrer ataques de leões a pessoas. Vieram-me acordar de madrugada com a mensagem lacónica de que estava “ali perto um homem morto”. De fato, na berma de um atalho jazia um homem que regressava essa noite à casa e adormecera, embriagado, encostado a uma árvore. Estava completamente lacerado, o corpo fragmentado em pedaços. Eu já sabia que havia leões nas redondezas, mas o fato de eles terem ultrapassado essa invisível fronteira do território dos homens implicava um desrespeito que poderia ser repetido nas noites seguintes. E assim aconteceu: eu escutava-os rondando as nossas tendas e um medo profundo me roubava o sono. Esse medo era um sentimento primitivo, uma memória de um outro tempo em que a nossa fragilidade estava mais patente. Eu sou um homem urbano, nasci e cresci na modernidade, mas não tinha defesa contra um medo mais antigo que a própria humanidade. Converter aquele horror em história foi a minha primeira defesa. E comecei ali mesmo, sob a luz de uma lanterna, a escrever em papéis soltos. Não era exatamente a escrita, mas a história que me interessava. Porque essa ficção erguia paredes onde me resguardava quando escutava os felinos à noite. Aos poucos percebi que os verdadeiros bichos não eram os leões, mas os monstros que há séculos moram dentro de nós. É ótimo quando estes sentimentos profundos nos arrancam da nossa zona de conforto e nos confrontam com a nossa verdadeira dimensão de seres pequenos, com menos poderes que nós próprios nos atribuímos.

 

O início de A confissão da leoa sugere ao leitor uma possível narrativa aventuresca, gênero comumente associado ao gosto masculino. Mas, aos poucos, o livro se revela diferente. Trata, entre outros assuntos, da condição complicada em que vive a mulher moçambicana e, de forma geral, todas as mulheres da África e do mundo. Essa sugestão de aventura foi proposital? A ideia o seduziu desde o começo do trabalho?

Quando comecei a escrever, ainda sem um propósito narrativo claro, me apercebi do risco de escrever uma história estereotipada de feras e caçadas, uma história que apelasse para o clichês mais errôneos e saturados sobre uma certa África. A solução seria escrever algo vindo de dentro da aldeia, uma ficção que caminhasse a partir da interioridade desse lugar e dessa gente que normalmente figuram apenas como cenário de histórias feitas por europeus (ou por africanos que querem agradar ao imaginário europeu). E o que fui percebendo — e o que me foi agradando — foi que a aparição dos leões devoradores de pessoas apelava para uma subversão de fronteiras e uma mistura de mundos: a fronteira entre a humanidade e a animalidade, a percepção da ameaça do que é estranho à ordem do pequeno povoado e tudo aquilo que representa a ordem de um Estado moderno e centralizado. Assim, os receios dos aldeões não eram apenas das bestas que rugiam de noite. Os leões (que eram vistos como pessoas incorporando a alma de animais) traduziam apenas o modo como aquela aldeia receava ser devorada pelo mundo e pelo tempo.

 

Seu nome de “adoção”, Mia, está ligado à relação afetiva que você mantinha com os gatos, na infância. O que restou desse amor de menino? Ele possui, hoje, algum equivalente adulto em relação à sua maneira de ver e compreender os animais?

Formei-me em Biologia animado por uma paixão não exatamente pelos bichos, mas fascinado pela relação que fomos inventando com os animais. Esses animais podem ajudar a nos constituirmos humanos. Para isso, temos que olhar a Natureza como algo que não está fora de nós, mas que constitui parte profunda do que somos. Os movimentos ambientalistas tiveram o mérito de trazer o tema da “natureza” para mais perto do nosso cotidiano. A Natureza como algo que sentimos o dever de defender. Por vezes, a mensagem ambientalista apela para um sentimento de culpa que, no fundo, legitima a ideia de sermos os grandes responsáveis, os zeladores do planeta. Mas o que falta empreender é uma outra percepção: a natureza está dentro de nós. Não somos o centro do meio ambiente, ninguém nos nomeou curadores do universo. O que está errado não é o Homem enquanto espécie, é um sistema civilizacional que nos coloca em causa. O que carecemos é, sobretudo, de um outro entendimento da vida e do mundo. De uma relação que não seja tão predadora e centrada na ganância do lucro.

 

Numa entrevista recente, você disse que escreve “sobre o que o aflige como cidadão”. Também disse que suas “militâncias mantêm-se a favor de um mundo melhor”. Você acha que essa é uma das “vocações”, ou potencialidades, da literatura? E o que você escreveu já teve esse poder de transformar o mundo, ou parte dele? Como?

Não tenho essa pretensão. A minha escrita muda-me a mim. De vez em quando, há pessoas que me dizem que a sua vida mudou depois de lerem um certo livro meu. Não creio que seja verdade. O que a escrita pode suscitar é apenas o desejo da mudança, a crença na possibilidade de sermos outros e de vivermos outras vidas. E isso já é imensamente subversivo, porque impera hoje a ideia de que precisamos nos conformar como meros consumidores anónimos, subservientes ao mercado e cuja intervenção de cidadania está reduzida a meros votantes num sistema político de que todos descremos.

 

Num texto escrito para o centenário de Ibsen (publicado no livro E se Obama fosse africano?), você narra um episódio comovente envolvendo o General Sebastião Mabote, no qual ele tenta, sem sucesso, durante as celebrações do Dia da Mulher, fazer uma multidão masculina gritar: “Somos todos mulheres!”. O texto também fala sobre o medo profundo que os homens têm de viver num futuro feminino, e diz que Ibsen e todos os outros grandes escritores sempre trabalharam contra esse pavor. Esse tipo de ideal também o orienta como escritor?

Uma grande parte dos homens de hoje aceita, mesmo que por vezes hipocritamente, a ideia que a mulher deve ter os mesmos direitos. Alguns estão prontos a apoiar a luta contra a discriminação da mulher. O que parece ser difícil para muitos dos homens é aceitar a pluralidade de seres que os habitam. Nós somos entidades plurais, uma assembleia de criaturas que incluem mulheres, crianças, homens, velhos, gente de todo o tipo, fé e raça. O cantor brasileiro Chico César compôs uma canção muito bela em que ele diz: “Já fui mulher, eu sei”. O problema é que muitos de nós não sabemos dessa condição.

 

Em determinado trecho de A confissão da leoa, a personagem Mariamar escreve: “Quem deixa de ter esperas é porque já deixou de viver”. Quais são as suas esperas?

Uma coisa é esperar, outra é ficar à espera. Há muito que deixei de ficar à espera. As mudanças que quero ver acontecer no mundo só acontecerão se fizer algo. A mudança pode ser mínima, mas a atitude nossa não pode ser a da aceitação. Pode suceder que não saibamos o que fazer. Mas isso não se pode traduzir numa cruza de ambos. Eu mantenho a mesma disponibilidade para brigar por aquilo que espero. Aprendi que não se trata de uma questão de esperança, como se a esperança fosse um substituto da fé. É uma questão de empenho, de manter a alma para buscar por um mundo mais justo e mais belo.

 

Ainda Mariamar: “Toda terra pequena tem braços grandes. Por muito que partamos, nunca dela saímos”. De que tamanho são os braços de Moçambique? Você está preso ao país? Como escritor e cientista, sente-se responsável pelo seu presente, pelo seu futuro?

Eu estou condenado ao meu país e adoro essa condenação. Alguém disse que o que faz alguém ser escritor é o ser-se de um tempo e de um lugar. Estou sobretudo amarrado à minha infância, que foi um momento infinito, uma aprendizagem tão cheia de felicidade que eu ainda hoje moro nesse tempo, no meu pequeno bairro de infância, que era maior que o mundo inteiro. Como escritor e como cientista (e eu não vejo grande diferença entre uma coisa e outra), tenho a responsabilidade de não me tomar muito a sério a mim mesmo e àquilo que faço. Tudo o que faço não é, em rigor, um trabalho, uma missão. É sobretudo um prazer, um labor de brincriante, uma brincriação. Por esta razão, nunca dei conta de ser adulto.

 

Em seu diário, o caçador Arcanjo Baleiro anota que o escritor que o acompanha, Gustavo Regalo, o irrita por “seus ares de intelectual, seu bloco de notas em riste, a incapacidade de ficar calado”. Mas, para um escritor, é possível ou preferível calar-se? Como você, também cientista e jornalista, lida com isso?

Aprender a ficar calado é, a meu ver, algo vital. Calado para escutar, para estar disponível para outras vozes. Um romance anterior meu, que aqui se chamou Antes de nascer o mundo, teve o título na França de Afinador de silêncios. É um elogio ao silêncio, a esse silêncio que não é simples ausência, mas através do qual se escutam vozes que não são audíveis senão numa profunda harmonia com o mundo. Esse silêncio permite-nos escutar a nós mesmos. Umberto Eco chama a atenção para a proliferação de ruídos em que hoje nos rodeamos: os restaurantes têm música e televisão, viajamos com auscultadores, não resistimos a ficar tempo sem usar desnecessariamente os celulares.

Eu acho que Moçambique me dá uma lição todos os dias: o modo como num diálogo há espaços e pausas para o silêncio. Eu vejo isso nas conversas da rua, nos cerimoniais de saudação, em todos os momentos de retórica. Entre os interlocutores há uma deixa, cada um sabe o tempo da sua fala e do silêncio, sem que haja interrupção ou sobreposição de discursos. Também não existe aquilo que é muito comum na Europa, que é o receio do momento em que todos se calam e esse silêncio surge como um vazio que é urgente preencher. Aqui o silêncio está sempre cheio.

 

Quando Arcanjo Baleiro, em meio à expedição de caça aos leões, diz que seu “olhar percorre as paisagens como um fogo lambendo os capins”, revejo a figura do “incendiador de caminhos”, que você retratou numa conferência de 2006. Há alguma relação entre este caçador relutante e aqueles visitadores, que queimam os caminhos por onde andam, querendo, de certa forma, tomar posse do mundo que fazem arder?

Se existe, eu não pensei nela. Na realidade, os caçadores são famosos pelo modo como inventam e amplificam as suas histórias, os seus casos heróicos. Mas eu creio (e isso está patente neste livro) que não há uma grande diferença entre o ato de caçar e o ato de inventar uma narração. Existe, nos dois casos, uma mesma relação em que o autor e o caçador se dissolvem naquilo que realizam, se anulam e se transferem de si mesmos para as personagens ou para as presas. O prazer da escrita está nessa transferência total para a vida da personagem, tal como o prazer da caça está no modo como o predador morre sempre um pouco na presa que abate.

 

Para o personagem Adjiru, contar histórias é “deitar sombras no lume”. E para você? Contar histórias não teria uma função, quem sabe, iluminadora?

Não sei se se pode falar em “função” quando se fala de arte. Não porque a arte não cumpra um papel social, mas porque ela deve escapar a uma visão funcional de si mesma. Acontece o mesmo com o amor. Não tem função. O sexo, sim, tem uma função. O amor serve apenas para amar. E amar não é um serviço. Está acima desse critério funcional.

 

Gustavo Regalo fica intrigado com o preceito, improvisado por Baleiro, de que com a mão esquerda não se mata (por ser a que segura as crianças no colo). Essa ideia, ótima, foi criada exclusivamente para a narrativa ou você realmente a colheu em algum lugar?

Creio ser minha. Mas talvez seja inspirada por velhos preceitos que repartem o nosso corpo num lado santo e num outro pecador. O que é seguramente meu é o motivo invocado, o facto dos filhos fazerem colo no nosso lado esquerdo, o lado do coração, o lado em que a maior parte das mães apoia os seus bebés.

 

Durante todo o romance, o caçador dirige ao escritor certo desprezo. Não o vê com bons olhos e o trata como falastrão, “ave de rapina”, “necrófago” a “debicar desgraças, por entre sobreviventes cujo luto é o silêncio”. Isso é uma espécie de autocrítica, uma crítica à categoria ou você discorda de seu personagem? Nesse sentido, o que a guerra pode ensinar a um escritor?

Gosto da pergunta. Na realidade, eu tenho uma certa guerra com o meu lado escritor. Raramente me vejo como escritor e quase nunca me represento nesse papel de “autor literário”. É evidente que há entre os escritores gente de todo tipo. Alguns dos meus maiores amigos são escritores. Mas é possível fazer alguma generalização, e não me sinto bem como alguns escritores, que estão cheios de si mesmos e se levam muito a sério. Creio que existe, antes disso, uma certa sacralização do ato de criar histórias, uma visão romântica que converte os artistas em seres especiais.

 

Respondendo mais concretamente à sua pergunta; a guerra não foi feita para ensinar, mas para anular a sabedoria dos outros. O que aconteceu é que para resistir a essa anulação nós somos forçados a aprender da nossa condição humana aquilo que provavelmente não aprenderíamos em situações de normalidade social. Vivi mais da metade da minha vida em guerras e cada um delas foi diferente. A última demorou 16 anos e aniquilou um milhão de pessoas. Imagino que é difícil um brasileiro comum fazer ideia do que é atravessar esse deserto de horror e desespero. Uma resposta é procurar humanidade nos mais pequenos gestos. Descobrir, por exemplo, que temos vizinhos e cada um deles tem uma história. Essas histórias eram de resistência, de resposta ao caos, e ajudavam a procurar saídas nesse cerco em que tudo parecia desmoronar.

 

Arcanjo Baleiro diz: “Qualquer coisa na escrita me sugere o prazer da caça. No vazio da página se ocultam infinitos sobressaltos e espantos”. Mas ele também confessa não suportar o peso de sua própria alma, revelando que caça porque só assim pode se sentir vazio, “isento de ser homem”. É o oposto do que ocorre com um escritor?

O escritor precisa sentir as duas coisas: deixar de ser homem, estar isento da sua própria humanidade e, ao mesmo tempo, trocar-se com os outros, de modo a estar disponível para nascer outras vezes e se espantar como um menino que descobre a primeira vez das coisas.

 

Quando acompanhei o caçador eu verifiquei o quanto eu estorvava o seu esforço de procurar caminhos em silêncio e emboscar a presa. E sentia uma imensa inveja do modo como aquele homem sabia ler a terra, ler os sinais dos bichos e os silêncios do mato. Sentia-me um analfabeto em relação a um saber que foi essencial para a sobrevivência da nossa espécie. Muito do que somos hoje resulta desses milênios em que fomos caçadores. Foi na caça que aprendemos muito do nosso sentido de cooperação, da nossa capacidade de repartir silêncios e inventar histórias sobre caçadas. Os nossos deuses primeiros e mais duradores foram os que nos protegiam dos perigos dos bichos e nos convertiam, ao mesmo tempo, em irmãos desses mesmos bichos.

 

Nunca fui amigo da caça. Mas muitos dos meus amigos são caçadores. Neles reside esse insolúvel enigma: amam os bichos, mas não resistem a dar-lhes caça. Em todos eles reina essa mesma ética: nós não matamos. Nós caçamos.

 

Ao escrever A confissão da leoa, você buscou fugir dos estereótipos ligados às histórias de caçada e a vários preconceitos relacionados a uma noção de África selvagem. Narrativas como as do Coronel J. H. Patterson, famoso matador de leões comedores de gente, são muito conhecidas no continente? Me parece que, fora da África, a ideia que se faz dos leões é sempre mediada por esse tipo de clichê.

Dentro da África existem todas as concepções sobre a África, sobretudo aquelas que foram criadas fora da África e contra a África. Essa visão romântica e exótica do continente é reproduzida nas cidades por jovens que veem na televisão a reedição de uma imagem folclórica de si mesmos. Poucos terão lido as narrativas de Patterson, mas hoje a replicação da visão colonial já dispensa os colonizadores. Os próprios africanos, membros das elites, assumiram esse papel. A colonização tornou-se indígena, naturalizou-se e internou-se nas hierarquias dos países periféricos.

 

O que se passa é que, nas cidades ou nas zonas rurais, persistem dualidades e versões contraditórias do que somos enquanto africanos. Mas isso não é algo típico da África. O próprio Brasil encerra essas dualidades. Persiste o chamado Brasil profundo, onde a onça-pintada poderia fazer o papel do leão na narrativa romântica de uma certa África. O problema não é aceitar a existência desses mundos, mas pensar que essa África ou esse Brasil sejam mais autênticos, mais genuínos ou mais puros. Todos estes segmentos da identidade africana (ou brasileira, se quisermos) são hoje mestiçados, e se são “genuínos” é por causa da sua “impureza”, da sua diversidade.

 

O caçador é um homem viciado em milagres. Qual o vício do biólogo e do escritor?

O grande vício do escritor é ser outros, transmutar de identidade, viajar por outras vidas. O biólogo tem um vício bem próximo, que é o entender-se como sendo apenas uma criatura numa teia de outras criaturas que, por mais feias e aparentemente distantes, são sempre nossos parentes. Um biólogo estuda, logo no princípio da sua formação, o princípio da ontogenia, que ilustra como se organizam os processos da gênese do nosso corpo. Esse aprendiz de biólogo não pode deixar de ver que, no nosso desenvolvimento fetal, fomos peixes, anfíbios, répteis, e só depois mamíferos. Tivemos guelras, nadamos e respiramos dentro de um oceano privado que era o ventre materno. Parecemos indivíduos feitos de nós mesmos, mas a maior parte da nossa identidade provém de outras espécies que vivem em simbiose dentro de nós. Somos feitos de bactérias que migraram para o interior das nossas células há milhões de anos. Elas não apenas vivem em nós. Elas são o que nós somos e nós só somos porque partilhamos as nossas entranhas com essas estranhas. Um biólogo deve ter a mesma abertura de espírito e a mesma disponibilidade em aceitar que cada um de nós é todos os outros seres vivos. O verdadeiro milagre é estar vivo e ser a Vida inteira num indivíduo efêmero. Esse é o nosso milagre.

 

 

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