Ronaldo Correia de Brito chegou a escrever uma carta para o seu editor com duas dezenas de motivos para não publicar Estive lá fora (leia resenha na página 22), seu segundo romance, que chega agora às livrarias. “Ele me devolveu justificando cada uma das minhas negativas com positivas para que o livro fosse lançado. Mas eu não queria, não queria...”, revelou. A missiva não foi a única nota de insegurança e pavor a perseguir o escritor no período de preparação do livro. Ronaldo sonhava os sonhos do seu protagonista e, assim que colocou ponto final na obra, acabou ficando doente. Suas forças haviam acabado. Ficara vazio.
“Foi muito difícil me livrar desse universo”, continuou. Estive lá fora é um acerto de contas do autor não apenas com o Recife, cidade que esse cearense resolveu adotar no começo dos anos 1970, para estudar medicina. O livro também se debruça sobre o período da ditadura militar, tema tão raro na nossa tradição literária. “Considero-me um sobrevivente da Ditadura Militar, alguém que conseguiu escapar àquele tempo sombrio”, lembrou. Na entrevista que segue, Ronaldo comenta o doloroso processo de composição da sua obra, seu trabalho como contista, descreve a relação amorosa que manteve com o seu personagem Cirilo e revela algumas das suas memórias de retirante. E arremata, negando a máxima de Madame Bovary: “Não sou Cirilo”.
Seu romance passa a impressão de ser o negativo de uma foto do Recife, se tivermos em mente a visão romântica e cheia de nostalgia que a cidade tem de si própria. O que lhe levou a tirar essa “foto” em negativo do Recife em Estive lá fora?
Quando cheguei ao Recife, em 1969, vindo do Crato, descobri um mundo novo para mim. Eu havia morado o ano de 1968 em Fortaleza, uma cidade bem provinciana na época, sem o peso da história que o Recife possui. Era um adolescente que deixava o cariri cearense e o aconchego da família, em busca de fazer um curso médico. Encantei-me com o rio, as pontes, a arquitetura urbana — ainda não tão arruinada quanto hoje —, mas aos poucos fui também percebendo e sendo vítima de um clima de horror imposto pela ditadura, que se tornou mais marcante quando ingressei na Universidade Federal. Estive lá fora relata as impressões desse tempo, de acontecimentos terríveis que certa classe privilegiada fazia questão de não ver, contanto que garantisse as mesmas regalias de sempre, usufruídas desde o Brasil Colônia. O romance, que passeia por um Recife cheio de armadilhas e absurdos, é bem pouco glamoroso. Cirilo, o personagem central, encarna uma ambivalência em relação à cidade, sentimentos de apego e desprezo, descobrindo ângulos de luz e sombra, imagens que alguns ainda tentam esconder.
Estive lá foraé um título que leva a inúmeras interpretações. No livro, há referência aos imigrantes de outras capitais do Nordeste que pensavam no Recife como uma grande cidade, cheia de oportunidades. Mas, como alguns personagens deixam claro, o Recife também poderia ser uma passagem para o inferno, o inferno que as grandes cidades oferecem junto com as possibilidades. Como era visto o Recife por outros nordestinos entre as décadas de 1960 e 1970?
Concordo que é um título feliz. No entanto, eu o descobri graças ao meu filho mais novo, Tomás. Trabalhávamos no mesmo espaço: ele, no disco que gravaria com sua banda; eu, no meu romance. Na tarde em que ele me presenteou o ep com quatro músicas e o título Estive lá fora, descobri que esse também era o nome do meu livro e tomei-o emprestado à banda Magriffe. Relendo o romance, vi que ele estava cheio de “estive lá fora” e que eu até narrava um sonho em que Cirilo recebia um disco de presente.
Bom, vamos à sua pergunta. Minha família havia fugido do Recife no final do século 17, porque participara de um levante, essas revoluções que vez por outra aconteciam por aqui. Lá no sertão, creio que sempre tivemos uma nostalgia da cidade, um sonho de retorno, apesar dos mais de dois séculos que se passaram. O Brasil teve vários destinos para os nordestinos, em épocas diferentes: São Paulo, Amazônia, Goiás, Brasília... O Recife era o endereço certo para quem morava no sul do Ceará, sobretudo os estudantes. Não tínhamos nada a ver com Fortaleza e sempre lutamos ao lado dos pernambucanos nas suas revoluções libertárias.
Assim como seu personagem, você também imigrou para o Recife entre as décadas de 1960 e 1970. Foi uma necessidade deliberada colar sua biografia na do personagem ou pelo menos no universo dos seus personagens?
Todo escritor, por mais isento, termina impregnando seus textos com a própria vida. Seria bem mais difícil eu criar a história de um estudante que vai a São Paulo procurar um irmão desgarrado. Só poderia falar com propriedade dos lugares que conheço. E o Recife é a cidade que mais conheço, por onde perambulei durante anos, consciente ou delirante, cheio de alegria ou terror. Mas lhe garanto que Cirilo não é Ronaldo, assim como também não sou Adonias, de Galileia.
Seu livro de contos Retratos imorais já trazia, de certa forma, uma visão sobre o Recife, uma visão em alguns momentos até assombrada... Em que medida ele foi uma preparação para seu novo romance?
Não teria escrito Estive lá fora sem antes escrever alguns contos de Retratos imorais. Foi o meu estágio probatório. Retratos imorais é o livro em que faço mais experiências com a linguagem, sobretudo com a apropriação e uso dos bens de cultura, fiel à afirmação de Walter Benjamin de que escrever consiste largamente em citações — a mais louca técnica mosaica imaginável.
Galileia, seu romance anterior, apontava para um universo em dissolução; Estive lá fora descortina uma cidade assustada com sua própria imagem. Em que medida seu trabalho como romancista é também o de erguer “casas” (a casa que não existe mais de Galileia e a cidade que não abriga de Estive lá fora)?
Escrevi sobre Cirilo que “ele sempre se deixou levar por um rio invisível, debatia-se ao invés de nadar como os atletas das piscinas. Enquanto a mão esquerda o afastava do desespero, a direita anotava em cadernos o que lhe parecia necessário dizer, sobrevivendo através desses sinais”. Imagino que Kafka escreveu algo parecido. No romance Galileia, Adonias enxerga através da janela de um carro — atravessando o sertão em alta velocidade — todos os sinais da pós-modernidade, mas também percebe o alto preço desse ganho, a rotura com o mítico, o sagrado e a tradição. Em Estive lá fora há uma cena em que descrevo uma família em torno de um caixão com uma mulher morta dentro dele, e falo do olhar das pessoas para uma máquina fotográfica que irá registrar o instante. A câmera está ali à frente como símbolo do progresso. O tempo estagnado e a ruína representam-se na morta — uma realidade intangível, interditando os passos das seis pessoas fotografadas. Ganhei esse retrato de uma prima e a imagem deu novo rumo ao meu livro. Ao olhar o retrato e descrevê-lo, percebi que os personagens representados nessa cena desejavam escapulir pelas tangentes, mergulhar no progresso, desfazer todos os vínculos com o passado. Escrevo: “Os olhos preferem fixar a câmera apontada para eles e não a morta, alguns planos abaixo. Contemplam a máquina, símbolo de um tempo vivo, moderno, que registra as ruínas em imagens, sem interferir na escolha de seus atores”.
Estive lá foraaponta o olhar inquisidor para a ditadura brasileira, tão pouco focada na nossa literatura. Por que você acha que há tanto, digamos, pudor em tratar desse período no Brasil?
Considero-me um sobrevivente da Ditadura Militar, alguém que conseguiu escapar àquele tempo sombrio. Não me filiei aos partidos de esquerda nem entrei para a luta armada, mas nem por isso a minha vivência do terror foi menos traumática. Em Estive lá fora traço o perfil de um personagem romântico, contraditório, porém ético, um jovem que busca um caminho próprio em meio ao entulho da contracultura e do movimento hippie, das polaridades entre esquerda e direita, com a consciência da falácia do comunismo e uma recusa hostil ao fascismo. Estive lá fora é um romance sobre famílias de militantes de esquerda, um olhar sobre o sofrimento dessas pessoas e seu esforço para sobreviver em meio à dor das perdas e as dificuldades de cobrar justiça. Não aprecio o tom gaiato com que alguns tratam esse período, como se fosse mais uma piadinha brasileira. O que vi no Recife não é para esquecer. Eu nunca esqueci e ao meu modo tento narrar isso agora, apenas agora porque me sinto mais distante e liberto desse tempo de sombras.
Apesar de ser um romance, Estive lá foratambém é uma espécie de ensaio cultural e social de uma época, no qual você trata com inúmeras linguagens distintas ao longo da narrativa. Por que houve a necessidade do romancista ser também um ensaísta de uma sociedade?
Não se trata de um romance de cultura ao estilo de Thomas Mann, mas precisei recompor o pensamento da época, o comportamento das pessoas — tão distintas de hoje, sobretudo os jovens —, a metafísica e as ideologias. Usei um ardil que talvez os leitores não percebam. Impregnei a atmosfera do romance com as ideias e pensamentos dos filósofos e escritores do período entre as duas guerras, sobretudo os judeus massacrados na Europa — Hannah Arendt, Hermann Broch, Walter Benjamin, Isaac Babel, Kafka, Bruno Schulz, Thomas Mann e outros. Era o horror que me parecia mais semelhante e próximo ao que vivi. Nada das piadinhas nem gracinhas com que alguns militantes se referem aos acontecimentos, como se fosse possível exorcizar ou minimizar o horror vivido, com tons pastel e anedotas. Argentinos e chilenos são bem mais destemidos e sérios, quando expõem suas feridas.
Você já falou em inúmeras entrevistas o quanto a escrita desse romance o perturbou. Por que Estive lá forafoi tão angustiante na sua produção?
Porque eu estava confortavelmente acomodado aos problemas atuais do Recife e precisei recriar dentro de mim uma cidade, distante 43 anos do ano em que vivo — lá em 1969 —, experimentar angústias, desconfortos, medos e conviver com um personagem à beira do delírio, por mais de 18 meses, de maneira viva e excruciante, ao ponto de sonhar os sonhos dele.
Eu sou um leitor muito atento da sua produção como contista. Há possibilidade do próximo livro ser um livro de contos?
Estou preparando um novo livro de contos. Mas também começo a esboçar um romance, que fecharia esse ciclo de narrativas da memória.