Jorge Bispo/DIVULGAÇÃO

Instabilidade, mutação, transformação, deslocamento. Não há rotina na vida do escritor “anticarioca” J. P. Cuenca, o que faz dele não apenas uma espécie de cronista dos próprios movimentos, mas também um leitor e um viajante mais universal que brasileiro. Hoje, João Paulo vive pelo mundo que registra em seus textos: Europa, Ásia, Rio. Bate e volta, raramente estaciona — onde e quando sentaria para escrever? Observador que pula muros, divisas e fronteiras, Cuenca, aos poucos, se tornou um fugitivo do dia a dia e daquela velha ideia de cotidiano que tantas vezes serve de matéria-prima à crônica tradicional, ao menos como a conhecemos ou cultuamos no Brasil. É o que nos sugere a leitura de A última madrugada, antologia de crônicas publicadas por Cuenca em veículos como O Globo, Jornal do Brasile Tribuna da Imprensaentre os anos de 2003 e 2010, período notavelmente produtivo, em que o autor também lançou seus três romances: Corpo presente(2003), O dia Mastroianni(2007) e O único final feliz para uma história de amor é um acidente(2010).

 

Na entrevista abaixo, feita por e-mail, J. P. Cuenca fala sobre a vocação camaleônica de sua produção e conta o que o motiva a escrever livros sempre tão diferentes uns dos outros. Também relata a experiência e a expectativa de ser lido e resenhado em outros países, explica como lida com o fato de trabalhar com opinião na tevê — no programa Estúdio I, da Globo News — e comenta a influência de Thom Yorke, o cabeça da banda inglesa Radiohead, na sua literatura.

 

Você disse, certa vez, que a crônica é o cronista. Da mesma forma que o poema seria o poeta? E o romance, também é aquele que o escreve? Como autor e leitor, qual a natureza de suas relações com a crônica e o romance? Você sente que privilegia algum dos gêneros?

Para escrever os romances que preciso escrever, tenho que criar narradores, vozes para eles e uma estrutura narrativa que deixe tudo em pé. Na crônica, eu sequer teria tempo de fazer tudo isso — ela está mais próxima do seu autor, até pelos prazos de entrega. É raro que eu crie uma voz para escrever uma crônica, o seu narrador está bem mais próximo de mim que os narradores dos meus romances que, até hoje, são todos muito diferentes entre si. Eu não sinto que privilegie nenhum dos gêneros, mas a verdade é que apenas comecei a escrever crônica porque fui convidado. E só escrevi crônica enquanto tinha uma página de jornal para isso, com a consciência de que estava seguindo uma tradição e uma escola brasileira de crônica. O romance me parece mais imperativo. Eu tenho que escrever esse romance que preciso ler, que ainda não existe. E, quando ele passa a existir, logo perde a validade. E eu preciso escrever outro.

 

Numa conversa com Jô Soares, você comentou que “é bom esquecer”, que somos uma “locomotiva movida a memórias” e que queimá-las nos faz tocar a vida. No entanto, na sua crônica “O homem de mudança”, você pergunta, diante de sua memorabilia: “O que somos além desse acúmulo de passado e esquecimento?”. Um cronista — e mesmo um cronista do seu tempo — pode queimar seu passado?

A resposta para isso é ambígua. Ao mesmo tempo em que escrevemos para deixar para trás, estamos produzindo uma prova concreta de nós mesmos. Queimar o meu passado seria queimar essas crônicas todas — o que eu fiz com A última madrugada foi reeditá-las. Reeditar o meu passado.

 

Fernando Pessoa, no Livro do desassossego, escreveu que “uma opinião é uma grosseria”. Na crônica “Questão de opiniões”, você se refere a algo similar, como se vivêssemos uma espécie de Era das Opiniões e sofrêssemos de uma certa ressaca de opinar. Como você lida com isso, sendo quase um “opinativo-compulsivo” e até trabalhando com opiniões na tevê?

Lido mal com isso. Confesso que adoraria dar um passo para trás e não emitir mais nenhuma opinião sobre nenhum assunto. Essa crônica é um pouco sobre isso: o fato de que o espaço da crônica no jornal tem sido cada vez mais transformado em coluna de opinião. Resisti o quanto pude a isso enquanto escrevi para jornal. Claro que não conseguia sempre.

 

Na primeira crônica do seu livro, você escreveu, referindo-se às dúvidas inaugurais da vida de um menino, que certo movimento de substituição de perguntas vitais, da infância à maturidade, seria a nossa garantia de sanidade e sobrevivência. Sendo assim, qual a pergunta que o mantém vivo e lúcido hoje?

Eu faço referência ao fato de que o garoto irá substituir suas perguntas metafísicas por outras, mais terrenas, de paixão. Há uma citação do escritor argentino Ernesto Sábato que eu adoro: “É que os seres de carne e osso não podem jamais representar as angústias metafísicas no estado de ideias puras: sempre o fazem encarnando essas ideias, obscurecendo-as com sentimentos e paixões”. Essa substituição está no centro de praticamente tudo o que escrevo.

 

Noutro texto, falando sobre Cortázar, você se imagina caminhando como ele por Paris, ambos “entusiasmados e comovidos com o que ninguém percebe no voo de um pombo”. A imagem é perfeita para descrever boa parte de seu trabalho com a crônica. Vejo em você um cronista comovido. Como trabalha a emoção em sua escrita?

Com cuidado. Acho que essa comoção tem que entrar em doses no texto — ou então não comoverá o leitor. Acho que com o tempo eu fui me tornando um cronista mais contido, e isso é bom.

 

Você é um dos escritores brasileiros mais viajados, ouvidos e comentados no exterior. Como tem sido viver essa experiência internacional? E as críticas lá fora, diferem muito das críticas no Brasil? Qual a diferença de recepção à sua obra, aqui e no exterior?

Ainda viajo bem mais que a minha obra, mas posso dizer que estou começando aos poucos a ser traduzido e resenhado lá fora. As críticas diferem bastante, e é interessante comparar, por exemplo, a recepção que meus últimos dois romances (O dia Mastroianni, de 2007, e O único final feliz para uma história de amor é um acidente, de 2010) tiveram no Brasil e em Portugal. Cada lugar valoriza mais certos aspectos da obra. Em Portugal, como eu não era um nome conhecido nos meios literários, deu para notar a diferença que faz um livro ser lido independentemente do seu autor — tenho a impressão de que é comum que leiam o autor junto com o livro, o que pode ser empobrecedor. No mês passado, O único final feliz... foi lançado na Espanha e, em agosto, será publicado na Alemanha. Estou muito curioso sobre como será a receptividade dele.

 

Você escreve para um público específico? Por exemplo, ao preparar um romance, pensa num leitor brasileiro ou num leitor universal? E sobre a crônica: sempre dizemos que ela precisa ter uma pegada atemporal. Mas ela também pode ou deve ser lida fora do Brasil? Essa viagem é possível?

No limite, como te disse antes, escrevo para mim mesmo, escrevo o romance que eu mesmo quero ler. Penso no leitor que sou eu mesmo. E esse leitor é mais universal que brasileiro. Sobre a viagem da crônica, espero, sim, que seja possível.

 

Ainda sobre suas viagens: como você faz para escrever um romance em trânsito? Consegue manter uma rotina de trabalho? Como tem sido seu expediente de escritor?

As viagens são maravilhosas como inspiração e para colocar minha própria cidade e vida em perspectiva. No entanto, atrapalham minha rotina, que já é praticamente inexistente. Eu não consigo manter uma rotina de trabalho. A única coisa estável na minha vida de escritor é a instabilidade.

 

Aproveitando a anedota de Vila-Matas que você reconstrói em “As bolsas imaginárias”, sobre um escritor que faz uma palestra para uma única velhinha, acomodada aos fundos de um auditório vazio, pergunto: a literatura é esse discurso sussurrado no ouvido de uma velha surda?

Muitas vezes é, sim. E eu te devolvo essa pergunta com outra: isso importa? Deve importar?

 

Sobre o Radiohead. Que peso, que influência teve Thom Yorke na sua vida e na sua literatura?

O Radiohead é uma banda de rock que se reinventou algumas vezes desde que começou, fugiu de caracterizações, despistou seus críticos e apostou cada vez mais numa sonoridade autônoma e, por isso mesmo, mutante, em transformação e transformadora, extrapolando limites de gênero. Se eu conseguir falar isso dos meus livros em 20 anos, estarei no caminho certo.

 

Escrevendo sobre o Rio e alguns de seus mitos, você diz que a estrela de cada carioca é tão grande que só pode brilhar sozinha. Que tipo de carioca é você, que comemora quando o tempo esfria?

Eu sou praticamente um anticarioca. Não me pergunte do Rio: acho que a cidade está cada vez mais vulgar, estúpida e ignorante de si mesma. Eu só reclamo da cidade. E, sim, acho que o mundo deveria ter
uma temperatura máxima de 22 graus.

 

Em “Encapsulado”, crônica que se passa em Tóquio, você cria uma bela imagem: fala que sonha dentro de um sonho e que, num “caderno de sonhos”, vai tomando nota de tudo aquilo com que sonha. O resultado disso, você chama de “a melhor literatura que jamais produzirei”. Que literatura seria essa, a que você escreve em sonhos, trazida para a vigília?

Aquela que não conseguimos escrever, que se perde no caminho entre a ideia e o teclado, entre o pensamento abstrato e a linguagem. Escrever é fracassar em série justamente porque é impossível transmitir a ideia pura. Mas esses desvios são reveladores e é neles que eu finco os pés para trabalhar.

 

Por fim, não vou perguntar qual é a sua definição de crônica. Vou perguntar se você gosta ou acredita em definições.

Não gosto, no fundo não acredito, mas temos que lidar com elas. No caso da crônica, a encarei mesmo como gênero literário — a escola brasileira de crônica — e descobri uma coisa: tudo o que escrevi até hoje é literatura de gênero. O que talvez me faça um escritor diferente dos outros é que eu estou sempre trocando de gênero, em cada um dos meus romances, ou como cronista. Ou seja: não acredito em definições estanques para o que eu mesmo faço. Mas me aproprio dos gêneros alheios até torná-los, de certa forma, meus.

 

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