Após sete anos, retorno ao apartamento no segundo andar do edifício da Vila Mariana, São Paulo, onde Lourenço Mutarelli vive ao lado de sua esposa, Lucimar, e do filho, agora adolescente, Francisco. Há mais gatos pela casa — cinco ao todo —, mais livros nas estantes e mais quadros nas paredes. Algumas dessas molduras exibem “mimos” dos trabalhos mais recentes do autor, como as caixas de cigarro que incensaram o filme Natimorto, protagonizado pelo próprio Mutarelli e adaptado de um romance homônimo do mesmo autor. Longe do cenário asfixiante do longa, mas ainda envolvidos pelo perfume da nicotina e do café que acabou de sair da cafeteira italiana, conversamos sobre distanciamento, interpretação, sínteses, processos e, claro, mais objetivamente sobre quadrinhos, já que Mutarelli lançou recentemente Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, álbum que, embora tenha saído pelo selo de quadrinhos da Companhia das Letras, despertou dúvidas nos leitores quanto as insígnias de sua forma. Dedicado cada vez mais a uma literatura, em quadrinhos ou romanceada, a que ele chama de “experimental”, o escritor e desenhista paulista pensa agora em usar um artifício das artes plásticas para ironizar a falta de compreensão que alguns possam ter de seu trabalho. Para ele, num mundo em que as compressões precisam ser imediatas, talvez seja a hora de colocar “plaquinhas” que legendem e expliquem exatamente o que ele faz. Só que ao contrário.
Você gosta de ler sobre as coisas que escrevem sobre você?
Não leio. Nunca li. Tem tese, entrevistas, mas nunca li nada. Às vezes dou pra Lu, minha mulher, ler.
Dia desses Laerte falou que não gosta de ler sobre quando falam mal dele porque geralmente ele concorda.
É verdade, mas até mesmo quando falam bem, ou quando é entrevista, sei lá. Você fala um monte de besteira ou, mesmo que não seja besteira, às vezes você fala uma coisa em que você acredita num momento e depois, passam dois dias, e você não acredita mais.
A se falar em entrevistas suas, de opiniões que você pode não mais ter, li uma recente em que você falava que o mundo lá fora está ficando doente e é a partir daí que ele começa a reconhecer teu trabalho. Ainda acredita nisso?
Acho que o mundo está muito doente, porque as pessoas estão muito distantes do que seria a realidade e isso tem a ver com o consumismo. Vejo assim: quando comecei a tomar antidepressivo, que não tomo mais, era raríssimo ver alguém tomando também. Era começo dos anos 1990, fim dos anos 1980. Hoje em dia é difícil quem não tome. E esse tipo de medicação te distancia muito, te tira muita sensibilidade.
Existe uma coerência na tua obra, seja em quadrinhos, romance, cinema ou teatro, que são teus personagens. Quase todos são contidos e estão a ponto de explodir. É mais ou menos essa sensação que você sente nas pessoas?
A realidade prática da vida é absurda. Você precisa criar escapes para poder viver nesse modelo e precisa rever um bocado de coisa. A escola, por exemplo, tem que ser repensada. Não são pequenas mudanças que farão a diferença. Mas acho que existe uma esperança de que as coisas deem certo. Deve ser por isso que tem essa coisa de 2012, para que a gente tenha esperança que uma catástrofe consiga parar tudo pra gente recomeçar.
O que as escolas poderiam fazer para mudar?
Para começar, acho que não dava para ter aula de 50 minutos. Não dava pra fragmentar as matérias como elas são fragmentadas. Devia haver três professores e mais diálogo em sala, não tinha que ter essa forma de avaliação com provas. Também não dá pra ter 100 alunos por classe. Mas para as escolas é caro bancar os professores e a manutenção e aí lhe resta seguir o padrão. A gente jogou nessa última Mega Sena da virada, de R$ 170 milhões, e eu estava falando com a Lu que se a gente ganhasse, podíamos fazer uma escola como a gente pensa que ela poderia ser.
Conversamos em 2005 e você disse que queria fazer uma história em quadrinhos de terror.
Nem me lembro disso.
Pois é, mas você falou que seria uma história de terror suburbano para falar um pouco da experiência que você teve com seu irmão.
Falei isso?
Falou.
É porque essa coisa do crack é filme de zumbi, né? É exatamente isso.
Você está acompanhando esse processo de desocupação da Cracolândia em São Paulo?
Um pouco. Mas é um problema muito difícil e não vejo solução. Acho que está totalmente errado o que eles estão fazendo, mas não dá pra tirar o pessoal dali. Não tenho esperança. A desocupação é isso, é interesse imobiliário, porque ninguém quer aquele cara ali. É horrível falar isso, mas não consigo ver uma reabilitação. Talvez uma minoria, um ou outro que quiser muito, mas quando as pessoas chegam naquele estágio é porque já desistiram. São pessoas que não conseguiram entrar no jogo absurdo do sistema.
Faz parte então dessa doença do mundo que você estava falando?
Sim, faz parte. Vejo pelo meu irmão. Porque tem uma hora que a única coisa que ele quer é a droga e aí não importa, ele vai até comer lixo.
De quem você se influencia hoje?
Ano retrasado o Antonio Prata me indicou o Kurt Vonnegut, que é um escritor americano que já morreu e foi o cara que mais me influenciou antes mesmo de eu ter lido ele. Tem muito a ver com meu trabalho. E não é porque faço algo parecido com o que ele faz. Falo em influências quando vejo como aquelas pessoas resolveram bem suas questões em suas obras. E não por que tento fazer um trabalho parecido com o que leio. Mas houve uma época, por exemplo, em que me sentia tão influenciado pelo William Burroughs, que fiz um livro meio misturado com ele, mas era na verdade uma homenagem.
Qual o livro?
O do Amores expressos.
Se costuma muito associar teu trabalho a Kafka e Dostoiévski.
Essas foram minhas primeiras influências. Lembro que li uma versão de Crime e castigo que devia ter 90 páginas, era uma versão para estudantes. E gostei tanto que fui atrás do livro mesmo. Li três vezes, em três diferentes momentos da minha vida. Mas confesso que estou começando a achar cada vez mais difícil ler clássicos. Porque nossa língua é viva e tem mudado muito. E o ritmo das coisas é diferente.
Você está cedendo ao ‘sistema’ da língua?
Totalmente. Acho que meus livros refletem isso também. Escrevo muito pra quem não gosta de ler. Meus livros são rápidos. Não sei se naquela época as pessoas ganhavam por caracteres, mas sempre dá pra você tirar o extrato das coisas.
Muito se questionou se Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente era realmente quadrinhos. Para você existe alguma fronteira que determine que até ali é quadrinhos e depois não?
Fiz esse álbum porque fui convidado por uma produtora que se chama RT, junto com a Companhia das Letras, para fazer uma história em quadrinhos. E eu não estava a fim ainda de voltar aos quadrinhos. Tenho feito muita coisa experimental, mas ainda não cheguei no que quero. E quando comecei essa história em quadrinhos, vi que não ia ter gás e propus uma história ilustrada, que chamei exatamente assim. Mas quando terminei e saiu o livro, começo a achar agora que é quadrinhos. Teve até um amigo que falou uma coisa interessante, ele disse: “pô, quadrinhos é arte sequencial, essa história é toda fora de ordem, como você vai chamar isso de quadrinhos?”. Mas enfim, confesso que chegou em mim menos polêmica do que achei que haveria. Porque nesse meio as pessoas são tão fechadas que pensei que teria gente que ia querer me processar.
Se Quando meu pai… é um primeiro capítulo de uma experimentação que você está fazendo com quadrinhos, o que vem mais por aí?
Tenho feito algumas coisas, mas o que estou querendo fazer em quadrinhos tem um pouco a ver com as instalações de artes plásticas. Você vai ver uma instalação, aí tem uns canudos vermelhos e do lado uma plaquinha falando que o autor tirou 15 litros de sangue e tudo aquilo é o sangue dele. Aí você fala: “ah legal, o sangue dele...”. As plaquinhas então serão necessárias. Comecei uma história que era assim: sem esboço, sem roteiro, sem nada. Começo a desenhar. Vou virando a página e desenhando outra e a história vai se criando ali. E aí quando a história começa a se organizar e ficar linear, eu boto um personagem novo e aquela narrativa se quebra. Fui fazendo dessa forma e cheguei a umas 80 e poucas páginas. Dei para algumas pessoas lerem e elas não entenderam que, assim como o que eu fiz era experimental, a forma delas lerem também tinha que ser experimental. Então talvez eu precise explicar isso.
Você acha que o exercício de interpretação é cada vez mais custoso às pessoas?
Muito. E quando você fala então em experimental, aí é que a coisa fica difícil mesmo. Porque experimental é sempre “coisa que eu não vou entender”. É porque tem coisa que não posso falar. Mas vamos lá. Essa coisa de quadrinhos em editora grande, por exemplo. Como acho que eles pensam? Posso estar errado, mas o pior é que eu posso estar certo. Você junta lá os “bacana”, os “cabeção” da editora, uns meninos de 30 anos, descolados, super ligados com tudo de melhor que existe no mundo, totalmente antenados com Nova York, Berlim… E aí eles olham para um livro e vem a pergunta: “E isso aqui?” “Ah, isso aí não é mais legal.” “O que é que é legal?” “Ah, acho que legal agora é isso aqui”. E aí se cria uma ditadura. Eu vou lá e pergunto por que não publicam mais o William Burroughs ou o Kurt Vonnegut? E a resposta é porque eles estão fora de moda.
Você vai voltar a fazer quadrinhos agora ou fazer romances?
Tenho que terminar o livro dos Amores expressos e tenho umas encomendas que estão atrasadas. Mas estou, sim, fazendo quadrinhos e continuo minhas experimentações. E ano que vem vou lançar meus cadernos laboratórios, que são as coisas que eu mais gosto de tudo que fiz, porque são coisas inacabadas. Vai se chamar Sketchbook. Se bem que ele não é um sketchbook. Não é um estudo para alguma coisa, é um exercício de pensamento mesmo. Para mim, o processo é o que vale, é isso que quero explorar cada vez mais. Quero coisas que estejam impregnadas do processo.
Carol Almeida é jornalista