Uma das preocupações do Pernambuco é sempre trazer bons cronistas a cada mês. Num tempo em que informações são pulverizadas na internet, a voz pessoal, o tom “ao pé do ouvido” do leitor de uma boa crônica (ao menos na nossa compreensão) faz toda a diferença para um véiculo. Diante dessa nossa decisão editorial, nada melhor que uma entrevista com um dos maiores nomes do gênero, o mineiro Ivan Angelo, que lança agora pela Arquipélago Editorial a coletânea de crônicas Certos homens ­ que reúne textos líricos, engraçados e com um olhar espantado para as minúcias do cotidiano, que muitas vezes nem notamos. Na conversa, ele revelou o porquê de ter deixado de lado (ao menos por um tempo) sua premiada carreira de romancista: “Me sinto meio fora do tom, falando assim, porque eu percebo que as pessoas estão procurando é diversão quando leem um romance, ou buscam ajuda, ou identificação, ou querem se emocionar sem muito trabalho”. E comenta ainda a repercussão do papel de conselheiro sentimental que banca em alguns dos seus textos: “A repercussão entre os leitores, quando falo de amor, é sempre boa, e são as mulheres quase sempre que dão esse retorno. Escrevem e-mails, dão palpites, contam histórias íntimas na esperança de que se transformem em crônicas. Homens são muito travados para falar desse assunto. Escrevem quando o tema é política ou problema social.”

 

Antes de falarmos de crônica e de jornalismo, vamos falar um pouco sobre o Ivan Angelo como romancista. Apesar dos seus romances terem sido premiados, você publica ficção com pouquíssima regularidade. Por que isso?
O romance, como eu entendo, é um compromisso muito trabalhoso com a arte literária. Toma um tempo enorme do escritor e do leitor, e por isso o romance tem de ser buscado pelas duas partes com alto grau de exigência. Me sinto meio fora do tom, falando assim, porque eu percebo que as pessoas estão procurando é diversão quando leem um romance, ou buscam ajuda, ou identificação, ou querem se emocionar sem muito trabalho. Dependendo do talento de quem escreve, pode até resultar um bom divertimento. Não é o meu caso, ou ainda não foi o caso de eu começar um romance com essa atitude. Ou com esse propósito, sei lá. Se eu escrevo um romance como eu acho que deveria, e as pessoas compram pensando que é o que elas pensam que é um romance, podem se decepcionar. Ou posso eu me decepcionar, se escrevo seduzido pelo gosto ou pela facilidade. Quando eu tiver nas mãos um assunto, uma história e uma escrita que valham a pena, talvez escreva de novo um “romanção”. Falei escrita porque cada história pede uma escrita.

 

O romance A festa permanece como um dos mais influentes da literatura contemporânea brasileira. Como você o avalia hoje?
Valeu. Valeu como assunto, como história e como escrita. E se ele permanece, como você diz, é mais por causa da escrita, não do assunto ou das histórias que ele conta. É disso que o leitor interessado na arte da escrita fala hoje, com relação a esse romance, não é do assunto dele, que é a vida de algumas pessoas durante o regime militar. Ou melhor: antes e durante o regime militar. Porque algumas histórias do livro vão lá atrás, buscando as origens da opressão. Uma começa lá no final do século 19, outra nos anos de 1940, outra nos anos de 1960. O livro foi publicado em 1976, estava escrito em 75. Gostei de ter escrito o livro e da recepção que ele teve, mas pouco depois comecei a achar que a minha abordagem do assunto poderia levar a um erro de interpretação, que seria o leitor pensar que eu estava dizendo que  a crueldade tinha se instalado no Brasil com aqueles militares. Aí, para colocar melhor a questão, eu escrevi  A casa de vidro, que eu acho que é o meu melhor livro de ficção, onde se vê que aquelas crueldades e opressão já estavam presentes desde o Brasil Colônia.

 

Você faz alguma distinção entre ficção e crônica, já que nela, de certa forma, você também cria personagens?
Eu trabalho a crônica com bastante abertura. Não é o assunto ou a quantidade de realidade que ponho nela que a torna uma crônica. Veja a poesia: ela trata de tudo, como assunto. Conta histórias, medita sobre o mundo, canta o amor, varia de tom e de voz, fala na terceira pessoa, na primeira... E é sempre poesia. A crônica é um gênero literário, tanto quanto o conto ou a poesia lírica. Crônica não é um formato, como o soneto, um dos formatos de poema. Algumas das minhas crônicas, ou algumas crônicas, de um modo geral, são dissertações, outras são poemas em prosa, outras são pequenos contos, ficções, como queira, outras são evocações, memórias, reflexões, recortes do cotidiano. Isso sem falar nas crônicas especializadas, entre aspas, como esportiva, política, social etc, que aí são jornalismo mesmo, puro jornalismo. A crônica literária se mexe, tem a mobilidade da poesia. E deve ter a mesma responsabilidade com relação à linguagem, buscar o mesmo rigor de linguagem que a poesia tem. Ou que o conto tem. A limitação do espaço no jornal ou na revista trabalha a favor dela, a favor da concisão, que é uma qualidade.

 

Muitas crônicas dessa nova compilação têm um olhar muito lírico, quase uma educação sentimental, como é o caso da crônica  Nem sempre você ama quem você ama. Qual a repercussão do público quando você fala de temas amorosos? Como é “brincar” de conselheiro sentimental?
Meu editor e eu procuramos montar a seleção de crônicas que compõem Certos homens usando o critério de proximidade de assunto que um texto poderia ter com outro. Como se fosse uma conversa, palavra puxa palavra, uma história puxa a outra, um sentimento desperta outro. Começamos com a crônica que dá título ao livro porque achamos que seria um bom título para o livro. Aí, naquela de palavra puxa palavra, fui enfileirando crônicas que tinham esse olhar lírico de que você fala. Depois aquele tema se esgota e me encaminho para outro, sempre buscando alguma proximidade. A repercussão entre os leitores, quando falo de amor, é sempre boa, e são as mulheres quase sempre que dão esse retorno. Escrevem emails, dão palpites, contam histórias íntimas na esperança de que se transformem em crônicas. Homens são muito travados para falar desse assunto. Escrevem quando o tema é política ou problema social. Mas é sempre boa essa chegada do leitor. Ele tem confiança e ousa se expor, coisa que o leitor de poesia ou de romance raramente faz. Poesia e romance intimidam o leitor, ele não ousa questionar nada. O leitor de crônicas não, ele ousa, chega perto. O segredo da crônica é que ela é uma relação pessoal, íntima, entre o narrador e o leitor. O cronista se dirige a uma pessoa que ele acredita ter a mesma sensibilidade que ele. Por isso o leitor chega perto, escreve. O cronista busca a cumplicidade do leitor. O poeta e o romancista são mais olímpicos.

 

Como é o processo de retirar uma crônica de um jornal/revista, veículos de prazo efêmero, e trazê-la para um livro? Ou você pensa a crônica na hora de escrever já para um futuro livro?
Não, não escrevo crônica pensando no livro em que ela poderá aparecer. Tanto que quando se começa o trabalho de montar um livro de crônicas, a primeira coisa a fazer é uma seleção. Porque tem umas que são mais perecíveis. Ao ir para o livro, a crônica deixa de dialogar com o leitor sobre o cotidiano, ou o cotidiano perde importância, e ela começa a dialogar com o leitor sobre a arte da escrita. O próprio leitor muda um pouco de atitude, com aquele novo meio. É ainda o seu cronista que está ali, mas agora o leitor não vai jogar fora aquele texto, junto com o jornal ou a revista. Compra o livro para guardar, para conviver mais com as palavras do que com os fatos que as fizeram se agrupar daquela forma. Nesse ponto, sim, quem escreve crônicas sabendo que existe a hipótese de elas aparecerem em livro pensa um pouco mais no acabamento, pretende que elas durem um pouco além daquela semana. Mas eu sempre escrevo pensando na arte da crônica e não no dia da crônica.

 

Por ser filha do jornalismo, por muito tempo a crônica foi vista com certo preconceito. Você acha que isso tem mudado ao longo dos últimos anos?
Já vinha mudando desde a década de 1940 com as crônicas de Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira. Mudou mesmo, eu acho, foi quando se juntaram a eles na militância, digamos assim, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, e mesmo um Antônio Maria, um Carlinhos de Oliveira. Professores universitários começaram a estudar aquele surto a partir dos anos de 1950. O professor Antonio Candido, num belo ensaio chamado A vida ao rés-do-chão, deu o tom para toda uma geração de críticos, quando disse que esse era “um gênero brasileiro”, pela naturalidade com que se aclimatou aqui, e pela originalidade com que aqui se desenvolveu. Candido deu o aval para a apreciação crítica da crônica. O professor Davi Arrigucci Jr., no seu bonito ensaio Onde andará o velho Braga?, se sente confortável para falar de Rubem Braga num livro que estuda grandes nomes da literatura universal. Não há mais preconceito contra a boa crônica. E quando ela é má, não é preconceito.

 

O jornalismo impresso hoje vive um momento de impasse. Na sua opinião, a crônica e os textos mais pessoais seriam uma alternativa para o futuro do jornalismo?
Há muito tempo venho observando que a internet, os blogs, os jornais rápidos dos portais eletrônicos levaram a mudanças nos jornais impressos. Tanto no visual quanto no conteúdo da matéria jornalística. A opinião invadiu o espaço do que deveria ser objetivo, começou a vazar das páginas de editoriais. A concorrência com a notícia rápida fez diminuir o aprofundamento. Isso ficou a cargo dos articulistas especialistas. Diminuiu também, muito, o espaço da reportagem minuciosamente apurada. Isso ficou a cargo das revistas de reportagens. E diminuiu muito o espaço da emoção, daquilo que fazia um jornal se debruçar sobre a vida das pessoas da cidade. É aí que entram os cronistas. Um jornal como o Estado de S. Paulo tem doze cronistas não especializados. Acredito mesmo que a visão pessoal de um cronista ajuda muito o jornalismo na atual transição.

 

Última questão: qual foi a crônica de terceiros que você leu e mais lhe emocionou/inspirou?
Ah, são várias. Pela perfeição da ideia e do estilo, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade que está em Fala, amendoeira, e que se chama “Anúncio de João Alves”. Perfeita também, em todos os sentidos, é a crônica Partilha, de Rubem Braga, que está em 200 crônicas escolhidas. Pode-se ler como um conto. Outra dele, antológica, é Viúva na praia. Está no mesmo livro. E curto muito uma de um cronista novíssimo, o Antônio Prata, que está na antologia Boa companhia, da Editora Companhia das Letras, e se chama Bar ruim é lindo, bicho.

 

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