O escritor carioca Rubens Figueiredo foi o ganhador da edição mais recente do Prêmio São Paulo de Literatura, pelo romance O passageiro do fim do dia. Atualmente, essa é a honraria mais alta do mercado editorial brasileiro (o vencedor recebe R$ 200 mil). “Fiquei muito contente e muito agradecido. Acho também que se os organizadores selecionaram dez livros entre duzentos, isso é sinal de que se trata de dez livros de alto nível e que precisam ser olhados com mais atenção e mais seriedade do que nos habituamos a dar aos livros brasileiros”, comentou sobre o impacto da vitória. Responsável por uma das obras mais relevantes da literatura brasileira contemporânea, Rubens fez de O passageiro uma porta de entrada para entendermos as frustrações e a resignação de milhões de brasileiros que veem suas rotinas de trabalho serem transformadas em verdadeiros campos de batalha, nesse misto de paraíso/inferno que são as grandes cidades.
“Houve com esse livro a necessidade de investigar uma situação em que se manifestasse e se concentrasse um grande número de circunstâncias ligadas à desigualdade. E também ligadas às formas da assimilação da desigualdade pela consciência, bem como aos meios de resistir a esse processo”, comentou o autor nesta entrevista para o Pernambuco, na qual ele fala ainda sobre seu trabalho como tradutor e a insistência em batizar personagens de Pedro.
O romance O passageiro do fim do dia nos faz pensar num dos grandes motes da literatura, que é a travessia como metáfora de mudança, de percepção de vida. A viagem como sendo “a viagem”. Como você chegou ao ambiente específico de um ônibus para contar sua história?
De um lado, havia a experiência pessoal de andar de ônibus na cidade. Sobretudo os 25 anos em que eu pegava dois ônibus para ir e para voltar do colégio onde lecionava à noite. De outro lado, a necessidade de investigar uma situação em que se manifestasse e se concentrasse um grande número de circunstâncias ligadas à desigualdade. E também ligadas às formas da assimilação da desigualdade pela consciência, bem como aos meios de resistir a esse processo. A travessia, no caso, não é uma metáfora. É a viagem concreta e diária, individual e coletiva, do trabalho (local da exploração) para casa. Não creio que essa experiência precise ter um cunho metafórico para ganhar abrangência e uma dimensão generalizada. A experiência concreta já basta, e de sobra, para isso.
Ao mesmo tempo em que o livro retrata uma questão social séria, você não faz uma denúncia aberta dos problemas do Brasil. O passageiro do fim do dia não é um romance “panfletário”, para usarmos uma expressão sempre cercada por clichês. As suas personagens parecem “soterradas” pela condição social em que vivem, ainda que desesperadas. Essa sua escolha de não cair no terreno panfletário, foi uma forma deliberada sua de se afastar de muitos romances urbanos contemporâneos, que retratam questões sociais?
Em nenhum momento pensei em me afastar ou me aproximar de romances contemporâneos ou antigos. Pensei no objeto de que eu queria tratar e explorar no romance. Um objeto que não estava nos romances nem nos poemas. Estava na vida concreta à minha volta. Eu não tinha intenção de fazer denúncia nem de não fazer. Tratava-se apenas de refletir sobre um problema, questionar as soluções ou os expedientes mentais que nosso dia a dia propõe para ele, usando para isso os recursos próprios a um romance. Recursos que suponho serem distintos dos de outras formas de expor os problemas. O pressuposto é que um romance pode contribuir para o conhecimento, acrescer conteúdos que talvez não sejam acessíveis a outras disciplinas.
Nesse livro, você retoma o uso de um personagem chamado Pedro, nome que já esteve presente em outras de suas obras, como o próprio Contos de Pedro. Quem é Pedro ou o que esse nome implica na sua literatura?
Talvez repetir o mesmo nome para personagens diferentes represente a intenção de apresentar conteúdos que sejam potencialmente generalizados, mas não necessariamente universais. Quero dizer, generalizados o suficiente para que nós possamos perceber que fazemos parte do problema. Mas que nem por isso o problema faz parte de nossa natureza.
Pedro vivencia a trama de O passageiro do último dia enquanto está lendo um livro de Charles Darwin (naturalista e escritor britânico, 1809/1882). O que lhe levou a pensar que Darwin traria alguma pista para entendermos o Brasil de hoje?
Eu procurava um caminho para conferir ao romance um alcance histórico mais abrangente. Um modo de permitir que os problemas apresentados fossem vistos de uma perspectiva histórica, como algo menos local, menos restrito ao momento. Sobretudo procurei sempre manter à distância qualquer perspectiva atemporal e universalizante. O fato do meu personagem ler um livro de divulgação barato sobre o Darwin no ônibus, um livro que se detém um pouco mais em sua viagem por países no sul do planeta, me deu a oportunidade de incluir no romance a questão do colonialismo e da escravidão. Além disso, a despeito de sua possível pertinência científica, a própria teoria da evolução tem sido usada politicamente para justificar e legitimar as relações sociais capitalistas e as desigualdades sociais em geral. Não é à toa que há pouco tempo um professor americano chegou a dizer que os milionários americanos eram fruto de um processo de seleção natural. No livro, também tentei explorar a maneira como a naturalização das relações sociais vigentes, e da opressão cotidiana necessária para manter tais relações, comprometem, não raro, a ciência, assim como a arte e a literatura. A hipótese era que tudo isso e outras coisas se manifestavam nos fatos e nos gestos banais e repetidos cotidianamente, sem que os agentes e as vítimas tenham consciência disso. A percepção embotada para tais gestos e ações e a dificuldade para romper esse embotamento refletem os mecanismos que protegem e reproduzem a desigualdade. Eu queria que essa dificuldade, esse esforço, constituísse o conteúdo da tensão da narrativa do romance. Eu não queria contar uma história, um enredo, com conflito, crise, desenlace. Queria que as coisas triviais, insignificantes, que nos parecem avulsas e alheias umas às outras, aos poucos nos revelassem a presença de um processo subjacente. Eu queria que a própria estrutura de meu livro situasse o leitor numa perspectiva em que esse questionamento fosse possível. Um enredo propriamente dito iria me afastar desse objetivo.
A pergunta seguinte pode soar redundante ou muito aberta, então responda-a como você achar melhor: Você se considera um autor político?
Não se trata de ser um autor político ou não. Trata-se de não se furtar a tratar os problemas com a máxima abrangência de que somos capazes. Trata-se de questionar com rigor aquilo que pensamos e dizemos, à luz da experiência das pessoas que nos rodeiam. Trata-se de supor que um romance deve ter algo a dizer sobre a sociedade em que vivemos.
Como surgiu seu interesse em aprender russo e de verter obras do russo para o português, já que é uma língua pouquíssimo difundida no Brasil? Ser um tradutor de russo é quase uma espécie de personagem literário por si só, do tipo “olha, ele é um tradutor de russo”, uma função que parece trazer uma história por trás.
Fui estudar russo na Faculdade de Letras da UFRJ aos 18 anos, onde me formei, quatro anos depois. Eu me inscrevi na disciplina português-russo por razões circunstanciais. 1- Achei que não seria aprovado na disciplina francês-português. 2- Li e tinha gostado muito de alguns livros russos. 3- Era o final do governo do general Médici, ditadura militar. Estudar russo tinha um lado de contestação e desafio que, em parte, também me atraiu. 4- Encontrei uma excelente professora (Maria Aparecida Botelho Soares) que me animou e me inspirou muito.
O trabalho de traduzir nomes como Liév Tolstói (é de Rubens Figueiredo a mais recente tradução de Anna Kariênina, que foi publicada pela Editora Cosac Naify) , de certa forma, influencia na sua escrita, ou você já não percebe essa suposta “influência”?
Acho que a grande influência decorre da compreensão de que a literatura pode ter um tipo de relação com a sociedade diferente daquele que vemos hoje. À medida que eu lia e traduzia livros russos do século 19 e início do século 20, me dava conta de que sua força residia menos num suposto talento individual do que na vitalidade gerada pela forma como esses livros se inseriam em seu mundo. Percebi que a literatura russa se entregava às ricas polêmicas em curso em seu tempo e em seu país. As obras debatem umas com as outras tendo em vista as opções históricas abertas à sua sociedade. Os autores se empenham com afinco em manter aberta uma larga via de contato com a dinâmica social, com tudo o que esta comporta de explosivo e incerto. Nesse processo, praticamente tudo é submetido a um questionamento incisivo, a voltas e reviravoltas de pensamento e de posição, cujo acúmulo enriquece e revigora continuamente as obras. As opções artísticas de cada autor se referem às opções históricas do país e dessa forma as obras ganham o peso e a força que continuam a chamar a atenção, porque os processos históricos e os padrões de relação social, então em acelerada transformação, podem, em medida nada desprezível, ser reconhecidos como os mesmos de hoje em dia.
Sua obra anterior, O livro dos lobos, foi uma quase completa reescritura de um livro que você havia lançado anos antes. Você gostaria de reescrever outros livros ou esse foi um caso isolado?
Gostaria, sim. Acho que é até necessário. No caso do Livro dos lobos, foi uma oportunidade que tive. Não sei se terei outra.
Nelson de Oliveira lançou há pouco uma antologia com os autores dos anos 00 (Geração zero zero, Editora Língua Geral). Você participou da antologia dos anos 1990, que ele realizou (Geração 90 – Manuscritos de computador). Quais os pontos positivos e negativos que você percebe nessa ideia de geração?
Desculpe. Não sei responder. Parece um assunto mais pertinente à atividade de um editor ou de um divulgador.