Nesta entrevista para o Pernambuco, o escritor mineiro Luiz Ruffato fala do seu último romance e defende a coerência de suas obras dentro de um projeto literário
O mineiro Luiz Ruffato acaba de lançar Estive em Lisboa e lembrei de você (Companhia das Letras) — terceiro romance do projeto Amores expressos, no qual autores estiveram em várias cidades do mundo com a missão de trazer na bagagem a ideia para uma história de amor. Já foram publicados Cordilheira, de Daniel Galera, e O filho da mãe, de Bernardo Carvalho. O título cosmopolita e a encomenda literária não desviaram Ruffato de seu projeto autoral, em cujo centro está o proletariado. De Ca-taguases a Lisboa, o leitor acompanha as aventuras de Serginho, que busca na capital portuguesa uma vida melhor. Nesta viagem, o personagem carrega consigo a esperança, depara-se com a frustração e descobre a impossibilidade de escapar de um mundo que sempre carregou consigo.
Nesta entrevista ao Pernambuco, Luiz Ruffato — autor de livros como Eles eram muitos cavalos e da série Inferno provisório — fala por que elegeu o proletariado como protagonista de sua obra, do momento literário brasileiro, do poder transformador da literatura na sociedade, entre outros assuntos. “Tento mapear os rumos da classe média baixa, ou do proletariado, dentro de uma sociedade complexa como a brasileira”, diz Ruffato, um autor que nunca abandona o otimismo em relação à capacidade transformadora da literatura. “Eu não tenho qualquer dúvida de que o livro transforma a sociedade. O bom livro é aquele em que o leitor sai uma pessoa diferente de quando entrou. Ou seja, o bom livro modifica a forma de ver o mundo do leitor”, afirma.
De um modo geral, a crítica tem definido Estive em Lisboa e lembrei de você como um “texto mais acessível”, se comparado com os seus outros livros. O senhor concorda? Ou esta definição o incomoda?
Acredito que essas definições têm um sentido muito mais de noticiar o livro do que propriamente estabelecer padrões de qualidade. Quando publiquei Eles eram muitos cavalos, em 2001, parte da crítica classificou-o como um texto difícil, para poucos leitores. No entanto, é o meu título que mais vende: está em sexta edição, foi traduzido para o francês, italiano e espanhol, é estudado em universidades brasileiras e estrangeiras, foi duas vezes adotado em vestibulares. E ninguém afirma, ainda hoje, que se trata de uma narrativa acessível.
De que maneira um livro de encomenda, como é o caso de Estive em Lisboa..., consegue encaixar-se no conjunto de sua obra, pois é notório que o senhor tem um projeto literário bastante definido? Se não fosse encomendado, este romance ganharia vida de qualquer maneira?
Este não é o primeiro nem será o último livro meu escrito sob encomenda. Antes, publiquei De mim já nem se lembra (Editora Moderna) e uma série de sete contos sobre futebol para um canal de tevê. E ambos, mais o Estive em Lisboa e lembrei de você, encaixam-se organicamente dentro do meu projeto literário, que tenta mapear os rumos da classe média baixa, ou do proletariado, dentro de uma sociedade complexa como a brasileira. Todos os meus livros tratam do fenômeno da imigração, do desenraizamento, da desterritorialização, típico da sociedade pós-industrial. Desde Eles eram muitos cavalos, que tem a cidade de São Paulo como personagem principal, é o drama da classe média baixa e sua quase impossibilidade de se constituir como sujeito da própria história, que me interessa. No meu entender, toda a minha obra propõe uma reflexão sobre a história dos brasileiros que buscam um estatuto de cidadania, muitas vezes tendo de se anular para conseguir sobreviver. E, como o projeto Inferno provisório, em seus cinco volumes, acompanha essa discussão até o fim do século 20, tornava-se inevitável abordar a questão da imigração para o exterior, sonho que atinge em cheio o imaginário dos meus personagens.
A ingenuidade do personagem central, Serginho, pode causar no leitor sentimentos como pena e raiva, entre outros. Que tipo de sentimento ele lhe causa e como se deu a construção deste Serginho?
Os personagens fictícios, para ganharem o estatuto de “realidade”, têm antes que convencer o escritor da sua “existência”. Se não o compreendermos em toda a sua complexidade, não conseguiremos criar um narrador convincente, que envolva o leitor e imponha a sua veracidade. Portanto, antes de me sentar para escrever, convivo durante muito tempo com a história a ser construída e seus protagonistas. Se os personagens choram, choro com eles; se riem, rio com eles. Porque se eles me tocarem a ponto de fazer chorar ou rir, certamente conseguirão o mesmo efeito no leitor. No caso do Serginho, às vezes, também senti raiva dele, às vezes, pena, mas, antes, busquei ampará-lo em sua fragilidade, ouvindo-o sem julgá-lo, acompanhando o desdobramento de sua fala sem interrompê-lo, afetado por sua humanidade. E hoje sinto como se tivesse deixado em Lisboa, para cumprir seu destino, um irmão, um parente querido, de quem talvez nunca mais tenha notícia.
Pode-se ler Estive em Lisboa... (e o périplo de Serginho) como a incapacidade total do ser humano de fugir de si mesmo?
A destinação que damos às nossas vidas, eis o que talvez me cause mais admiração de todos os fenômenos da existência. Quando nascemos, uns em melhores, outros em piores condições sociais, nos deparamos com uma gama infinita de rumos para a nossa vida. Entretanto, no momento mesmo em que damos os primeiros passos, já estamos de alguma maneira limitando nossos movimentos em determinadas direções. Claro, os caminhos ainda oferecem variáveis, mas cada nova combinação redefine a próxima e assim sucessivamente. De tal maneira que chegamos a um ponto da nossa vida que temos que parar para repensá-la. Daí as tais crises cíclicas, em que nos sentimos obrigados a fazer um balanço. No fundo, somos indivíduos tentando fugir do passado que nós próprios construímos. Se pudéssemos, acredito que andaríamos com galhos presos em nossos calcanhares, que iriam apagando nossas pegadas à medida que fôssemos andando.
O proletariado está no centro da sua literatura. De que maneira e por que o senhor elegeu este estrato social para “radiografar”, para dar vida, para dar protagonismo literário?
Recém-casados, meus pais partiram para morar em Cataguases, cidade onde nasci, visando proporcionar melhores perspectivas de vida para os filhos. Ela, lavadeira analfabeta, ele, pipoqueiro semianalfabeto, intuíram que a cidade, com uma economia baseada na indústria têxtil, poderia oferecer maiores oportunidades de educação para nós. E então meu mundo, durante a infância e adolescência, foi a dos bairros operários da periferia de Cataguases. Meu irmão era contramestre de uma tecelagem, minha irmã, tecelã, e eu mesmo trabalhei numa fábrica de algodão hidrófilo. Meus amigos todos eram filhos de operários e muitos deles também operários. Eu cursei tornearia mecânica e me mudei para Juiz de Fora, onde trabalhava de dia e estudava à noite. Então, passei no vestibular para comunicação social e tomei contato com o mundo intelectual, convivendo com pessoas que gostavam de conversar sobre literatura. Virei um leitor obsessivo, com veleidades literárias. Na época, decidi ser escritor e a escolha do tema com o qual trabalharia foi óbvia, o universo operário de Cataguases. O meu grande desafio foi encontrar a forma adequada para dar voz a esses personagens, totalmente, até hoje, ausentes das páginas da literatura brasileira.
É muito comum vê-lo defendendo uma função prática para a literatura. Qual é o real poder transformador de um livro de ficção na sociedade e no indivíduo?
Eu não tenho qualquer dúvida de que o livro transforma a sociedade, pois transforma o leitor. O bom livro é aquele em que o leitor sai uma pessoa diferente de quando entrou. Ou seja, o bom livro modifica a forma de ver o mundo do leitor. Ora, se o livro consegue mudar o ser humano, e se a sociedade é constituída de seres humanos, a literatura tem portanto capacidade transformadora. Aliás, nisso reside a sua beleza e sua especificidade: o livro é, em si, subversivo.
Há algum tempo, o senhor abandonou o jornalismo para viver exclusivamente da literatura. Está satisfeito com o resultado? O ambiente literário brasileiro está mais propenso à profissionalização do escritor?
Em 2003, deixei o cargo de secretário de redação do Jornal da Tarde, de São Paulo, para tentar viver de literatura. Viver de literatura, evidentemente, no meu caso, não é viver de direitos autorais, mas dos produtos gerados a partir do livro: palestras, participação em feiras e festivais literários, oficinas, júris de concursos de literatura etc. E não me arrependo. De lá para cá, o mercado literário brasileiro expandiu-se e hoje já existe até mesmo uma programação anual de eventos. É claro que ainda falta muito para que possamos falar em profissionalismo. Mas já avançamos bastante. E se não avançamos mais é por conta de uma visão elitista de que escritor não pode ser uma profissão, mas um sacerdócio. E isso acaba contaminando o sistema editorial, que tem, de um lado, com raras e honrosas exceções, editoras amadoras, que mantêm relações muito pessoais e pouco comerciais com os autores; e, de outro, escritores que fazem leitura de originais de graça e de graça escrevem prefácios, orelhas, releases, resenhas etc.
Todo escritor busca uma voz, um estilo reconhecível na multidão que habita as prateleiras das livrarias. É inegável que o senhor já encontrou a sua voz narrativa. Seus livros são facilmente reconhecíveis. Como seu deu todo este processo de busca e consolidação?
Quando, na década de 1990, decidi-me pela literatura, eu sabia exatamente sobre o que escrever, embora não tivesse ideia ainda do como. Eu trazia, gravadas em meu corpo, inúmeras histórias sobre aqueles que batem cartão de ponto, personagens estranhamente ausentes das páginas dos livros de ficção brasileiros. Não eram as minhas memórias pessoais que afloravam quando me dispunha a escrever, mas os cheiros, os sons, as imagens, os gostos e as sensações térmicas de um espaço e de um tempo comuns. Eu apenas intermediava a manifestação da memória coletiva, filtrando-a em narrativas que, em última análise, se querem devolvidas, por meio do leitor, à memória coletiva, num processo semelhante à ressensibilização de um membro do corpo de um paciente que, após sofrer um trauma, não reconhece mais os comandos enviados pelo cérebro. Gosto muito de pensar que minhas lembranças ficcionais possam despertar no leitor lembranças reais, não porque as histórias narradas tenham se baseado em fatos ocorridos, mas porque elas alicerçam-se em memórias comuns a mim e a todos os que num determinado momento encontravam-se num dado lugar.
Graças à internet e às facilidades tecnológicas há um verdadeiro exército de escritores a batalhar por um espaço entre os leitores. O senhor considera este “excesso” benéfico à literatura brasileira? Ou ainda não se pode mensurar o impacto de toda esta produção?
Eu nunca entendi muito bem essa crítica a respeito de um possível excesso de produção literária. Eu pergunto: que números, então, seriam os ideais? E quem determina isso? Quem detém o poder de vida e morte de um livro é o leitor, não algum burocrata das letras. Eu não vejo excesso. As pessoas estão sentindo necessidade de se expressar. Que se expressem, pois. Publiquem livros, blogs, o que desejarem. Qual o problema? Os que se preocupam com esse “excesso” são os mesmos que querem manter uma reserva de mercado para a elite, que sempre manobraram a política literária brasileira, e que querem manter as livrarias como templos, as bibliotecas como cemitérios e as escolas como formadoras de analfabetos funcionais. Agora, se isso traz algum benefício para a literatura brasileira, não sei. Mas que traz benefícios para a sociedade brasileira, não tenho dúvida. Quanto mais gente escrevendo, mais gente pensando, mais diálogo, mais troca. E isso é o que importa.