Janete Longo/Divulgação

 

Uma dedicatória de Stendhal encerra A Cartuxa de Parma: “To the happy few”. Sim, o romancista parecia prever que aquele seria um de seus livros mais esquecidos, e que poucos felizardos o leriam, mesmo no futuro. Ou quem sabe a dedicatória expressasse algum desejo ou medo secreto de Stendhal? Nunca saberemos. Seja como for, um dos tais leitores sortudos foi Contardo Calligaris, italiano radicado no Brasil há 25 anos, escritor, psicanalista e colunista da Folha de S. Paulo, autor de dois romances editados pela Companhia das Letras: O conto do amor, de 2008, e o recente A mulher de vermelho e branco, thriller contemporâneo que mistura elementos psicológicos e policialescos.


Ambos os livros são protagonizados pelo psicanalista italiano Carlo Antonini, claro alterego de seu criador, a quem Contardo, num lance feliz, compara ao protagonista da Cartuxa: “Você se lembra de Fabrizio Del Dongo, o herói stendhaliano, no meio da batalha de Waterloo, engajado, em tese, do lado de Napoleão, mas sem entender direito de que lado da batalha ele está?”. Pois bem: na entrevista abaixo, Contardo nos conta que Antonini e, no fundo, todos nós somos quele homem. E também discorre sobre a importância da arte da narrativa em nossa vida real, traça analogias entre as atividades literária, policial e psicanalítica e avalia as particularidades que o fato de ser estrangeiro e cosmopolita conferiu à sua literatura. Sua escrita é a obra de um homem em trânsito. 

Você disse, em outra entrevista, que fez um “grande desvio” para chegar à literatura. Era a sua primeira vocação?
Contardo Calligaris — Não sei se o desvio foi “grande”, mas certamente foi longo. Escrever e contar histórias foi minha esperança dos 9 aos 20 anos — talvez um pouco além disso. Mas (desculpe a trivialidade) a vida da gente é feita de encontros, ocasiões, acidentes e por aí vai. Começou com o fato de que cedi à pressão de meus pais para que eu fosse a uma faculdade; logo, no fim da faculdade, tive que me perguntar se iria para a carreira acadêmica ou para a psicanálise e a clínica. Naquela altura, escrever ficção já não cabia na alternativa. Mesmo assim, algo do projeto de escrever histórias permaneceu vivo em mim; e houve amigos cruciais que sempre repetiam que eu devia voltar à ficção (Italo Calvino, por exemplo, e o próprio Roland Barthes).

Seu trabalho como psicanalista e colunista é constante, algo que está sempre se construindo, confundindo-se com sua vida prática. Já seus romances são pontuais. Como é que você separa esses trabalhos?
Bom, talvez o narrador ajude o terapeuta; afinal, uma parte do trabalho psicanalítico e terapêutico consiste em reconstituir a história de uma vida, preenchendo lacunas, imaginando antecedentes, supondo o que os outros fizeram e por quê. Além disso, viver é um trabalho narrativo; não paramos de contar nossa história para nós mesmos, a cada instante, e uma morte tolerável ou mesmo pacífica é aquela que acontece quando a gente viveu uma vida que merece ser contada (isso não significa necessariamente ter vivido uma vida extravagante, mas ter vivido uma vida suficientemente intensa para que possa, eventualmente, ser uma boa história). Então, mesmo quando não escrevo, nunca paro de narrar. A coluna semanal foi e continua sendo, sobretudo, um esforço constante para viver com a intensidade necessária para que ao menos uma experiência, a cada semana, valha a pena ser contada. Também a coluna me ensinou a  escrever para enriquecer, de certa forma, a experiência dos leitores do jornal (e não para parecer inteligente aos olhos de alguns colegas, que é o drama de toda escrita acadêmica ou profissional). Enfim, concretamente, o trabalho de reorganizar fios soltos (sei lá, fragmentos de devaneios, experiências que não vivi, mas gostaria de ter vivido e outras para as quais nunca encontrei um sentido — meus materiais narrativos básicos) coexiste muito bem com o trabalho terapêutico ou com a escrita semanal do colunista.

Enquanto escreve ficção, você precisa isolar-se de seus outros compromissos?
Claro,  quando o plot, uma espécie de escaleta, está pronto, detalhado e no papel, ou seja, quando chega a hora de escrever mesmo, aí, sim, tiro férias, geralmente numa cidade onde me sinto em casa, e só escrevo (redijo) durante 15 dias ou um mês. Para cada romance, isso aconteceu mais de uma vez, obviamente. Até porque, quase sempre, reescrevo várias vezes.

É comum que se pergunte aos escritores se estes pensam nos leitores enquanto escrevem. No seu caso, outra pergunta me ocorre: enquanto escreve, você pensa em seus pacientes, ou em seus colegas psicanalistas?
Não. Quando escrevo, penso, na verdade, na história que eu mesmo gostaria de ler. E, por sorte, isso parece interessar os leitores de minhas colunas, alguns colegas e, sobretudo, muitos outros, que não são nem colegas nem leitores da coluna.

Sua literatura repercute em seu consultório?
Escrevo uma coluna semanal na Folha de S. Paulo desde 1999. Claro que muitos de meus pacientes me leem e, às vezes, comentam ou entendem a coluna como se fosse especialmente destinada a eles. Com os romances pode acontecer a mesma coisa. Mas sempre achei que isso contribui para o trabalho terapêutico mais que outra coisa.

Carlo Antonini é claramente o seu alter ego...
Não é bem assim: prefiro pensar que eu sou o alterego de Carlo Antonini. Aliás, uma leitora me escreveu um e-mail dizendo: “Contardo, você é muito parecido com Carlo”. E recebeu a resposta: “Este é o e-mail de Carlo Antonini; quem é Contardo?”.

Talvez ele seja um dos personagens literários que mais se confundem com seu criador.
Não sei. Esse efeito vale para os leitores que me conhecem. Para um leitor português ou alemão, por exemplo, esse fato é irrelevante. Assim como para o leitor brasileiro médio dos últimos romances de Philip Roth talvez seja irrelevante saber que o autor tem o mesmo câncer que o protagonista. Enfim, é prático: posso imaginar facilmente o que Carlo Antonini faria ou diria em tal ou tal outra circunstância, pois ele é fruto de uma história muito parecida com a minha, ou seja, é um personagem que, de certa forma, não preciso construir. Mas não é só isso: atrás das histórias de Carlo Antonini, há a vontade de examinar ou reexaminar o enigma da relação entre os fatos da vida privada e os movimentos da História. Você se lembra de Fabrizio Del Dongo, o herói stendhaliano, no meio da batalha de Waterloo, engajado, em tese, do lado de Napoleão, mas sem entender direito de que lado da batalha ele está? Somos todos um pouco assim. No meu primeiro romance, O conto do amor, Carlo Antonini, por ter minha idade, se depara com o legado da herança fascista e antifascista e com o da luta armada europeia dos anos 70 e 80. No segundo, A mulher de vermelho e branco, o mesmo Antonini tenta entender sua própria militância contra a guerra do Vietnã nos anos 60 e 70 e o terrorismo depois do 11 de setembro. Na vivência desses momentos e movimentos históricos, muito frequentemente, o que nos orienta (ou desorienta) são os percalços de nossa vida privada. Antonini, por exemplo, deve seu entendimento da guerra do Vietnã a uma história de amor, o entendimento da resistência antifascista à história do pai dele etc. Enfim, tudo isso para dizer que eu precisava de um protagonista parecido comigo.

Você procura, com Antonini, brincar um pouco com a ideia da “autoficção”, para usarmos um termo em voga ultimamente?
Não propositalmente. A narrativa de minha vida é uma coisa. A de meus romances é outra. Acontece que a de meus romances utiliza elementos da de minha vida. Mas isso não é caso de toda ficção?

O final de A mulher de vermelho e branco traz várias referências à expressão “cuide-se”, usada por Grégoire Bouiller em seu famoso e-mail de rompimento com Sophie Calle. Foi proposital?
Amo a obra de Sophie Calle. Mas não foi a frase do bilhete de Grégoire Bouiller que me inspirou. A expressão, no meu ouvido e na minha experiência, é inglesa, “take care”. Em francês, “prenez soin de vous” é francamente pernóstico... Nenhum amigo meu, francês, me diria isso na hora de uma despedida.

Você tem definições interessantes sobre a narrativa: “a arte de nos narrar é nossa arte de viver” ou “nossa capacidade de viver”. Seus autores favoritos reforçam essa ideia?

Em dois sentidos. A literatura é o primeiro repertório moderno das condutas possíveis (o segundo é o cinema, em ordem cronológica). Portanto, a literatura substitui qualquer tratado de ética, para nós, modernos. Fora isso, acho que cada um de nós escolhe um estilo narrativo como estilo de sua vida. Há pessoas que vivem sua vida como um policial investigativo, outras como um monólogo introspectivo, outras como uma aventura. E é uma escolha que não é apenas formal: acho que sempre tentei viver minha vida como uma aventura. O que não significa apenas viver aventuras mais ou menos extraordinárias, mas também (talvez mais ainda) descobrir a aventura no meu cotidiano. Claro, meus autores preferidos acabam sendo, digamos assim, os aventureiros. Minha primeira grande paixão literária foi Conrad; ele viveu uma aventura parecida com a minha: se tornou escritor numa língua que ele aprendeu já adulto.

O fato de ser “estrangeiro” é fundamental em sua literatura. No seu caso, porém, há um elemento de cosmopolitismo bastante forte. Qual foi o papel das cidades ou dos países em que você viveu na sua formação como escritor? Há algum lugar que o tenha influenciado mais que os outros?
Você tem razão. Acho que o que mais me influenciou não foi um país nem uma cidade, foi o fato de estar sempre em trânsito. Mesmo permanecendo num lugar, quase sempre de mala pronta, por assim dizer. É uma condição no limite entre a sensação do desterrado e outra, mais contemporânea, de que não há como ser desterrado num mundo em que somos todos sem pátria. Então, digamos que o lugar que mais me influenciou foram as fronteiras.

Na literatura, o policialesco sempre dialogou bem com a psicanálise. Como acontece em seu livro, policiais e psicanalistas (desde que bem-intencionados) podem realmente ser aliados. Por que esta fórmula funciona?
Como diz Jeff, em A mulher de vermelho e branco, policiais e psicanalistas têm isto em comum: eles não acreditam em coincidências. Não só isso: eles procuram uma verdade que nunca passa de mais uma versão dos fatos. E sabem disso.

No Programa do Jô, ao comentar uma experiência da juventude, você disse que “poderia ser escritor, mas fotógrafo não”, referindo-se a um episódio em que não teria sido capaz, por razões éticas talvez, de fotografar um homem que “cauterizava”, na rua, um tumor externo em seu abdome. Para você, qual a diferença entre registrar uma imagem cruel como esta e simplesmente escrever sobre ela?

Nenhum critério ético aqui. Teria adorado ser capaz de fotografar aquele homem. Me faltou estômago. Mas é mais complicado do que isso: a câmera também funciona como um filtro entre você e o que você vê, enxerga e fotografa, enquanto o escritor estará mais distante depois, no momento de escrever. Mas, na hora, ele olhará sem filtro.

O que você pretende ao escrever ficção? Seu romance mais recente é um thriller, sem dúvida, e flerta com o gênero do entretenimento. Mas você não perde a chance de inserir na trama uma série de reflexões sobre o mundo contemporâneo, como as crises interculturais, o terrorismo internacional e o interesse da sociedade pelos problemas decorrentes da pedofilia. Para você, a literatura tem a função de debater a sociedade atual?
Pretendo contar algumas boas histórias, como as que gosto de ler. E as que gosto de ler são as que me pegam, me seduzem, me divertem e, ao mesmo tempo, enriquecem minha experiência do mundo. Ou seja, aquelas que, uma vez fechado o livro e esquecida a história, fazem com que minha vida seja mais interessante, mais intensa e mais complexa graças àquilo que li e que esqueci, ou quase. E que, aliás, quem sabe, um dia eu leia novamente.

Qual a importância da literatura na sua vida pessoal e profissional?
Como leitor, a ficção nunca deixou de ocupar uma parte considerável de meu tempo. Acho que nunca menos da metade. Como escritor, hoje, todos os meus projetos em curso são de ficção.

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