É comum encontrarmos por aí uma série de definições para a crônica. Tanto Machado quanto Alencar a comparavam a um colibri a esvoaçar pela página. João Paulo Cuenca disse que ela é o pingente do jornal. Martha Medeiros a tem na conta de esponja do cotidiano. Paulo Mendes Campos a considerava a azeitona do pastel cultural. Vinicius, o cafezinho quente pós-refeição e pré-cigarro. João do Rio, um espelho capaz de guardar imagens para o futuro. Alceu Amoroso a chamou de passarinho afogado. Telmo Martino, de pássaro dodô da literatura. Para José Castello, o cronista é um cigano, um nômade entre dois mundos.

Definições: Antonio Prata — que, apesar dos 33 anos, já acumula uma longa experiência de publicação, tanto em livro quanto na internet e na imprensa — não tem a sua. Na verdade, tem, mas não a formula categoricamente: julga que a crônica é um gênero de várzea, numa época em que as várzeas foram asfaltadas. Prefere, portanto, cultivar certa indefinição “taxonômica”. Para ele, o espaço da crônica deve ser reservado a investigações cotidianas, hipercomentários sobre o nada, reflexões carregadas de humor e lirismo — o que vier. Melhor dizer, é claro, que a definição de crônica de Antonio Prata está no livro que lançou no ano passado, pela Editora 34, Meio intelectual, meio de esquerda, reunião de 77 de seus textos publicados na web e nos jornais desde 2004. Mesmo assim, ele arrisca aqui as suas boas opiniões. Na entrevista abaixo, Prata fala sobre o alcance atual da crônica e afirma que, para um escritor de 1,68m, ser visto como um “autor menor” não tem muita importância.

São muitas as definições de crônica. Você tem a sua? Por que a confusão entre crônica e conto é tão comum hoje em dia? Ou antes: por que essas definições preocupam tanta gente?
Acho que a definição de crônica ocupa tanto as pessoas pela própria indefinição do gênero, esse vira-lata que nasceu do cruzamento da literatura com o jornalismo, mas que, apesar de híbrido, é profundamente fértil e capaz de produzir filhotes com as mais diversas caras. Como ela é, antes de mais nada, um espaço no jornal, muitas vezes entra na moldura outros gêneros, da análise econômica ao conto, passando pelo ensaio, pela “pensata”, até pela receita de bolo, o que complica ainda mais a empreitada taxonômica. (Perdoem o “taxonômica”, aprendi a palavra outro dia, estava doido pra usar). Eu não saberia definir crônica. Como o romance ou o conto, há muitos tipos de crônica. Um deles poderia ser descrito como uma lente de aumento num assunto que, desleixadamente, chamaríamos de menor — como se de fato houvesse algo menor sob o céu: não há, tudo é importante, como bem sabem os artistas, os detetives e os neuróticos em geral. Pois bem, essa lente de aumento criaria um hipercomentário, que é uma das formas da crônica — aquela que começa com “Você já reparou que...”. Uma crônica, contudo, também pode ser uma história, um caso, ocorrido ou não. O que a diferenciaria de um conto, então? Deixo a pergunta aos entendidos em Teoria Literária; eu realmente não sei.

Aos 14 anos, você escreveu sua primeira crônica, a respeito da demolição da casa da sua família, um texto que fez a sua mãe chorar. José de Alencar também fazia a mãe chorar ao ler para ela romances em voz alta, quando criança. Sobre o caso, Moacyr Scliar opinou: “A literatura é a única coisa que faz com que um jovem arranque lágrimas de um adulto, sobretudo um adulto importante como é, para cada um, a sua mãe”. Com você, na época, aconteceu algo parecido? O que lhe o fez optar pela crônica e pela literatura?

Olha aqui, apesar de aquele texto ter feito chorar minha mãe e minha irmã, sempre preferi — e levei muito mais jeito para — fazer rir os outros. Não saberia dizer o que me fez optar pela literatura. Nem sei se é tanto uma opção, é mais uma descoberta, né? Como a sexualidade e a preferência por sorvete de creme, em vez de morango. Sem dúvida, ser filho de escritores (Mário Prata e Marta Góes) deve ter influenciado, nos genes e no meio. Também estudei em escolas que sempre incentivaram muito a leitura e me fizeram, desde cedo, gostar de ler.Já sobre a crônica: acho que fui parar aí um pouco por necessidade. Como escritor, você precisa se sustentar, e a crônica é talvez o gênero mais rapidamente vendável. Tornei-me cronista, portanto, acho eu, porque era uma forma de viver da escrita. O que não significa que eu não goste do gênero, gosto muito e vivo defendendo-o dos detratores, que o acusam de ser um gênero menor. Rubem Braga é um escritor menor?

Antonio Candido disse que a crônica é “um gênero menor, graças a Deus”, pois apenas sendo pequena estaria mais próxima da gente e acabaria se tornando, para muitos, um caminho para a vida e a literatura. A crônica pode ter essa função? Para você, que lia os cronistas desde cedo, ela foi uma formadora?
Ó lá! Ó lá! Não falei? Juro que não tinha lido a pergunta ao responder a anterior. A crônica, na maior parte do tempo, lida com o comezinho, o cotidiano, o banal. Mas, oras, nós também não lidamos, a maior parte do tempo, com o comezinho, o cotidiano, o banal? A vida não é gasta, 99,99%, lidando com o comezinho, o cotidiano, o banal? Por que, então, falar do pequeno é ser menor? A vida como ela é é menos importante do que a vida como ela não é? Não acho que uma crônica sobre um estilingue seja, a priori, menor do que um conto sobre o grande amor. Porque, se a crônica sobre o estilingue for boa, ela vai além deste primeiro tema. Ela vai falar sobre a infância, a violência, as memórias de menino e o escambau. A crônica come pelas beiradas. Mas come! Além disso, a crônica também pode falar do grande, e o faz diversas vezes. Por que O amor acaba, do Paulo Mendes Campos, seria menor que uma boa poesia sobre o mesmo tema? Sobre a segunda parte da sua pergunta: sim, a crônica foi fundamental à minha formação, mas não só ela. Acho que escritores se alimentam de todos os gêneros, independentemente do formato que eles pratiquem. As manhas como cronista me ajudam a escrever roteiro, os truques de roteirista me auxiliam no romance e assim por diante.

Ainda sobre o tal “gênero menor”. Você acha que a crônica é vítima de algum tipo de “preconceito” no ambiente literário? Para Luiz Ruffato, muitos literatos torcem o nariz para ela porque a crônica estaria diretamente relacionada ao prosaísmo da associação entre jornalismo e dinheiro.
Sim, ainda há preconceito. Acho que, por um lado, pode ter a coisa do dinheiro, mas, por outro, também, quem sabe, uma ponta de inveja, porque a crônica, ao aparecer em jornais e revistas, é muito mais lida que a maioria dos romances. Parte dos comentários contra a crônica pode ser como a inveja de um músico clássico diante do músico de rock: “São apenas três acordes e ‘She loves you yeah yeah yeah’, isso não é música!”. Mas não acho que o preconceito da alta literatura contra nós, os baixotes da escrita, cause algum mal para além das rodas literárias. Acredito que as crônicas passaram maus bocados nas últimas décadas por outra razão. Da queda do Muro de Berlim em diante, assistimos a uma profissionalização do mundo. O espaço dos cronistas foi ocupado por analistas, cientistas, gráficos, tabelas. A crônica é um gênero de várzea e as várzeas foram asfaltadas. Otimizadas. Impermeabilizadas. E o cronista, esse vira-lata, ficou meio sem lugar. Mas acho que isso está mudando, porque as pessoas percebem a aridez e querem sabor, querem um pouco de humor e lirismo no meio do deserto de números e análises.

Parece que a crônica voltou a interessar o leitor brasileiro e o mercado editorial. Você tem essa impressão? A internet pode estar associada a esse revigoramento? Qual a sua experiência como cronista também de blog? O gênero respira bem fora do jornal, na atmosfera da web?
Eu espero que você esteja certo. Ficaria muito contente, tanto como escritor como quanto leitor. Acho que a internet pode ter o seu papel, mas outra razão é o natural retorno de pêndulo. Ninguém aguenta tanta seriedade, controle, tanto papo sério. Quem sabe, como ervas daninhas, as crônicas brotem entre um infográfico e outro? Sobre a internet: ela recria essa saudável várzea de que eu estava falando. Ali nasce o texto sem compromisso, sem gancho, sem a obrigação de informar, de esclarecer, apenas com a intenção de agradar, de levar graça, lirismo. Sobre o blog: eu sou um blogueiro muito relapso. Raramente escrevo um texto para a internet: gasto todo tempo disponível em meus projetos e obrigações profissionais, quando termino, não quero escrever mais nada. Ironicamente, minha crônica mais conhecida, Bar ruim é lindo, bicho!, que fala dos “meio intelectuais, meio de esquerda”, foi publicada pela primeira vez em um blog.

E seu romance para a coleção Amores Expressos (Prata prepara um livro sobre uma história de amor em Xangai)? Já está pronto? Como foi passar de cronista e contista experiente a romancista estreante?
Obrigado pelo “cronista e contista experiente”! O romance ainda não está pronto. Foi difícil mudar a chave da crônica para o romance. Um gênero chega a ser o oposto do outro. A crônica é um comentário sobre nada, é tirar leite de pedra. Romance não é comentar, é narrar, é transformar leite em pedra, construir a história, os personagens, preferencialmente sem ficar metendo o bedelho, o tempo todo, no que eles estão fazendo. Acho que consegui virar a chave, mas prefiro não dizer que o jogo está ganho antes de ver o livro publicado. Espero que fique bom. Mas, se não ficar, também, tudo bem, sou feliz como cronista. (Não me importo se me tacharem de “escritor menor”: com 1,68m, nunca esperei outra coisa...)


Luís Henrique Pellanda é jornalista e autor do livro O macaco ornamental.

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