Chico Ludermir

“Mercado da Madalena:
cena algo curiosa.
Quem conta aumenta um ponto
Só com dois dedos de prosa
Mas digo: naquela tarde
Juro por Deus, é verdade
Eu virei Chico Pedrosa”


O fato ocorreu no mês de maio de 2011, no Mercado da Madalena. Não escrevi imediatamente por puro abestalhamento. Dei naquela manhã uma aula que acho que alguns alunos devem ter entendido. Saí apressado para fazer uma entrevista com Chico Pedrosa. Eu, recostado num banquinho do mercado, gravador na mão; diante de mim, um box cheio de penduricalhos: pentes coloridos, raladores de coco, espelhinhos de feira. Me olhei nos espelhos: um rosto que desconhecia, mas que me era estranhamente familiar. Não sei por que diabos comecei a assobiar enquanto esperava. Entendi o que acontecia quando Chico chegou: pareceu-me assustado por alguns instantes. Susto de sertanejo, desses que passam logo. Sentou-se a meu lado e me perguntou: “O senhor é pernambucano ou paraibano”? Olhei mais uma vez nos espelhinhos do box. Notei a semelhança: eu não era eu, era Chico Pedrosa moço. O que se segue é a mais pura verdade, juro pela mãe morta de meu pior inimigo. O que se segue, meus amigos e minhas amigas, é o relato da entrevista que Chico Pedrosa fez com Chico Pedrosa.

Tem alguma coisa que você não gosta?
Chico Pedrosa, uma coisa que eu não gosto é de ler cordéis feitos por quem não tem habilidade, por quem não sabe juntar as palavras para fazer as estrofes e nem sabe medir a distância entre uma e outra. Pensam que escrever cordel é rimar, o que nem sempre acontece, porque muitas vezes nem isso eles fazem. Isso me irrita, porque o cordel é uma coisa santa, uma coisa abençoada, uma coisa tradicional que deveria ser mais respeitada. Hoje em dia, nós temos inúmeros cordelistas de primeira linha, de primeira qualidade. Em compensação, temos outra linha que não nasceu para aquilo; deveriam procurar outra coisa para fazer, e não mexer com a poesia popular.

Na minha época já existia isso.

Sempre existiu, mas agora está mais abundante, está chegando com mais força. Hoje em dia, tem gente que chega para mim: “Chico Pedrosa, pega um cordel que eu escrevi”. Quando vou olhar, só leio a primeira estrofe, não tenho coragem de ler a segunda porque não tem nada a ver, está entendendo? Outro dia, recebi um de um camarada lá de Feira de Santana; é meu amigo. Me entregou um cordel e eu botei no bolso, porque sabia que não tinha nada a ver. Quando cheguei em casa, que fui ler, não deu outra coisa: guardei e deixei lá. Não tem nada a ver com cordel. Vamos respeitar a poesia popular, que é bonita, é santa quando é bem feita, bem dirigida e bem medida, como se diz. Existem três coisas: rima, métrica e oração. Eles nem rimam, nem metrificam e nem dão a oração necessária. E dizem que são cordelistas, quando na verdade, tenha paciência, não são.

Mas tem aquele pessoal que só recita.
Nós temos em Caruaru uma menina, Vassula, ela é uma mocinha de seus 14 anos, ela é uma excelente declamadora. Se escreve, eu não conheço nada que foi escrito por ela, ela me perdoe, mas é uma declamadora de primeira qualidade. Em compensação existem bons escritores e bons recitadores. Um por exemplo: o Vinícius Gregório, é formado em advocacia, além de escrever como manda o figurino, declama como ninguém. Não estou nem falando de Antonio Marinho, porque ele é diferenciado. Antonio Marinho faz tudo de primeira qualidade. Existe Felipe Júnior, outro poeta excelente, tanto escreve como declama bem.

E hoje tem mais abertura pro cordel, tem muito preconceito?

Os poetas eruditos, “poetas da rua”, como já dizia Patativa do Assaré, eu os vejo querendo discriminar, está entendendo, mas não chega a tanto. Mas a poesia popular hoje é muito bem aceita, muito conceituada, muito rica. Ela não deixa nada a desejar, apesar de que tem alguns que discriminam. Porque existe o poeta do urbano e o poeta matuto. O “poeta do mato”, como chama Patativa, que me desculpem os da rua, é muito mais autêntico que os da cidade. Os poetas da cidade não veem outra coisa: ferro, cimento, cal, automóvel, lixo, essas bagaceiras. O poeta que nasceu na roça, ele vê e escuta do canto dos passarinhos, os banhos de cachoeira, o trabalho na roça, que é muito da gente mesmo. A estrada, o dia a dia, o amanhecer, o anoitecer. Patativa do Assaré disse: “Poeta, cantô de rua,/ Que na cidade nasceu,/Cante a cidade que é sua,/Que eu canto o sertão que é meu.” Mas, tire uma dúvida, Chico Pedrosa, qual a sua primeira lembrança de poesia?

O meu pai foi cantador, sou filho de poeta. Nossa casa sempre viveu cheia de colegas de meu pai. E eu, na minha meninice, sempre acompanhava meu pai naquelas curtas viagens que ele fazia na vizinhança, nas cantorias à noite. Fui me influenciando com aquilo ali, fui gostando, comecei a escrever, com uns 14 anos de idade. Comecei a escrever algumas coisas com respeito ao cordel, com pé quebrado, como a maioria, e meu pai disse: “Não, aqui tem que ser assim. Faça como eu faço que você vai bem”. E até que eu cheguei, graças a Deus, a fazer como ele queria.
E hoje eu ensino para meus netos lá em Feira de Santana, que já escrevem. Aí eu digo para Pedro Henrique: “Olhe, é para fazer assim, assim e assim”. Ele diz: “Quando eu estiver maior vou viajar com o senhor”. E eu digo: “Muito bem, eu lhe levo para onde você quiser”.

E aquele Sertão do Pajeú? Por que tanta força ali?
Naquele Pajeú, principalmente São José do Egito, que é considerada a terra da poesia, ali na Serra do Teixeira, começou a surgir poetas de primeira qualidade, como os Batista, Lourival Batista, e da Serra do Teixeira se espalhou para Itapetim, onde nasceram tantos poetas que conhecemos. Isso a partir do século 18 e cada dia que passa aumenta mais. Ali o cara tem que saber pisar no chão. É o Agreste paraibano e o Pajeú. Aquele Cariri da Paraíba não é brincadeira não.

Eu ainda vou ver grandes rinhas entre repentistas?
Briga mesmo, não. Existiam estrofes de um para outro, como Lourival Batista (São José do Egito) cantava para Canhotinho (Taperoá). Canhotinho era preto, analfabeto, e Lourival, cantando com ele uma peça feita, disse: “Veio a princesa Isabel/ e desgraçou meu Brasil!”. Canhotinho pegou na deixa e disse: “Quando era injusto o Brasil,/ Os pretos se cativaram;/ O choro dos filhos brancos,/ As mães pretas consolaram,/ E o leite dos filhos pretos,/ Os filhos brancos mamaram!”. Isso ficou para a história.

E quando é que vai ser o momento mais forte para a poesia popular?
Eu me criei lendo, escrevendo e vendendo cordel nas feiras. Hoje eu tenho 75 anos. Em 1954, você tinha 18 anos e já vendia cordel na feira. Só que naquela época, Pernambuco, principalmente o Recife, era um celeiro de poetas, de 58 a 60. Tinha o João Martins de Ataíde, João José da Silva, que tinha uma editora de primeira qualidade no Cais de Santa Rita; José Soares, José Costa Leite, de Condado, até hoje esta lá, Caetano Cosme da Silva e mais uma infinidade de poetas que, além de escrever folhetos, que era como a gente chamava, escreviam romances de 32, 40, 48 páginas como ninguém. Ninguém hoje faz cordéis de 32 páginas; no máximo, 16, a maioria de oito páginas. As histórias eram mais bem contadas. A televisão não existia e o cordel era o jornal do homem do campo. Meu pai saía para as cantorias dele e eu, deitadinho na minha rede. Quando ele chegava, trazia da feira cordéis e jogava na minha rede. Muitas vezes acordei com aquilo.

E nem tinha rádio!
E quem tinha rádio, meu filho? Eu sabia lá o que era rádio... E ninguém ouvia falar nisso em 46, 47, 48! Eu morava em Guarabira, num sítio chamado Pirpiri. O primeiro cordel que meu pai colocou na minha rede chama-se A intriga do cachorro com o gato, que é de um poeta pernambucano lá de Correntes, José Pacheco. Nunca me esqueci. Ele escreveu também A chegada de Lampião no inferno e muitos outros cordéis.

Eu me lembro, eu tinha 12 anos, era 1948. Foi uma alegria para mim! Mas, diga lá, Chico Pedrosa, hoje se vende mais cordel que antes?
Vende mais. O Ceará é quem mais produz cordel. Depois vêm Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. A divulgação, a mídia, ajuda nisso. A Globo está aí mostrando a novela Cordel encantado, um enredo bonito. Ninguém nunca pensou nisso acontecer. Eu não duvido que Allan Sales já esteja planejando escrever sobre aquilo, que Allan é um danado pra isso. Sábado, eu venho aqui no mercado e vou conversar com Adelmo, que é professor universitário e também escreve cordel de primeira qualidade, perguntar para ele se já está escrevendo o Cordel encantado.

Professor universitário escrevendo cordel? Depois do “forró universitário”, tem o “cordel universitário”?
Exatamente, cordel universitário. Fora Adelmo, tem o professor Evilácio, médico e cordelista de primeira qualidade; Zelito Nunes; Felipe Júnior, que é professor, e Ismael Gaião, engenheiro agrônomo. De primeiro tinha isso, não. O negócio está evoluindo.

E que conselho você me dá, Chico Pedrosa?
Chico Pedrosa, leia muito, escreva muito. Respeite o que é certo, respeite as pessoas. Pise no caminho do futuro devagar.


Wellington de Melo é escritor e professor.

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