Diário da queda trabalha com duas vias do principal ingrediente da ficção do seu autor, Michel Laub: a memória. O quinto e novo romance do escritor gaúcho nos coloca à frente de um narrador de origem judaica que, através das memórias de sua família, tenta interligar os pontos para compreender (ou seria formar?) sua própria identidade, esfacelada entre traumas e lembranças angustiantes. Alguns pontos da história do narrador se assemelham à vida do também descendente de judeu Laub, que, assim como em seus romances anteriores, oferece ao leitor um jogo instigante entre Literatura e uma suposta autobiografia. Porém, mais que oferecer um incômodo causado por essa dúbia simulação da realidade, Diário da queda nos entrega uma ficção com a densidade exata para tratar de uma situação-limite: quando a necessidade de evocar memórias para reviver o passado se torna o próprio futuro. Sobre esse livro, seu universo temático, a relação entre Literatura e biografia e processo criativo, Michel Laub conversou com o Pernambuco.
Imagino que para um descendente de judeu, o universo da religião e da história parece estar sempre presente. E você sempre trabalhou com uma suposta memória em seus romances. Por que só agora resolveu tratar desse tema? O que te levou a ele nesse momento da sua trajetória literária?
Não sou religioso e nem especialmente preocupado pelas questões culturais do judaísmo. Mas claro que isso faz parte da minha história, porque meus pais são judeus e estudei em escola judaica. Então, como sempre mexo com o tema da memória, isso em algum momento teria de aparecer.
Muitos detalhes da vida do protagonista do Diário da queda são idênticos aos seus. E é normal que muitos escritores tragam fragmentos da sua realidade para dentro da sua obra. Mas te incomoda o fato deste, como outros livros seus, ser confundido como uma espécie de relato autobiográfico? Aproveitando o tema, fale um pouco sobre a sua relação entre Literatura e biografia.
Incomodava mais no início, e por isso eu disfarçava mais. No Música anterior, meu primeiro romance, fiz até um esforço para que o cenário não fosse Porto Alegre e as referências não fossem as minhas. Com o tempo fui percebendo que era bobagem. Você não pode fugir daquilo que é, ainda mais se for escritor, porque seus livros não terão valor se algo seu não estiver neles. Agora, esse “algo seu” não é necessariamente sua história real. Pode ser apenas sua inteligência, sua sensibilidade, seu carisma, cada escritor é de um jeito. No meu caso, como trabalho com a memória, usar algumas referências reais ajuda a convencer o leitor de que aquilo “aconteceu”, o que é bom para o livro. Mas isso é um jogo também, e disfarço muita coisa por meio dessa aparência de realidade. Sou eu que escolho o que quero que pareça autobiográfico. No geral, são as coisas menos importantes do livro.
No artigo Narrar o trauma – a questão dos testemunhos de catástrofes históricas, o professor e crítico literário Márcio Seligmann-Silva afirma: “Narrar o trauma tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de renascer”. Acredita ser esse o caso do protagonista de Diário da queda, na medida em que ele tenta, não necessariamente escrever, mas recompor, através das lembranças de seus traumas pessoais, sua trajetória?
Difícil responder. Depois que o livro está pronto, muita coisa pode ser dita sobre ele. Essa frase cairia bem, sim, numa análise do meu livro. Mas durante a escrita o processo é outro, você se preocupa mesmo em levar a história adiante parágrafo a parágrafo, frase a frase. Os grandes sentidos vêm depois, e aí uma análise minha passa a ser equivalente à de um crítico – estamos olhando para algo pronto e tentando extrair sentidos dali. Se o escritor faz a operação inversa, isto é, decide o sentido antes e vai escrever depois, o risco de o livro ficar artificial é enorme.
Nesse sentido, para você, escrever é um ato de cura? Um desejo de renascimento?
Não. Escrever é um trabalho como qualquer outro, com suas angústias e recompensas próprias. No máximo, vá lá, uma tentativa de expressão. Tenho um pouco de implicância com essas definições solenes.
A questão do trauma está muito presente em Diário da queda. São esses traumas (a queda de João, Auschwitz para o avô, a doença do pai) que vão desenhando a evolução da identidade do protagonista. Você acredita que são os resultados de situações-limites como essas que acabam construindo as bases da identidade de um indivíduo?
Em parte, sim, mas não é só isso. Um indivíduo é a soma de todas as experiências, das mais raras às mais banais. Isso é óbvio. Na Literatura, sim, é que fica mais interessante se concentrar nas raras.
Em determinado momento, o protagonista de Diário da queda se queixa da avó, ao afirmar que ela apenas dizia o óbvio e nunca o essencial acerca do avô. Em contrapartida, nada sobre a experiência em Auschwitz está presente nos cadernos deixados por ele. Acredita que o protagonista chegou, enfim, à essência daquele personagem, mesmo estando à margem do real impacto de uma experiência como essa?
Não. O que ele faz é um retrato superficial do avô, e é justamente essa superficialidade que me interessa. Por meio dela é que são discutidas as questões mais importantes da história. Porque o avô é um mistério, e no rastro do mistério é que surge a angústia e a revolta do pai, que por sua vez são herdadas pelo narrador, e aí começa o romance.
O livro é escrito todo em fragmentos, o que alimenta a ideia de que estamos lendo de fato um diário. De que forma essa opção de escrever em fragmentos contribuiu para a narrativa?
Para escrever foi mais fácil, porque pude abrir parágrafos novos quando achava que algum trecho precisava ser mais esmiuçado, coisas assim. Os tópicos com números têm a ver com a estrutura dos capítulos, cujos títulos remetem a listas (“Algumas coisas que sei sobre o meu avô” etc.). Como sempre, depois de pronto o livro, ou ao menos bem adiantada a escrita, é que percebi que essa forma poderia ter a ver com a forma de um diário. Mais uma vez, porém, foi mais por acaso do que por intenção.
O contexto atual da Literatura brasileira é marcado por muitos contistas. Diário da queda é seu quinto livro publicado e seu quinto romance. O que te atrai tanto no romance? Pensa em publicar outro gênero?
Comecei escrevendo contos, fiz isso por muito tempo e depois, não sei bem dizer por quê, parei. Não quer dizer que não vá praticar esse gênero no futuro (ou outros que me interessam, como o Teatro e o roteiro de cinema). O romance ou novela é interessante porque você não precisa tensionar a narrativa tanto quando num conto. Dá para botar uns trechos mais digressivos ali, umas descrições, umas cenas secundárias, o que, ao menos para mim, ajuda muito no ritmo da história. E você não fica tão dependente, como no conto, de escrever um final exato, coisas assim.
Seus romances também têm em comum o fato de serem curtos. Eles nascem naturalmente dessa forma ou você trabalha na intenção de sintetizar ao máximo a história que está contando? Existe um método, um cuidado específico, na criação de um romance curto?
O Diário da queda não é tão curto. Na época da diagramação, o pessoal da Companhia das Letras e eu achamos que valia a pena comprimir um pouco o conjunto, tirando páginas em branco no início dos capítulos e coisas assim. A tipologia também não é muito grande. Então, se fosse em outra editora, com outros padrões gráficos, seria um livro de duzentas e poucas páginas, o que é um tamanho ok de romance. Quanto aos outros livros, sim, eles são curtos. Isso talvez venha do fato de que prefiro me concentrar num drama só, sem construir personagens secundários e recursos do gênero, o que eu – como qualquer escritor com o mínimo de experiência – poderia fazer com facilidade. Nesse sentido, por falarem um drama só sem muita encheção de linguiça, acho esses livros até longos. Os narradores ficam esmiuçando uma única situação por 100 páginas, o que requer um tipo de fôlego, acho, equivalente os de escrever um livro de 400 páginas cheio de histórias paralelas.
No texto A vida própria dos livros, publicado recentemente no seu blog, você diz que um escritor pode ser surpreendido pelo seu próprio trabalho, já que “parte do processo de escrever um livro pode ser como uma sucessão de testes”. Analisando brevemente seus cinco romances, nesse sentido, qual te surpreendeu mais? Por quê?
O segundo tempo eu achei que seria um livro de muito pouco interesse, por causa do ambiente específico do futebol gaúcho dos anos 1980, e acabou sendo meu livro mais aceito até aqui. Essa opinião geral, que me fez pensar no livro novamente e reler trechos aqui e ali, mudou minha percepção sobre ele. Acontece: às vezes mudamos de opinião de acordo com os elogios ou as críticas que recebemos. Não há como um escritor ser infenso a isso, e muito menos isento sobre seu próprio trabalho.
O que te chama atenção na produção contemporânea e de que forma você se enxerga inserido nela?
A diversidade. Muita gente escrevendo sobre muitos temas, de muitas formas, com resultados muito diferentes. Me enxergo como alguém que gosta de contar histórias, algo de que nem todos os escritores gostam.
Você tem rituais de criação? Há uma rotina que gosta de respeitar na hora de escrever?
Em cada livro muda, porque as circunstâncias mudam. Já escrevi dentro de redações, com barulho e tudo, por exemplo, e hoje não tenho mais esse ambiente porque trabalho em casa, no silêncio.
Em algum momento, durante ou depois do processo criativo, a Literatura exige de você um tempo de afastamento? Existe um período de “cansar” da Literatura?
Para escrever, sim. Nunca comecei um livro novo, ou ao menos me dediquei seriamente a isso, antes de lançar e esperar a repercussão do livro anterior. É como se você precisasse se desintoxicar de tudo o que diga respeito a ele – a história, a linguagem, o tom, o ritmo. No meu caso, por escrever livros até um tanto parecidos entre si, esse distanciamento é ainda mais importante.
Talles Colatino é jornalista.