Se este fosse um texto jornalístico corriqueiro, publicado num diário de antanho, ou mesmo num pasquim sensacionalista, e se seu objetivo fosse simplesmente cornetear a novidade e o factual, seria fácil definir, para ele, uma manchete: “Eliane Brum está gestando o bebê de Rosemary!!!” — assim mesmo, com o verbo no gerúndio e três exclamações sequenciais, como prescrevia Nelson Rodrigues. E tudo bem: não haveria prejuízo algum, nem para o jornalismo nem para os envolvidos, pois a notícia é verdadeira e, de acordo com a gestante em questão — uma das grandes jornalistas brasileiras da atualidade, também cineasta e escritora —, trata-se do assunto mais importante abordado na entrevista abaixo, realizada via e-mail durante o último carnaval. Só que o tal bebê, metafórico, é o seu primeiro livro de ficção, finalizado no mês passado e prometido para breve. Um romance: um filho, sim, mas um filho danado, diabólico, vampiresco.
Eliane Brum vai criá-lo, não tem problema, está aí para isso. Preparou-se a vida toda para esse tipo solitário de maternidade — é o que nos revela, nesta longa conversa, a autora de livros premiados como O olho da rua e A vida que ninguém vê. Nela, a entrevistada também nos conta da relevância que sempre conferiu à palavra escrita em seu cotidiano, desde a infância, no Rio Grande do Sul, uma relação intensa de amor, ódio e — por que não? — desejo. “Eu só poderia existir nas palavras”, garante Eliane, que aqui também discorre sobre o potencial transformador do jornalismo e da literatura, a descoberta do sexo (como ideia) nos romances e a influência das missas de sábado em sua carreira como leitora assídua.
Como foi, na infância, o seu primeiro contato com a palavra escrita?
Acho que meu primeiro contato foi subjetivo. Meus pais eram professores de português (meu pai também de história e geografia), e professores que levavam a sério o que faziam. Então, estavam sempre corrigindo redações de alunos nas poucas horas que passavam em casa e especialmente nos finais de semana. Quando não estavam corrigindo provas, estavam lendo livros. Tenho sete e nove anos de diferença para os meus irmãos, por causa da morte de outra filha entre nós. Então, lá em casa todos já sabiam ler — e liam muito. Menos eu. Desde pequena sinto este sentimento de vazio e melancolia que só muito mais tarde fui capaz de nomear. Enquanto eles liam, eu ficava no vazio. Não gostava do mundo nem da vida. Achava árido. Sempre tive uma ótima memória, e uma de minhas memórias mais antigas é este sentimento de vazio, de falta de sentido, sentada no chão com algum brinquedo que não me interessava, enquanto todo mundo lia. Então, eu sentia ódio dos livros, da palavra escrita — mas principalmente cobiça. Eu queria saber o que havia ali que podia salvar as pessoas da miséria dos dias. Decodificar os livros era meu maior desejo. É claro que hoje consigo elaborar isso; naquele tempo, eu só sofria e odiava e invejava.
A primeira vez que li foi na missa de sábado. Minha família comparecia à missa todo sábado no final de tarde. Meu pai tem uma fé profunda, verdadeira. Minha mãe apenas o acompanhava (e ainda acompanha), por amor e por hábito. Meu irmão mais velho se comportava. Meu irmão do meio matava santos durante toda a missa, com estilingadas ruidosas e imaginárias. Eu repetia as últimas palavras do que o padre dizia. E quando chegava a hora do “Santo, santo, santo”, eu continuava dizendo “santo” até o final da missa. Era conhecida por isso, e o padre já esperava a minha performance. Eu era “a guria do santo-santo”. Quando entrei na escola, peguei o panfleto da missa e lá pelas tantas gritei: “Glória, glória, aleluia, mãe, eu li”. Essa foi a primeira frase que li. Glória, glória, aleluia. E esta estreia não determinou uma vida devota.
Há pouco tempo, numa entrevista, você me fez uma pergunta que, herdada de José Castello, costumo dirigir a alguns de meus entrevistados no Paiol Literário. Aproveito para devolvê-la. A literatura é capaz de transformar o mundo? E, ampliando a questão, ela lhe parece tão transformadora quanto o jornalismo pode — ou poderia — ser?
Acredito, sim, que a literatura pode transformar o mundo de cada um. E, assim, mudar o mundo mais amplo, de dentro para fora. Aconteceu comigo. Não da forma mais concreta, pelos fatos, como com outros escritores e leitores. Mas de uma forma mais subjetiva. Eu só encontrei sentido na vida quando fui capaz de ler. De certo modo, foi um glória-glória-aleluia muito pessoal e profano para mim. Daquele dia em diante, passei a me trancar no meu quarto com quatro ou cinco livros e só saía de lá depois de ter lido todos. Comecei com livros infantis, Monteiro Lobato etc., e logo depois já estava lendo os adultos. Minha façanha foi ter lido a obra completa de José de Alencar aos dez anos. Todas as respostas às minhas perguntas eu procurava nos livros, e tudo que eu sabia de sexo, até as primeiras incursões mais literais, veio pelos livros. Passei os primeiros anos só procurando livros com passagens picantes, e devo gratidão eterna a obras como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e Dona Anja, de Josué Guimarães. Meus pais tinham uma biblioteca maior que a de muitas escolas de Ijuí (RS), e eu tinha acesso livre. Lá em casa não havia dinheiro para roupas novas ou refrigerantes (fora aos domingos), mas nunca faltou para os livros e a comida.
Os livros me salvaram. Primeiro como leitora, depois como escritora. Comecei a escrever poesias aos nove anos, por pura melancolia. E descobri que eu só podia existir se tentasse dar forma de palavra ao indizível, eu só poderia existir nas palavras. Assim como a futurologia é perigosa, a preteritologia também é. Mas me arrisco a dizer que, sem as palavras, acho que teria acabado por me matar. Eu não suportaria a dor do mundo se não pudesse transformá-la em palavras. E só acho a vida possível como narrativa. Só existe a vida contada, ainda que ela seja contada para uma única pessoa além de nós mesmos.
Neste sentido, tenho uma convicção profunda de que o jornalismo transforma o mundo. Como repórter, sou uma contadora de histórias reais. E contar histórias reais transforma a vida de quem tem sua história contada — e também a de quem lê a história da vida de outro e descobre que é mais semelhante do que diferente daquele outro, apesar de todas as falsas distâncias. Eu sou uma repórter de desacontecimentos, que conta a história de vidas supostamente comuns. Este é o meu jeito de, à minha pequena e sempre insuficiente maneira individual, mudar o mundo ao contar as histórias da vida invisível. Acredito nisso mais do que acredito em mim mesma. Cada um tem o seu jeito, o meu é este.
Você não gosta do termo “jornalismo literário”, mas é inegável que o jornalismo usa vários recursos da literatura para contar as histórias reais com que se depara. Como é possível misturar esses “truques” literários — nem sempre afeitos àquilo que se considera “verdadeiro” — à necessidade jornalística, tão delicada, de reportar “objetivamente” o real? Que cuidados você toma ao forjar seu texto?
Eu não gosto do termo “jornalismo literário”, embora me sinta bastante honrada quando me identificam com ele, pois sei que me identificam com um jornalismo menos redutor. Sou apaixonada por jornalismo, a ponto de não acreditar que ele precise ser adjetivado para fazer sentido. E, quando se agrega o termo “literário” ao jornalismo, surgem algumas confusões que me deixam bem irritada. Algumas vezes por ignorância, outras por má-fé. Não há permissão para inventar no jornalismo, nem licença poética. Ao contrário. O que eu defendo, e que definiria apenas como “jornalismo”, bom jornalismo, é contar uma história com tantos detalhes, com tantas nuances e com tanta precisão que o leitor diga: “Nossa, parece que eu estava lá”. Ou: “Nossa, eu conheço esta pessoa”.
Infelizmente, parte do jornalismo praticado há um bom tempo — com algumas ótimas exceções, obviamente — se limita a um amontoado de aspas e reduz o jornalista (que se deixa reduzir em geral por preguiça, embora vá culpar o chefe e jurar o contrário) a um aplicador de aspas em série. Ora, ser repórter é assumir o compromisso de contar a história contemporânea da comunidade, do país, do mundo. É produzir documento, sendo consciente disso ou não.
Se você só reproduz aspas, está reduzindo o mundo ao que é falado e, portanto, está enganando o leitor. Por isso, só considero jornalista aquele que apura os sons, os gestos, os cheiros e também os silêncios — afinal, o que não é dito é tão importante quanto o que é dito, assim como a forma com que cada um diz ou não diz o que diz. Acredito no jornalismo que se mantém na zona cinzenta — e não no preto ou no branco.
Fazer jornalismo, portanto, dá um trabalho infernal. Porque eu preciso apurar os sons, os cheiros, os gestos, a espessura da voz, as ranhuras da parede e todo o resto que faz parte de qualquer mundo. Aí vem o sujeito preguiçoso, que se limita à pirâmide invertida e quer sair do jornal em horário comercial, e diz que você está fazendo literatura. Isso depois de você ter entrevistado meia dúzia de pessoas e conferido três sites de meteorologia só para dizer que fazia sol quando determinado crime foi cometido. Esta é a minha implicância com o nome “jornalismo literário”, mas pode ser ignorância minha. E tenho o maior respeito por todas as pessoas que, com este título, estão tentando levar um jornalismo de mais qualidade às redações.
O que é preciso deixar claro é que não há truque no jornalismo. Se você não apurou até a exaustão, pode até ter ganhado um prêmio Nobel de literatura, que vai escrever um texto ruim. No jornalismo, é a qualidade e a precisão da apuração que determinam a qualidade do texto. Muita gente elogia a qualidade do meu texto e eu fico toda faceira com isso, mas não dá para esquecer que me arrebento apurando (às vezes literalmente) — e só por isso, e não por um talento especial, é que consigo escrever um texto que ecoa nas pessoas.
Você tem praticado a literatura no Vida Breve (www.vidabreve.com), blog em que publica crônicas semanais às terças. O que a experiência literária tem lhe proporcionado de novo? Qual é a intenção da sua literatura? Nela, o que você utiliza do jornalismo? E pensa em publicar alguma coisa?
Eu senti necessidade de escrever ficção porque precisava transformar outras partes de mim em palavras. Eu não sou uma coisa só. Sou muitas. E precisava que estas outras, um pouco apagadas pela repórter que eu sou, pudessem emergir para eu me sentir mais completa, ainda que seja impossível atingir a completude.
Acho curioso que os leitores costumem acreditar que, quando escrevo algo na primeira pessoa, aquilo aconteceu comigo e, quando escrevo na terceira, aconteceu com outro. Querem sempre saber se minhas crônicas descrevem fatos reais ou não. E não é isso que importa. A literatura nos atinge quando alcança uma verdade — que não é necessariamente a verdade factual, mas uma outra, mais profunda. Não existe ficção sem verdade — mas uma verdade de outra ordem.
Como repórter, percebi que há uma realidade que só pode virar palavra na ficção. Uma realidade que só a ficção aguenta. E foi por isso, para transformar meu indizível em palavra, que decidi fazer ficção. E talvez isso seja o mais importante desta entrevista, o que eu realmente tinha muita vontade de ter um espaço para dizer.
O Vida Breve, em geral, tem sido um exercício muito prazeroso. Às vezes é enlouquecedor, como tudo que precisa acontecer uma vez por semana em dia certo. Percebo várias Elianes ao longo deste mais de um ano em que estou ali, em tão boa companhia. Não sei se faço crônica, acho que nem sei dizer o que é crônica. Não ligo muito para classificações. Não porque não ache importante; apenas não é o tipo de inquietação que me move. Alguns textos parecem com crônicas que li na minha vida, outros não se parecem em nada com aquele estilo. Se o jornalismo influencia? Claro que sim. Ser repórter não é o que eu faço, é o que sou. Isso é muito definidor para mim. Há mais de 20 anos bato na porta das pessoas, seja embaixo da ponte ou nos palácios, na Amazônia ou no pampa gaúcho ou no deserto do Saara, e entro. Sou privilegiada por ter minha vida enriquecida por uma multidão de histórias. Mas, se ser repórter é o que sou, não é tudo o que sou. É aí que entra a ficção.
Neste carnaval, termino a revisão do meu primeiro livro de ficção. É um romance. A vida toda eu me preparei para escrever um romance. E agora ele está quase pronto. Tem uma verdade nele. A minha. E para mim isso é o suficiente. Foi uma experiência extremamente visceral, de um jeito que nunca tinha vivido. Quem acompanha meu trabalho de repórter sabe que faço reportagem com as tripas, que me entrego inteira. Mas a entrega da ficção é de outra ordem. E durante o período em que escrevi este livro, parte de mim só vivia no mundo que eu criei. Desde que comecei e mesmo agora, uma parte importante de mim ainda está lá, o que torna a vida muito difícil para mim e para quem está perto. Espero que, ao entregá-lo à editora, na sexta-feira pós-carnaval, isso acabe. Uma amiga, tentando me consolar do meu visível sofrimento, disse: “Imagino o que você esteja sentindo, é como se fosse um filho”. É, com certeza é um filho, mas é o bebê de Rosemary.
O jornalismo se apropriou do conceito dramatúrgico de “personagem”. Gostaria que você nos falasse um pouco sobre o risco de se tratar as fontes como personagens fictícios, e sobre a tentação de se reaproveitar esses “personagens” em textos literários. Existe na literatura uma ética similar à do jornalismo?
Acho que ética é ética para todo mundo. Como alguém disse uma vez, a ética do jornalista é a mesma do sapateiro e, portanto, deve ser a mesma do escritor de literatura. Quando fui morar em São Paulo, em janeiro de 2000, me surpreendi que chamassem as pessoas entrevistadas de “personagens”. Era uma coisa das redações de São Paulo e acho que hoje se expandiu para o Brasil inteiro.
Por um lado, acho complicado. Porque pessoas reais não são personagens. São pessoas. Não tenho como analisar com precisão que tipo de efeito isso tem sobre os jornalistas. Mas percebo um tratamento utilitário dos “personagens” por parte dos jornalistas. Como se você precisasse de personagens específicos para preencher uma história. E aí você esvazia a pessoa de sua história ao inverter a única lógica possível, que é a da narrativa, que é contar a história daquela pessoa que você ainda não sabe qual é, que você ainda vai descobrir qual é. Isso também pode levá-lo a enxergar aquela pessoa como alguém que só tem uma coisa para contar. Por exemplo, a sua cirurgia de redução de estômago. Reduz uma pessoa a um fato. E reduz uma pessoa a uma coisa só. Com isso, ao final, você reduz o jornalismo. Como personagem, neste sentido, a pessoa deixa de ter uma história real, com todas as contradições de uma história real — mas você, como jornalista, e o próprio jornal deixam de contar histórias e deixam de falar sobre pessoas reais. Todo mundo perde. Por isso, ao ler alguns jornais e revistas, temos a impressão de ler a mesma matéria do começo ao fim, por mais diferentes que sejam originalmente as histórias. Se perdermos a visão de mundo das pessoas cujas histórias contamos, e que é a nossa garantia de diversidade real, só nos restará uma única visão de mundo, empobrecida e virada de costas para o mundo e para a experiência do outro.
Por outro lado, ao chamar alguém de personagem, está implícito que, por mais dedicação que você tenha, por mais respeitoso que você seja ao escutar a história daquela pessoa sem preconceitos, por menor que seja a sua interferência, em alguma medida aquela história não será toda a verdade. Se você fizer tudo direito, contará uma das verdades possíveis ou, melhor ainda, várias verdades possíveis. De certo modo, toda história real é, em alguma medida, uma ficção. Não poderia ser de outra forma. Nossa própria história contada por nós mesmos é, em parte, uma ficção. Minha mãe terá outra versão sobre a minha história e meu pai, uma terceira. E assim por diante. E todas terão sua parcela de verdade.
Neste sentido, para um jornalismo que ainda defende a objetividade e a isenção total como se esta fosse possível — e não apenas uma busca para sempre necessária, mas inalcançável —, não deixa de ser interessante e provocador o uso da palavra “personagem” atribuído aos entrevistados de uma reportagem. É como assumir um limite. Mas não me parece que esta seja a reflexão que move e dá (ou tira) conteúdo da palavra personagem no contexto atual da imprensa.
O que o jornalismo lhe deu de mais importante? E o que o jornalismo — impresso, no caso — pode dar de mais importante aos leitores? Algo que sempre me chama a atenção quando penso no assunto, e também sou jornalista, é notar que quase todos nos preocupamos com os leitores e, tecnicamente até, com o texto que apresentamos a eles. Mas me parece que esquecemos, muitas vezes, dos não-leitores, como se o jornalismo não os atingisse, como se não fosse feito também para eles. Algo parecido se dá com os escritores. Ou será que é impossível escrever tendo em mente os ágrafos?
Como disse numa resposta anterior, nós contamos a história cotidiana. Isso é muito importante. É importante quando fizemos bem o nosso trabalho, e é terrível quando fizemos mal o nosso trabalho e fraudamos a História. Não necessariamente com mentiras, mas com a redução brutal da realidade. O jornalismo é um aproximador de mundos. Ele dá ao leitor a possibilidade de alcançar o mundo do outro — ainda que o mundo do outro seja a favela logo ali ou a fronteira da Líbia. Dá a oportunidade de perceber que somos mais semelhantes que diferentes.
Mas o jornalismo é algo sempre em construção, inserido na cultura, determinado pelo momento histórico da sociedade onde está inscrito. E é preciso duvidar sempre dele, como por exemplo: por que algumas mortes (e portanto algumas vidas) ganham mais espaço que outras (e a maioria não ganha nenhum)? — e por que algumas vidas supostamente mereceriam ser contadas e outras não? Ou por que os crimes são contados sempre da mesma forma maniqueísta, com um monstro que jamais é reconhecido como parte da humanidade, portanto sempre muito diferente de nós? Por que precisamos de monstros, afinal? Ou por que as torturas dos presos políticos na ditadura até hoje ganham mais espaço que as torturas cotidianas dos presos comuns nas delegacias, cadeias e prisões do país? Enfim, a dúvida é o instrumento básico de todo jornalista, mais do que a caneta, o microfone ou a câmera. E do leitor também. A dúvida como exercício respeitoso na busca das verdades contraditórias de toda história.
O que o jornalismo me deu de mais importante foi a possibilidade de bater na porta do outro e entrar para ouvir a sua história e depois contá-la. A vida é caos — e só consegui encontrar sentido para minha própria vida ao descobrir que toda vida humana pode virar palavra, narrativa. Narrar, afinal, é arrancar a vida de sua essência, do caos, e organizá-la pela palavra para torná-la humanamente possível. Por isso é criminoso quando parte da imprensa afirma que algumas vidas não valem uma história. Eu digo que toda vida vale uma história. E me dedico, em geral, a contar o que chamei de “a vida que ninguém vê”, provando o contrário.
Como repórter, o que me interessa é compreender como as pessoas dão sentido à sua vida — e como — em geral com muito pouco — reinventam a sua vida e forjam um lugar no mundo. Isso é o fabuloso do humano — e é isso que eu persigo como contadora de histórias reais.
Quais foram as suas leituras, Eliane, literárias e jornalísticas? Autores que misturavam os dois ofícios?
Desde os sete anos, sempre li de tudo — até hoje leio de tudo. E leio todos os dias. Posso ler um livro do cânone e o seguinte pode ser um livro de vampiros. Eu adoro vampiros, aliás, sou praticamente uma vampiróloga. Outro livro do cânone e Harry Potter (li todos assim que foram saindo, em dias especiais no sofá, comendo leite condensado de colher). Leio por prazer, e por isso podem ser contadas nos dedos as resenhas de livros que fiz, porque nunca quis transformar ler em trabalho ou obrigação.
Acho muito difícil enumerar meus autores preferidos porque, com certeza, vou esquecer vários que foram e são essenciais. Obviamente li todos os livros do Erico Verissimo e do Jorge Amado. Acho Os Ratos, de Dyonélio Machado, uma obra-prima que deveria ser mais valorizada, assim como Simões Lopes Neto nunca deveria ser nem remotamente esquecido. Tive algumas obsessões ao longo da vida: Balzac, Jack London, Raymond Chandler, Jane Austen, Edgar Allan Poe, Lovecraft e Tanizaki. Alguns livros mudaram a minha vida, como Demian, do Herman Hesse, Germinal, do Zola, e O Morro dos Ventos Uivantes, da Emily Brontë. É claro que gosto de Kafka, Tolstói e Dostoiévski. E devo estar me esquecendo também de alguma outra obsessão. Hoje, tenho quatro autores que me fazem esperar por seu próximo livro com ansiedade: Philip Roth, Ian McEwan, Coetzee e Kazuo Ishiguro.
Meu pai é historiador, sempre contou as pequenas histórias, da família, da cidade, da região — e do país. Foi ele quem ensinou a nós todos, seus filhos, o valor das pequenas grandes histórias, a grandeza inerente a qualquer pessoa, independentemente de sua condição social ou da cor da sua pele. Ele nunca nos levou a algum lugar para visitar sem antes nos contar a história no caminho. Seu Argemiro Brum sempre começa a contar qualquer história pela antiguidade clássica, mas mesmo assim eu compreendi a lição que fez de mim quem eu sou.
Mas acho que me tornei escritora quando, aos quatro anos de idade, testemunhei a empregada doméstica lá de casa, que era muito infeliz, escutar uma novela de rádio e rir e chorar e, quando acabou, gostar um pouco mais de mim.
Uma pergunta que parece cínica, mas não é: como acreditar no jornalismo?
Duvidando.