Na primeira década do século 21, foram publicadas duas antologias de contos que deram o que falar: Geração 90 – Manuscritos de computador e Geração 90 – Os transgressores. Ambas foram organizadas pelo escritor e crítico literário paulista Nelson de Oliveira e tentaram mapear autores relevantes que começaram a despontar na nossa literatura desde os anos 1990. Participaram, entre outros, autores como Marcelino Freire, Marçal Aquino, Altair Martins, Ivana Arruda Leite, Joca Reiners Terron, que nos anos seguintes à publicação das antologias obtiveram considerável destaque. Por isso, a expectativa ao redor da Geração 00, também organizada pelo mesmo Nelson de Oliveira, e que será publicada em breve pela Editora Língua Geral já cria bastante expectativa: quem são os novos ficcionistas que ajudaram a definir a ficção nesta última década? É adequado agrupá- -los ao redor do termo “geração”? A ficção no Brasil, hoje, tem o que dizer de relevante?
Em conversa por e-mail com o Pernambuco, Nelson de Oliveira aborda essas questões e trata de outros temas, como a importância da internet para a literatura, o crescente interesse pela ficção científica e a sua própria obra de ficcionista.
Quando organizou a Geração 90, você era um escritor que fazia parte do próprio grupo que compunha as duas antologias. O que te motivou a fazer mais uma, dez anos depois?
O convite partiu da editora. Em 2007, durante uma reunião editorial, nos ocorreu a ideia de uma nova antologia, reunindo os melhores ficcionistas surgidos na primeira década do século 21. Essa nova antologia formaria uma trilogia com as outras duas. Em 2004 eu publicara na revista Idiossincrasia, do Portal Literal, um artigo intitulado Vida: modos de brincar, justamente sobre a Geração Zero Zero. Esse artigo foi incluído posteriormente em meu livro A oficina do escritor (Ateliê Editorial, 2008). De certa forma, a ideia de uma nova antologia já estava latente em 2004. Faltava apenas um cutucãozinho do editor, para acordá-la.
Como se deu o trabalho de produção da antologia?
A pesquisa final levou três anos. Ao longo da década eu fui colecionando livros de estreia de novos ficcionistas de todas as regiões do país. As editoras e os próprios autores me enviaram muita coisa. Também pesquisei na internet, nas bibliotecas, nos sebos e nas livrarias. No final, preparei uma lista com 150 autores. O passo seguinte foi selecionar apenas 50, e então reduzir esse número para 21. Os dois principais critérios foram os mesmos usados nas antologias da Geração 90: o autor precisava ter estreado na primeira década do século 21 e ter dois ou mais livros publicados.
Na polêmica matéria da Folha de S. Paulo, a Zero Zero foi acusada de ser mero marketing literário. Gostaria que você comentasse como vê a questão da militância literária, tema que volta e meia causa polêmicas aqui em Pernambuco também.
Esta não é uma antologia convencional. Ela tem uma característica rara. As antologias tradicionais reúnem textos literários: contos, crônicas e poemas. Minha antologia reúne escritores. Ou seja, eu não selecionei os melhores contos publicados, mas os melhores ficcionistas, que foram convidados a produzir ficções inéditas para a antologia. Sobre o marketing, é importante não alimentar uma visão ingênua e idealizada. Vivemos numa sociedade capitalista, de consumo, e o livro é o principal produto do mercado editorial. Então é preciso aprender as regras do jogo para poder jogar bem. É bom lembrar que escritores, mesmo os geniais, também são humanos, demasiado humanos. Balzac foi o mestre do marketing. Proust desejava fama, prêmios e sucesso comercial. Por isso pedia ajuda, sem pudor algum, a todas as pessoas influentes que conhecia, para promover sua obra. Guimarães Rosa também escrevia aos amigos pedindo resenhas. Neruda usou todas as armas e artimanhas lícitas e ilícitas para manter o título de Maior Poeta das Américas e, mais tarde, para ganhar o Nobel. Alejo Carpentier era outro que não se cansava de fazer política literária: bajulava Fidel (García Márquez bajula até hoje) e chegou a dar palestras na Suécia, também de olho no Prêmio. E assim por diante. O marketing jamais diminuiu o valor da obra genial desses mestres.
Para justificar a existência de uma Geração zero zero, você defende, no prefácio do livro, que os 21 autores escolhidos possuem um traço em comum: o bizarro. Confesso, contudo, que conheço a obra de uma parcela dos escolhidos e os acho muito diferentes entre si! O que é esse bizarro na ficção contemporânea? Por que ele seria tão importante?
O recorte geracional empregado em minhas antologias é sempre temporal. No texto de apresentação eu escrevi: “Concordo que, por levar em consideração apenas o recorte temporal, minha definição de Geração zero zero pode parecer às vezes um pouco rígida e arbitrária. Mas, na minha opinião, isso não é um grande problema, porque qualquer definição geracional é, em essência, um pouco rígida e arbitrária. Se você disser que na Geração 90 ou na Geração zero zero há autores e estilos muito diferentes, eu responderei tranquilamente que na Geração Modernista, na Geração Regionalista, naGeração de 45, na Geração Beat, na Geração Mimeógrafo, na Geração Concretista, na Geração Web, apesar de o recorte ser outro, também há autores e estilos muito diferentes. O mesmo vale para a Bossa Nova, o Tropicalismo, o Cinema Novo... O elemento bizarro não é, por esse motivo, a justificativa para a existência de uma Geração zero zero. Ele é, digamos, um bônus. Há pouco tempo fiquei sabendo que um irlandês chamado Michael Foley acabou de publicar um livro intitulado The age of absurdity (Simon & Schuster). Nele o autor defende a ideia de que o nosso cotidiano se transformou num amontoado de bizarrices. A busca da juventude eterna, o consumismo desenfreado e a solidão coletiva das redes sociais, por exemplo, estão injetando altas doses de nonsense na realidade. O jeito, sugere Foley, é aceitar que vivemos num mundo maluco. A melhor parcela da Geração zero zero está escrevendo justamente sobre essa realidade excêntrica.
Qual a importância da internet para a Geração zero zero?
A rede tem sido bastante útil como laboratório e área e testes. Os novos autores, justamente esses que têm a maior dificuldade em conseguir editor, encontraram na internet o local ideal para testar seus escritos. Mas não vejo nada mais além disso. Muitos dos novos prosadores brasileiros surgiram primeiro na maçaroca líquida da web. Apesar disso, a internet e suas redes sociais — sites, blogues, Orkut, Facebook, Twitter etc. — afetam essa geração apenas superficialmente. Se a internet prometeu, no seu primórdio, revolucionar a literatura por meio do hiperlink, essa promessa ainda não foi cumprida. Sites, blogues e miniblogues (Twitter) são ótimos veículos para a literatura, pois condensam numa só pessoa a figura do autor, do editor, do impressor e do livreiro. Também são ótimos veículos para a divulgação da literatura, espalhando resenhas e releases. Entretanto, essas ferramentas digitais não representam por si sós uma nova linguagem literária. Aliás, a web ainda não conseguiu sequer modificar profundamente a estrutura literária off-line. Experiências hipertextuais como o Livro, de Mallarmé, ou O jogo da amarelinha, de Cortázar, ainda dão de dez a zero em qualquer experiência online.
No seu prefácio, você elenca uma série de acontecimentos históricos que marcaram a última década: a eleição de Lula e Obama, o 11 de setembro, o sequenciamento do genoma, entre outros eventos. Como a nossa ficção está enfrentando tantas transformações históricas?
Muito timidamente. Nossos ficcionistas, de modo geral, ainda não foram afetados pelo século 21. Nos contos e romances contemporâneos, as grandes transformações históricas, sociais, científicas e tecnológicas quase não aparecem. Sua influência é indireta, implícita. Os poetas e prosadores brasileiros contemporâneos, os de 25 anos e também os de 90, olham mais para o passado do que para o presente ou para o futuro. Pela primeira vez na História, o ser humano está modificando fisicamente o ser humano, por meio de drogas, próteses e órgãos artificiais, e essa revolução ainda não está aparecendo explicitamente em nossa literatura. A crise criativa atual não é de forma, é de conteúdo. Eu tenho enchido o saco de meus amigos, pedindo insistentemente que parem de escrever sobre os mesmos velhos temas (dramas conjugais, epifanias intimistas etc.) e comecem a procurar outros, menos batidos. Qualquer dia desses, meus amigos me despacharão a pontapés para a Antártida (risos) .
Da mesma forma, nossa ficção tem participado de algum modo dos debates intelectuais e culturais da sociedade contemporânea?
O violento choque de culturas é o grande tema do momento: o estilo de vida ocidental batendo de frente com o estilo de vida oriental. Estados Unidos versus China, Estados Unidos versus terrorismo internacional. ONU versus Irã. Democracia versus ditadura. Dias de fúria no Egito e na Tunísia, protestos organizados e divulgados na internet. O mundo ficou menor no século 21. As várias culturas estão se acotovelando. Documentos, antes secretos, agora estão sendo compartilhados no WikiLeaks. Porém até agora não vi esse tsunami sendo tratado pela nossa ficção. É pena.
A Geração zero zero publica dois escritores que moram em Pernambuco: Sidney Rocha e Walther Moreira Santos. Em linhas gerais, qual a sua leitura desses dois autores e o que em suas obras mais chamou a sua atenção?
São dois autores muito diferentes, ambos talentosos à sua maneira. Tomei contato com a obra de Walther Moreira Santos há bastante tempo. Eu já ouvira falar um pouco dele quando li, em 2003, o romance Helena Gold. A ficção de Sidney Rocha eu fiquei conhecendo em 2009, quando sua editora me enviou a coletânea de contos Matriuska. A meu ver, a característica principal da literatura de Walther é a coragem de procurar no caos sádico e cruel do cotidiano um pouco da doçura e da inocência perdidas. Seus livros denunciam o mundo estranho e bizarro em que vivemos, pedindo um pouco de atenção aos afetos. Já a característica principal da literatura de Sidney é a atrevida e necessária subversão das regras da linguagem culta, da gramática, do bom senso, da lógica cartesiana. Em suas ficções passionais, de pontuação livre, dissonante, modernista, o registro oral seduz e subjuga a moral antiquada, passadista.
Será que o século 21 já “chegou” para os nossos autores?
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