Divulgação/Flip


“O mundo é cruel, meu chapa. Mas vende todo tipo de anestesia a quem puder pagar por isso”, diz o narrador de Pornopopeia (Objetiva, 2009, 475 páginas). Reinaldo Moraes pode até não ser exatamente o cineasta porra-louca Zeca do livro, mas jura que a sua vida é regida pela mesma tensão do personagem, entre a vontade de curtir os prazeres imediatos de drogas e sexo e a necessidade de lidar com problemas também imediatos, como contas e trabalho. Não há como esperar menos hedonismo de uma obra, já em sua terceira tiragem e a ser lançada em formato de bolso, que une em seu título os termos pornô e epopeia, responsável por colocar o nome do autor em evidência 24 anos depois do lançamento do seu último romance, Abacaxi (1985).

Aos 60 anos, Reinaldo conseguiu dar um novo fôlego à literatura veloz, fluente de Tanto faz (1981), clássico da literatura alternativa, mesclando-a com uma linguagem precisa e apurada. Bastante elogiado por colegas e jornalistas, em 2010, Pornopopeia foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Em entrevista ao Pernambuco, o autor aponta como um dos motivos para nunca ter recebido um prêmio o fato de o país ser muito conservador e comenta sobre o processo de edição do livro. Além disso, dispara contra a associação de suas obras com Jack Kerouac e Allen Ginsberg: “Aqui no Brasil se você bota um personagem de classe média mergulhando de cabeça na boêmia hardcore, nego já diz: é beatnik.”.


Apesar do fluxo quase pornográfico de consciência de Pornopopeia, o livro tem sido bastante elogiado pelo texto elaborado e pela precisão. Como você chegou a essa soma de um texto rápido, envolvente, mas que não parece fruto da mera inspiração?
O aspecto “pornográfico” do livro cria, de alguma forma, um efeito de dessublimação da linguagem, afastando-a, por um lado, dos modelos literários aceitos no Patropi, que, apesar de todo o bundalelê midiático, é um país bastante conservador. (Não por acaso, jamais ganhei um prêmio literário.) Agora, se você liga essa vertente a uma escrita elaborada, fora dos cânones da putaria clássica (Carlos Zéfiro e quejandos), o efeito, nas cabeças bem-pensantes, é, em geral, liberador. Neguinho faz viagem na sacanagem sem muita culpa, já que há no texto um compromisso literário inegável.

As 475 páginas de Pornopopeia são a versão editada da obra. Do que foi necessário abrir mão para cortar cerca 300 páginas? Como se edita uma narrativa sem eliminar a fluência dela?
São, na verdade, quase umas 600 em Word (930 mil toques), corpo 12, espaço 1,5. É texto pra caramba. A diagramação é que acomodou essa textalhada em 475 páginas, diminuindo sutilmente o corpo, espaço e mancha gráfica - uma proeza. Originalmente, tinha umas 900 de Word. Mas aí vem o trabalho de peneira, depuração, burilamento, ourivesaria, pente-fino etc e tal. É assim que funciona pra mim (e pra 99% dos escribas). Nessa fase de reelaboração do texto contei com as leituras atentas de uns poucos amigos (um só, na verdade, o Matthew Shirts) e os meus editores, no caso a Isa Pessoa, em primeiro lugar, e o Bruno Porto, da Objetiva - o Bruno saiu recentemente de lá. Só depois desse trabalho, que me tomou um ano e meio, é que surge a fluência à qual você se refere.

Uma das coisas que é dita por Zeca em Pornopopeia me chama a atenção. Ele diz que, fora de São Paulo, tudo é América Latina. Como você descreveria essa São Paulo de Zeca, a metrópole central do continente?
Essa “declaração” do Zeca é uma espécie de profissão de fé urbanóide, com um quê de provocação, que me pareceu adequado ao personagem. Ele não quer ser “brasileiro”, “latino-americano”, “universal”, nem nada que o valha. Ele diz lá, nessa passagem que você citou: “Sou como uma lêndia de chato encravada nos pentelhos urbanos”. O negócio dele é ficar próximo do agito que lhe é familiar.

Precisando fazer um vídeo institucional sobre embutidos de frango, Zeca se pergunta: “Qual a diferença entre arte e embutidos de frango?”. Qual seria a sua resposta para essa pergunta?
Acho que estamos aqui diante de uma das típicas provocações do Zeca. Embora “embutidos de frango” seja uma espécie de mantra negativo na atual conjuntura da vida dele, esse não é, em definitivo, um “tema” do livro. Trata-se apenas de um cineasta frustrado tentando levantar a cabeça um centímetro acima da mediocridade onde se vê atolado.

Você precisou negar algumas vezes a influência da literatura beatnik em Pornopopeia. A diferença do seu livro para obras beatniks é que, no seu livro, a abordagem é mais suja, com menos concessões e sem redenção? É uma mania da crítica associar qualquer obra suja, underground aos beatniks?
Aqui no Brasil se você bota um personagem de classe média mergulhando de cabeça da boêmia hardcore, nego já diz: é beatnik. Mas a sua pergunta já esclarece por si mesma a questão: trata-se de uma “abordagem mais suja, com menos concessões e sem redenção.” Gostei dessa definição. Vou tomá-la de empréstimo, se você não se importar.

Por Tanto faz, você é tido como um dos principais nomes dos anos 1980, junto com Caio Fernando Abreu, Marcelo Rubens Paiva e Paulo Leminski. O que mudou em você daquela época até Pornopopeia? Houve um amadurecimento, se é que era preciso amadurecer?

No meu caso não vejo sinais consistentes de “amadurecimento”. Vejo, sim, sinais inquietantes de decomposição biológica. Fernando Pessoa já nos alertava de que não passamos de “um cadáver adiado que procria”. O cara que escreveu Tanto Faz tinha 30 anos. O que garatujou Pornopopeia tinha entre 54 e 59 anos. Qualquer geriatra te explicaria a diferença entre um e outro, imagino.

Existe algum peso em fazer literatura suja e, portanto, em ser considerado um autor “maldito”?
Cara, se você der uma espiada nas matérias que saíram e continuam saindo sobre o Pornopopeia, assinadas por jornalistas consagrados, professores eméritos e blogueiros acreditados na praça, vai notar que eu ando perigosamente próximo ao mainstream literário, não mais estacionado na margem. Sei que isso é momentâneo e pode mudar a qualquer momento.

O Brasil produziu, desde os anos 1980, bons autores? Você se identifica com a produção de algum escritor brasileiro contemporâneo?
Por ordem alfabética: Alê Barbosa, Ana Ferreira, Andréa del Fuego, Angélica Freitas, Antonia Pellegrino, Antonio Carlos Viana, Antônio Prata, Armando Freitas Filho, Beatriz Bracher, Bernardo Carvalho, Caco Galhardo, Chacal, Chico Mattoso, Carlos Sussekind, Fabrício Corsaletti, Fernanda D’Umbra, Índigo (Ana Cristina Ayer de Oliveira), Ivana Arruda Leite, Joca (Reiners) Terron, Luís Fernando Veríssimo, Márcio Américo, Mário Bortolotto, Mário Prata, Marcelo Mirisola, Marcelo Rubens Paiva, Marçal Aquino, Marcelino Freire, Marcelo Coelho, Márcia Denser, Milton Hatoum, Natércia Campos, Nilo Oliveira, Paulo Freire (o ficcionista e violeiro), Paulo Henriques Britto, Pedro Cavalcanti, Pedro Maciel, Ricardo Lísias, Rodrigo Lacerda, Xico Sá... Putz, devo estar esquecendo um monte de gente bacana... E só falei dos vivos e ativos.

Tanto faz e Abacaxi vão ser relançados pela Companhia das Letras, estreando o selo Má Companhia, com os “excessos da juventude” limados, como você já disse. Você não teme, com isso, que as obras percam seu caráter testemunhal, o de serem o retrato de um autor e de um estilo, com erros e excessos?

Onde você leu que eu limei os “excessos da juventude”? (As aspas saíram em um perfil do autor na Folha de S. Paulo, em 05/12/2010) Bullshitaço. Não limei coisa alguma desse tipo. Só dei umas garibadas pontuais no texto, sem mexer na estrutura das frases nem nos coloquialismos “de épóca”. Mexi onde achei legal mexer pro texto fluir e “dizer” melhor. Como dizia o Murilo Mendes, outro grande mexedor de obras relançadas, posso mexer à vontade, pois não sou meu sobrevivente, sou meu contemporâneo.

Você prepara, atualmente, dois livros, um da coleção Amores Expressos e outro com o título provisório de A travessia de Suez. Pode nos contar um pouco sobre cada um deles? A proposta é manter o estilo de Pornopeia? Quando devem ficar prontos?
O romance dos Amores Expressos é difícil de definir. E vai levar um tempão pra acabar. Mas há pelo menos uma grande história de amor, parte dela passada no México, na capital e na Riviera Maia, locais onde eu estive há uns anos. A travessia de Suez é sobre um cara que, ao morrer e chegar ao “paraíso” (que fica em Paris...), descobre que foi uma encarnação de Deus na terra. Vai daí... Estou na metade da bagaça.

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