Entrevista Milena Britto Ana T. Reis Divulgação

 

Do folhetim do Recôncavo Baiano em que foi publicado em 1882 até agora, O mameluco (editora paraLeLo13S), da escritora baiana Amélia Rodrigues (1861-1926), ficou praticamente intocado. Autora e livro escapam do “memoricídio cultural”, como definiu Constância Lima Duarte (UFMG), graças aos trabalhos de pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que se dedicam desde os anos 1990 aos originais deste e de outros textos da escritora. O lançamento de O mameluco em livro 140 anos depois realça o cenário de produção literária no século XIX pouco receptivo para escritoras mulheres e um contraponto às ideias de identidade nacional disseminadas pelo romantismo.

Em entrevista ao Pernambuco, a responsável pela transcrição do texto original, Milena Britto – professora da UFBA e uma das curadoras da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2022 –, explica a importância de recuperação de O mameluco e quais perspectivas ele nos oferece para adensar a discussão sobre identidade nacional, mestiçagem e atuação de intelectuais mulheres naquele século. Além da transcrição, Milena assina um longo posfácio do livro, que ajuda a apresentar a escritora e seu trabalho para um público mais amplo.


Na apresentação do livro, você coloca O mameluco (1882) em diálogo com Iracema (1865) de José de Alencar. Conta quem foi afinal essa escritora, que faz um contraponto com um dos cânones literários brasileiros e só agora pode ser lida pelo público em geral.


Acho que uma das questões interessantes para pensar em Amélia e José de Alencar é que eles estão falando dos Oitocentos [anos 1800], estão justamente em dois momentos importantes de reorganização sobre os povos indígenas no Brasil. Agora celebramos os 200 anos da Independência, então a gente vê como é recente essa formação cultural caudalosa do Brasil. Especificamente no tempo deles, o ambiente mudava muito rápido e era um momento crucial, porque eles estão pensando estruturalmente numa cultura pátria. Eles já sabem que a grandiosidade pretendida, a Independência do Brasil da Corte, necessitava de um esteio. Esses intelectuais estavam procurando essas bases e essas questões culturais.

Amélia Rodrigues vive num momento no qual se discute, paralelamente à questão da Independência, as discussões pró-abolicionistas, mas provavelmente também no auge da especulação racista e excludente sobre o indígena, porque ele não aparece como parte da cultura. Amélia pensa como vão organizar essa convivência entre as raças, já que não tem como evitar o que está vindo. Ela era uma pessoa branca, não era de classe aristocrática mas teve acesso a uma formação muito erudita, conhecendo as discussões teóricas raciais da época, acompanhando muito as literaturas francesa e alemã. Hoje poderia dizer que foi uma mulher muito política, porque ela se envolveu com tudo no seu contexto.

O mameluco é o único romance onde ela investe no indígena, ainda em diálogo com José de Alencar, tentando ver essa figura como aquela que deveria ser a figura heroica. Amélia tem essa dualidade de que, embora esteja propondo um realocamento dessas figuras – a começar pelo filho da pátria que é vilipendiado, violentado, maltratado –, ela também faz uso das teorias cientificistas da época, então descreve esses elementos com um olhar bem europeu, mostrando que eles são "selvagens", que vão ser "civilizados" com o contato. Amélia está sempre interessada em casamentos de classes sociais diferentes e raças diferentes. Esse romance interessa justamente por causa dessas ambiguidades. É uma complexidade que a gente pode, de certa forma, aplicar à formação cultural brasileira. Por isso, a gente diz que o racismo está desde sempre na estrutura do país, porque quando ela faz uso das teorias cientificistas, por exemplo, ainda que tenha uma visão progressista para época, mesmo paternalista às vezes, ela também faz com que essas diferenças possam ser sempre positivas, que fiquem muito próximas do ideal - que é a sociedade da época, educada, erudita, com capacidades artísticas.


A respeito dos originais do livro, você os pesquisa desde 1997. Como foi da localização até a reconstituição do texto para a publicação de agora?

Como eu sempre gosto de falar, na época da minha graduação, o feminismo não estava na moda, a gente só estudava escritores homens e não se falava de resgate de mulheres. A professora Ana Alice Costa [do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da UFBA] foi a primeira pessoa que encontrou o acervo de Amélia Rodrigues guardado no Instituto Feminino da Bahia. Ela já fazia um tipo de resgate de escritoras baianas que tinham ligações com essas primeiras ondas feministas. O material era um arquivo que tinha manuscritos de todos os tipos, pastas organizadas que continham cartas, rascunhos de poesia, cartas para personalidades e rascunhos de dramas de teatro.

Na época [como estudante de graduação da UFBA sob orientação da professora Ivia Alves] já me interessei pela peça Fausta [dramaturgia de Amélia Rodrigues], por causa da questão racial. Eu estava muito interessada na questão da mulher, porque achei que a mulher do século XIX estava também investida nessas tensões raciais. Então resolvi que, além de transcrever toda a peça, queria estudar a obra de Amélia num conjunto maior. Já no final desse momento da peça, eu achei a informação desse romance [O mameluco] que estava perdido e ninguém tinha notícia. Achei um recorte de uma parte de um dos capítulos onde pude ver que eram publicados no jornal Echo Sant’Amarense. Sei que outras edições do jornal estão microfilmadas, mas não do período que ela escreve, por isso o apoio do Itaú [edital de projetos Rumos Itaú Cultural, 2019-2020] foi fundamental, porque nos permitiu refazer todo esse percurso outra vez. Eu fiquei muito comovida que o original do jornal não é microfilme. É um material que tem muita coisa para estudar, porque tem publicações, anúncios da época. Dá para ver um panorama cultural, do tipo de anúncio, tipo de propaganda, o tipo de evento que havia, a comunicação do Recôncavo toda passando por ali. Por exemplo, na Bahia, durante todo esse período, nenhum desses jornais tinha folhetins de mulheres negras, tinha poucos poemas de homens negros libertos. Então, o que temos ali é a história de mulheres brancas que tiveram acesso à educação e que minimamente puderam publicizar, porque a maioria desse material nem é publicado. Contamos, também, com uma pessoa que conhece muito a língua portuguesa [a revisora Isis Pinto]. Então, ela também ajudou a decifrar palavras que eram usadas naquele momento, que não são usadas mais.

Eu quis fazer um material de apoio porque não acredito que esse possa ser um livro para um leitor comum. É um livro que pode ser perigoso se for lido superficialmente. Ele é interessante [quando lido] com uma visão crítica, porque a gente vai entender o que era [tido como] progressista na época, o que Amélia enfrentou para falar dessas coisas. Como é que ela conseguiu publicar as descrições que ela faz das personagens dentro de uma visão de época completamente racista?


Amélia Rodrigues normalmente é lembrada como educadora. Por que essa imagem ofuscou a escritora?

Na Bahia, Amélia vira uma personalidade absolutamente presente, cultuada como educadora. Tem pesquisas, principalmente de intelectuais do início do século XX, que destacam muito a participação dela na cena não só intelectual católica, mas até política. Ela escreve cartas para os governadores da época interferindo na cena da cidade [Salvador], pedindo, por exemplo, para certas avenidas não serem abertas porque perderiam prédios da Igreja Católica, perderiam abrigos importantes para a cultura e para a estrutura social da época. Também é muito conhecida fora da Bahia porque marcou a história dos Salesianos, com quem tem um vínculo muito forte. É uma das pessoas que está na fundação, também, da Editora Vozes de Petrópolis, colaborando com o Padre Sinzig [editor da Vozes de 1908 a 1913]. Na fase adulta, ela se vincula à religião católica de forma muito fervorosa e acaba sendo uma personalidade muito importante, o braço direito de padres. Amélia Rodrigues ajudava nessa recuperação do prestígio católico, organizando revistas femininas, organizando grupos de mulheres, batalhando em prol, por exemplo, da educação vinculada aos ideais católicos. A instrução passa a ser uma bandeira da Igreja Católica e a caridade também. Então, ela acaba fazendo esse papel por ser uma pessoa muito articulada, muito respeitada, com acesso às mulheres de classe alta e também das classes populares.


Até que ponto a imprensa católica foi usada estrategicamente pela escritora, já que ela era feminista para os padrões da época, mas fortemente influenciada pela Igreja Católica?

Na época de Amélia, não tinha sequer um campo cultural do jeito que a gente conhece hoje. O campo literário muito incipiente era ocupado por homens. As mulheres não só não tinham direito a escrever, a publicar, como, às vezes - principalmente na Bahia e alguns outros estados -, também tinham que usar pseudônimos. Não tinha um lugar onde ela pudesse simplesmente existir. Amélia não era uma mulher casada, seu pai não era poderoso, não tinha fortuna. Não tenho a menor dúvida de que ela foi extremamente estrategista. Ela encontrou o caminho de exercer a profissão, porque é uma das poucas mulheres que exerce atividade intelectual para a subsistência. Ela publica, traduz e recebe por isso. Ela escreve os artigos para as revistas católicas, organiza os eventos e, embora não seja a mesma coisa, entra em um certo mercado incipiente sendo organizado.


Podemos localizá-la entre as primeiras duas ondas feministas no Brasil (1830 e 1870), porque ela escreve O mameluco em 1882, aos 21 anos. Pensando nessa linha do tempo dos feminismos, o que você destacaria de mais importante na sua obra?

Ela está dentro desse diálogo com os feminismos europeus que chegam aqui através de traduções. No caso do Brasil especificamente, é a imprensa e a cultura católica que se alinham. A primeira e a segunda ondas feministas no Brasil estão muito vinculadas a propostas de educação e essa questão passa a ser uma bandeira que a Igreja Católica ergue. Assim que a Igreja começa a perder o seu status, o seu poder de interferência começa a se alinhar por alguns princípios, principalmente a caridade social e a educação. Amélia começa a defender a educação, a defender que as mulheres vão ter que criar os cidadãos brasileiros, formar os futuros políticos e líderes. É um pouco parecido com aquilo que ela estava lendo na imprensa europeia, porque ela traduzia artigos feministas católicos do alemão e do francês. Ela recortava a notícia que os padres enviavam por cartas, colava em um caderno, traduzia e depois dialogava com essas ideias.

Amélia defende a perspectiva de que as mulheres precisam ter um conhecimento que não é só para o lar, que não é só para atender os seus maridos e colorir os salões, mas um conhecimento que envolva geografia, dever cívico, questões filosóficas e históricas. Defende que as mulheres devam acompanhar os conflitos, por exemplo, entre países e sempre coloca a Igreja Católica como um mediador, como um guia. Ela sempre vai defender essa ampliação do lugar da educação, a educação para as massas e a educação formal e rebuscada para as mulheres.


Ser mulher é o elemento que justifica a sua invisibilidade na história literária ou a aliança com a Igreja e a ambiguidade em relação aos temas, como você destaca, são a razão pra isso?

Tem a ver, obviamente, com o machismo. Mas acredito também que, na época, as pessoas não se interessavam pelos temas que ela escreve e ela própria se deu conta disso. No primeiro momento, houve esse afã todo, mas não tem um diálogo, as pessoas não falam desse romance, não têm uma leitura crítica dele. Da época, a gente não tem sequer notícias; inclusive, não sabemos nem se a própria Amélia queria que esse romance aparecesse no conjunto de obras, porque ela própria não o cita em nenhum artigo. Então, acho que o apagamento dessas obras primeiras [da autora] acontece porque não interessava à Bahia conservadora, à Bahia que até hoje mantém os seus laços oligárquicos - principalmente às famílias do Recôncavo, senhoras e senhores de terra que se vinculam a um tipo de poder colonial. A outra parte do trabalho já está vinculada à Igreja e, enquanto a Igreja Católica teve uma cena [cultural], Amélia foi muito cultuada. Mas quando a gente tem a separação absoluta da vida cultural da vida católica, ela não interessa mais como intelectual, então passa a ser a educadora.

O espiritismo adota, também, um culto a ela. Dizem que tem mais de 50 livros psicografados e que os grandes espíritas da Bahia recebem o espírito Amélia Rodrigues. Nunca li esses livros porque, enquanto eu estava pesquisando, tinha medo de começar a misturar os temas das coisas, mas tenho curiosidade para ver se o estilo se aproxima.


A Guerra do Paraguai é o pano de fundo de O mameluco, mais uma proximidade com Alencar que, em Cartas a favor da escravidão, também fala sobre a guerra. Quais outras perspectivas Amélia traz nesse livro?

É com esse pano de fundo que ela também aproveita para ironizar de forma muito contundente os homens poderosos do Recôncavo que eram covardes, que aprisionavam pessoas livres, negros libertos, mestiços pobres e mandavam para a Guerra do Paraguai em troca de patentes militares. No posfácio, trabalhei uma linguagem mais acessível, pensando que vai haver professoras de Ensino Médio que vão poder explicar a obra de José de Alencar e problematizá-la a partir de O mameluco, porque ambos entram num diálogo com essa tradição da mestiçagem brasileira, de escritores que estavam escrevendo sobre isso. O romance Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, é muito mais avançado, escrito mais de 20 anos antes. Ela [Maria Firmina dos Reis] está escrevendo no Maranhão, é a primeira autora negra, escreve dentro da estrutura também da época, mas a gente já percebe a proposta em prol da abolição da escravatura dentro de uma emancipação racial radical.

Já Amélia Rodrigues está dentro de uma outra coisa, que é uma espécie de mediação. Está tentando mediar esses encontros raciais. Não é um livro do que a gente poderia chamar de abolicionista. E nem sei se ela tinha condição de fazer na época, porque a gente tem que pensar a intenção da autora. Nós nunca vamos saber, mas ela já é uma autora corajosa, porque, como ela está escrevendo O mameluco por capítulos [o jornal Echo Sant’Amarense o publicou em 33 capítulos], ninguém sabia o que estava vindo. Ela vai montando uma história, que é também uma história muito violenta. Mostra a revolta organizada por escravizados de forma muito violenta. Então, a descrição não é simples. Expõe o perigo, a violação física para os dois lados, mas também articula a inteligência não de um homem negro, mas de uma mulher negra, mesmo que dentro das teorias raciais cientificistas. Ela sempre está tentando mostrar que a solução para que essas raças compartilhem o que veem é partir de um respeito mútuo. Acredita mesmo que os brancos têm que libertar os escravizados, porque se não libertar, eles vão fazer as revoltas. Tenta mostrar que pessoas indígenas e pessoas negras, quando são tratadas com amor, com atenção, vão "civilizar-se", vão deixar que o coração seja tocado pela compaixão divina. Ela acredita, também, nessa aproximação do cristianismo como uma coisa positiva.

É tudo muito complicado e muito interessante. Amélia usa as teorias cientificistas da época para todas as personagens, brancas, negras, indígenas, então não tem uma incompatibilidade nesse sentido. Eu acho, na verdade, que enriquece mais o trabalho, porque no romance ela está tentando lidar com tudo ao mesmo tempo, uma Bahia conservadora, um romantismo que na Bahia perdura muito tempo.

O estilo dela é um pouco curioso também por essa mistura, um estilo que é bem romântico nas descrições, nos temas e ao mesmo tempo, você vê essas questões cientificistas colocadas de uma forma sem tratamento e de uma forma muito crua. E é interessante até para a gente que estuda literatura entender esses mecanismos sociais, também. Ela lia esses pares masculinos que eram apresentados para ela, como José de Alencar, provavelmente. O que chegava do mundo urbano não chegava no Recôncavo. Ela não teria como ter acesso – lembremos que ela é formada por cônegos, por padres. A educação formal dela é uma educação dentro da estrutura do Recôncavo. Então, ela não está em Salvador, ainda. Ela só vai para Salvador dois ou três anos depois. Dentro da estrutura do Recôncavo Baiano ela inovou porque não ficou restrita ao romantismo praticado, ela já mistura estilos, mas ela também não tem acesso ao que acontecia no Rio de Janeiro, por exemplo, ao Machado de Assis.


Você compõe a curadoria da FLIP 2022 ao lado de Fernanda Bastos e Pedro Meira Monteiro. O que a gente pode esperar dessa segunda experiência de curadoria coletiva da Festa?


Eu acredito que a FLIP já ultrapassou essa proposta de assinatura única, então entendi essa composição como um desdobramento das últimas edições presenciais em que a própria diversidade apareceu. Também a discussão com o público mostrou que precisavam ampliar essa visão. Três curadores de regiões diferentes não quer dizer que um vai trazer algo que o outro desconheça, mas que naturalmente vamos ter de negociar, porque cada um tem sua proposta. Acho que a FLIP se interessa por essas diferenças. Até para propor um tema, pra defendê-lo, a gente tem de fazer uma discussão literária antes de chegar à programação. Não é só a questão de ser um coletivo, mas que a gente discuta e já chegue ao público como um diálogo compartilhado. Também acho interessante pensar num Brasil para além de São Paulo e Rio de Janeiro.

A gente não definiu o tema ainda, há muitas possibilidades, é um impasse entre a gente, mas sabemos que vai ser diferente da experiência da pandemia, porque agora é um encontro presencial, de reaproximação desse Brasil que está tão separado.

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