Dois livros de Samanta Schweblin estão saindo agora no Brasil: Pássaros na boca (vencedor do Prêmio Casa de las Américas, em 2008) e Sete casas vazias, este último inédito, com tradução de Joca Reiners Terron, ambos organizados numa única edição pela Fósforo.
A argentina faz parte de uma leva de escritoras que compõem o chamado “novo gótico latino-americano” — ao que se incluiria aí Mónica Ojeda, Mariana Enriquez, Giovanna Rivero, entre outras —, uma tendência que toca no gótico, no horror, no feminismo e numa espécie de falta de perspectiva da civilização contemporânea.
Samanta Schweblin já teve lançados no Brasil tanto o Pássaros na Boca pela Editora Benvirá quanto outros dois livros, Kentukis, da Fósforo, e Distância de Resgate, da Record, que foram indicados ao International Booker Prize em momentos distintos.
Nesse recém-lançado volume de contos reunidos, a escritora segue em sua fuga daquele medo mais comum provocado por monstros bizarros e assombrações. O medo é causado por uma atmosfera de estranhamento, mas o estranho aqui é arbitrário, pois dependente da perspectiva que se toma. E é justamente isso o que Samanta Schweblin quer investigar em seus contos, segundo revelou autora nesta entrevista ao Pernambuco por e-mail.
Schweblin fala ainda sobre sua relação com o medo, a linha tênue que ela percorre entre o possível e o impossível, os escritores que a influenciaram e os “rótulos duvidosos” que a fascinam.
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Você participou, há algumas semanas, de uma conversa com a escritora Mariana Enriquez – um evento intitulado Há algo de podre na Argentina. Essa ideia de something rotten que não conseguimos localizar bem está presente tanto nos contos de Sete casas vazias e Pássaros na boca como no restante da sua obra. Você poderia falar um pouco sobre essa ideia?
Talvez seja a necessidade de apontar tudo o que assumimos como “normal”, quando na realidade não deveria ser, e ao mesmo tempo [apontar] tudo o que não nos permitimos ver ou pensar por considerarmos estranho ou “anormal”, quando na realidade é muito mais natural e sensato do que acreditamos. Eu sou fascinada por esses rótulos duvidosos. E é aqui que os monstros e medos mais aterrorizantes, geralmente presos no mundo do fantástico, podem se tornar palpáveis, reais em nosso cotidiano.
Em comparação a Pássaros na boca, Sete casas vazias parece ser mais pensado como um bloco conciso, quem sabe como uma casa. Você poderia falar um pouco sobre o que há de assustador e fascinante, para você como escritora, na ideia de casa, um tema recorrente nas histórias de terror?
A casa é o espaço conhecido, seguro, no qual nos permitimos, por exemplo, adormecer completamente e desaparecer do mundo por horas, porque acreditamos estar protegidos. Mas há algo nessa rigidez e nessa resistência que também pode se tornar perigoso. Vivemos em constante mudança, tudo muda: nosso corpo, as pessoas ao nosso redor, a tecnologia com a qual interagimos, as informações que navegamos. Mas as casas permanecem.
Há pessoas que podem viver vinte, trinta, cinquenta anos cercadas pelas mesmas paredes, circulando entre as mesmas dimensões fixas. Se eu pensar sobre isso por um momento, parece uma restrição incrível. É o espaço conhecido, é a zona de conforto, mas como tentar novas soluções e movimentos, presos há anos entre as mesmas dimensões? Quase soa como um paradoxo metafísico, mas e se houvesse algo lá que ainda não entendemos?
O medo, especialmente em Sete casas vazias, aparece com insistência, quase como um personagem. E não parece ser um tópico ligado ao sobrenatural, mas sim ao outro, ao semelhante. Como se um pacto de solidariedade entre as pessoas tivesse sido quebrado. Você poderia falar um pouco sobre o medo em seu trabalho?
Como leitora, sempre fui fascinada pelo medo. Quando um livro me confronta, quando uma história me diz “tenha muito cuidado aqui, porque as coisas não são como você pensava”, sinto um medo quase existencial que me paralisa e me faz prestar toda a atenção. “Atenção total”. Eu amo esse estado. Simone Weil (1909-1943) disse que atenção absoluta, sem mistura, é oração, e que toda vez que prestamos atenção real às coisas, destruímos uma parte do mal que está em nós.
Como leitora, nunca tive um fascínio especial pelo gênero mais explícito de horror. Mas percebi que era nos momentos em que sentia mais medo que minha atenção se tornava plena, total. O mundo inteiro desaparece, e toda a minha concentração está ali. O medo ativa em mim a necessidade urgente de compreender, a tensão me desperta, me concentra, me entrego completamente. Como escritora, procuro o tempo todo replicar no leitor esse estado de que tanto gosto. Sem essa tensão puxando a cabeça do leitor, não sinto que qualquer história que eu tenha na minha cabeça valha a pena contar.
A velhice e a infância são temas aos quais você retorna constantemente, quase como uma obsessão. Nos seus contos, parece haver uma espécie de espaço para o insólito nessas fases. Só na infância e na velhice que somos livres?
Dizem que se um bebê de dois anos dormindo no berço visse sua mãe voando do telhado, o bebê sorriria de alegria; não ficaria assustado, nem pareceria algo fora do comum, porque o bebê ainda não entendeu o que é possível e o que não é. Acho que a ideia de “normalidade”, da qual já falamos, é o gênero literário máximo, é a grande invenção na qual estamos presos.
Não é nada mais do que um pacto social, um acordo. Na China, alguns animais vivos ainda são comidos, mas se no Ocidente lemos uma história sobre uma menina que come pássaros, rotulamos isso como literatura de fantasia. Não é extraordinário o quanto vivemos na ficção?
Gosto desse estado de infância e velhice porque os limites do que é possível e do que não é ainda não foram construídos ou desconstruídos. E, acima de tudo, gosto de narrar esses tipos de personagens a partir de uma perspectiva adulta porque, além da arbitrariedade desses limites, me interessa o que acontece com nossas próprias ideias e crenças quando, como leitores, conseguimos ver essa arbitrariedade por um momento.
Já vi você falar positivamente sobre Bestiário, de Kafka como um dos livros que lhe inspirou a adotar o conto como forma primária de comunicação. Quais outros livros ou autores formaram a escritora que você é hoje?
Meus três primeiros grandes amores foram Bestiário, de Kafka, Final do jogo, de Julio Cortázar e The october country, de Ray Bradbury. Vieram das mãos do meu avô Alfredo e da minha mãe, e não consigo acreditar na sorte que tive de receber aqueles livros quando tinha doze, treze anos. Acho que fundaram meu estilo e meu interesse em um único verão que os li e reli com devoção.
Nos meus vinte anos, fiquei obcecada com a tradição do realismo americano, mas sempre li o realismo a partir do universo do estranho. Quis escrever como Kafka, Cortázar e Bradbury, mas com eles aprendi que para quebrar o mundo do “real” era preciso primeiro criar uma realidade que quase pudesse ser tocada com os dedos. E isso é algo que eu ainda sinto que a tradição americana continua a ensinar lindamente.
A ditadura é um tema recorrente nas várias gerações de autores latino-americanos. Como a sombra da ditadura atravessa o seu trabalho?
Nasci em 1978, era um bebê, em uma família onde pouco se falava do assunto, e eu tinha cinco anos quando voltamos à democracia. Então minhas lembranças estão mais associadas a silêncios, a monstros escondidos sobre os quais é melhor não se falar, ou mesmo à emoção de retornar a uma espécie de normalidade, com o grande desconhecido do que é tão assustador que ficou para trás. Talvez seja por isso que em minhas histórias o monstruoso é sempre questionado e a linha tênue entre o possível e o impossível é tão percorrida. Eu não sei, também é difícil ler a si mesmo.