Thiago Mio Salla foto Cecilia Bastos

 

Deslocamento é uma palavra cara a Vidas secas (1938), principal obra de Graciliano Ramos (1892–1953). Ora deslocamento geográfico, da família de Fabiano em trânsito para o litoral, ora o deslocamento da posição de sujeito dos personagens e suas intempéries. Como definira o crítico e escritor Silviano Santiago, em Graciliano temos uma obra com outra natureza de deslocamento: uma espécie de entrecruzamento de gestos, “entre a reflexão sobre a espontaneidade dos sentimentos cotidianos e o trabalho duradouro que a arte deve exercer sobre eles, a posteriori”.

Como pesquisa que trata dos deslocamentos relativos à chegada das obras do autor alagoano a Portugal, Thiago Mio Salla (USP) monta em Graciliano na terra de Camões (Ateliê Editorial e Nankin Editorial) uma investigação a cruzar mares, a reunir a generosa fortuna crítica e acadêmica dos autores brasileiros. Entre as décadas de 1930 e 1950, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz e, claro, o velho Graça, foram representantes notáveis do romance social de 1930, que teriam inspirado ou orientado o movimento neorrealista português.

Como forma de mapear a trajetória da obra dos escritores, o pesquisador aborda, principalmente, o período de intercâmbio cultural entre os Estados Novos brasileiro (1937–1945) e português (1933–1974). Contudo, reencenando à sua medida um roteiro colonial, o deslocamento Atlântico não foi um movimento pacificado. Desde violências simbólicas, como tentativas de “adaptação para norma europeia do português” (e outras críticas de forte ranço colonial), até interesses políticos desses governos ditatoriais, as obras do alagoano e de seus contemporâneos foram objetos de disputas.

Em entrevista para o Pernambuco, o pesquisador Thiago Mio Salla fala sobre os roteiros coloniais, os movimentos geopolíticos e a fortuna crítica para se pensar o romance social de 1930 e sua recepção lusitana.

 

Em seu mestrado, você investigou a colaboração de Graciliano Ramos em Cultura política: Revista mensal de estudos brasileiros, um dos principais veículos do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do Estado Novo. O alagoano chegou a ser preso durante esse governo, tudo está narrado em Memórias do cárcere. Como você parte dessa aparente contradição (Graciliano vai de preso político a colaborador) em Graciliano na terra de Camões?

Enquanto estudioso da obra de Graciliano Ramos, a relação dele com a revista Cultura política me despertou atenção pelo caráter polêmico e controverso. Quando a gente olha para historiografia e para crítica literária, o modo como essa colaboração do Graciliano foi vista, a gente consegue observar duas linhas de força principais. A primeira, considerando Graciliano como um homem de esquerda e que, de modo sorrateiro, estaria ali para criticar o governo dentro de seu próprio periódico. Essa é uma visão do escritor eivada de pureza e heroísmo, de certa forma tentando salvar Graciliano, ou como se ele precisasse disso. Já a segunda leitura traz um viés acusatório, com o escritor como vendido e cooptado. É uma visão assim como a outra, em sentido inverso, bastante romântica.

As leituras estabelecidas fazem parte de ideias pré-concebidas. A minha perspectiva como pesquisador buscava entender os efeitos de sentido das crônicas de Graciliano, pensando no meio em que ela foi escrita. Pensar a dinâmica discursiva da qual ela faz parte. Esse caráter polêmico e controverso que foi a base do meu primeiro doutorado, que eu vi que poderia ter desdobramento em Portugal, em uma escala mais ampliada dos autores do romance de 1930 com a política Atlântica dos Estados Novos brasileiro e português.


Não se pode ignorar que o intercâmbio literário se deu como parte de uma política governamental, fruto de um acordo cultural firmado entre os Estados Novos brasileiro, de Getúlio Vargas, e português, de António Salazar, em 1941. Além do ganho de termos nossos autores mais lidos lá fora, como você pensa o manejo da literatura como projeto político desses governos?

Esse acordo, de fato, vem atender a demanda de uma intelectualidade, em alguma medida, pelo favorecimento de um intercâmbio direcionado, atendendo interesses do que se chama de pan-lusitanismo ou política Atlântica. A gente percebe que existem dois nacionalismos com interesses distintos, mas que se valem desse processo de aproximação para tirar benefício em causa própria. A questão do pan-lusitanismo pensa a pátria flutuando, tendo o Atlântico como símbolo de elo e unindo todos os espaços para a mesma matriz.

A literatura entra no bojo dessa cultura lusíada, como cimento ideológico que vai ratificar a identificação entre Estado e nação, de dois Estados autoritários e ilegítimos. É pensar como a cultura é instrumentalizada pelo Estado, que tenta se conectar às “essências” nacionais sem intermediários como um Parlamento, em uma forma de se conectar à cultura nacional.


Chama atenção no livro como as ideias de Sul Global e modernidade precária estão sempre tangenciando o debate. Existia, na época, um ranço colonialista por parte de certa crítica ainda apegada à ideia da dependência cultural da antiga metrópole, que buscava entender a literatura brasileira como uma espécie de commodity colonial. De que maneira se deram as tensões e disputas simbólicas em torno dessa travessia do Atlântico pela literatura nacional?

Eu chamo atenção para o papel de dois críticos: João Gaspar Simões (1903–1987) e José Régio (1901–1969). Gaspar Simões diz que o romance brasileiro tem força de expressão, mas não é dotado de profundidade psicológica. Se a gente olhar para José Régio, ele vai dizer, por exemplo, que na produção brasileira predominava apenas uma qualidade de documento e faltava nela uma capacidade de pensar a complexidade dos problemas. O papel que o romance brasileiro exerceu na gênese do neorrealismo é muito difícil de ser externado por eles. É um ranço colonial bem-marcado.

A questão preponderante é uma baixa na produção portuguesa e os escritores neorrealistas ainda na fase de gênese, sendo assim, o livro brasileiro vem suprir uma lacuna no mercado português. Os livreiros portugueses experimentaram essa questão da chegada de um livro mais bem-acabado, mais atrativo, num preço de desvalorização da moeda. Eles perceberam que os livros portugueses perderam espaço no Brasil e o livro brasileiro chegou de surpresa por lá. Isso causa um pavor nos editores e livreiros portugueses.


Tratando de recepção crítica, você lembra como Gaspar Simões defendeu que os artistas, em oposição aos cientistas, não trabalhariam na busca de certezas, mas visariam à “desautomatização” humana. Noutra, Mário Dionísio (1916–1993) descreve Graciliano Ramos como um autor “todo debruçado para dentro do homem”. Enquanto isso, no Brasil, predominavam o realce (pela crítica) de diferenças entre a referida literatura cosmopolita de São Paulo e a literatura regionalista nortista. Como essa recepção de Graciliano se deu entre as disputas sociais e introspectivas?

Mais do que pensar a literatura cosmopolita de São Paulo em oposição à regionalista nortista, existe uma oposição [no Brasil da época] entre a literatura nortista e a literatura dita “intimista”, com preferência para drama burgueses e questões religiosas. O debate literário estava nessa oposição entre intimista e realista. Se pensarmos os antípodas, seriam Jorge Amado (1912–2001) e Otávio de Faria (1908–1980). Isso norteia o debate. O próprio Graciliano vai se colocar ao lado dos autores do romance social de 1930, contra o que ele chama de “espiritismo literário”, de uma literatura de caráter religioso que foge da representação das mazelas do Brasil. A cena literária brasileira estava muito contaminada por essa oposição.

Em Portugal, quando a gente vê umas falas como “Graciliano debruçado para dentro do homem” ou um “escritor introspeccionista”, dá para perceber que o debate não está contaminado por essa oposição entre intimistas e regionalistas. Esses críticos portugueses mais à esquerda não se furtaram a destacar esse olhar intimista de Graciliano. Isso escancara que, mesmo se a gente olhar para Angústia (1936), mesmo com o recalque de Luís da Silva, tem uma dimensão social. Se a gente olhar para esse livro específico, é introspecção exercitada e vertiginosa em profundidade, tem um caráter fantasmagórico de como os traumas se avultam. Em Graciliano a psicologia não se separa da questão social. Para os críticos portugueses fica mais fácil perceber isso. Angústia não teve uma recepção pacificada no Brasil e, se você pegar alguns críticos mais à esquerda no Brasil, eles vão notar o caráter mais introspectivo e vão se colocar contra em certa medida.


Dentro da recepção crítica, é importante localizarmos como a Semana de Arte Moderna de 1922 foi um ponto de virada para a imagem dos autores brasileiros no exterior. Graciliano na terra de Camões traz passagens muito interessantes de como “a ação do modernismo já deu o resultado necessário, libertando os brasileiros […]”. No seu entendimento, em que medida a Semana ajudou a alçar ou abrir passagem para a geração do romance social de 1930 em Portugal?

Esse trecho que você extraiu é de José Osório de Oliveira (1900–1964), [crítico português] que tinha uma relação de correspondência e trocas com Mário de Andrade (1893–1945). José Osório acreditava que a poesia modernista brasileira tinha aberto o caminho para o romance, especialmente o social de 1930. É muito notável o esforço dos artistas de 1922 para desviar os olhos de Portugal. Mas dentro da divulgação da moderna literatura brasileira em Portugal, é importante ressaltar que houve uma troca entre os modernistas brasileiros e portugueses principalmente na esfera privada.

Mas, sem dúvida, a grande força vem, na verdade, da chamada inversão de influência tipográfica — uma espécie de inversão de forças de influência editorial que remonta a Monteiro Lobato (1882–1948) — que editorialmente se expandiu nos anos 1920 por tratar de interesse em problemas nacionais, do arrojo em termos intelectuais e empresariais, da distribuição do livro e da nacionalização da fisionomia do livro.


Dentro das polêmicas da recepção crítica, em Vidas secas de Graciliano Ramos, artigo de Eneida de Moraes (um dos textos reunidos no livro), é atrelado o valor de uma obra de arte à capacidade de ela ser uma “expressão real de vida”. Acho que fica muito latente no seu livro essa tensão com o neorrealismo e uma ideia que ainda é muito cara de “obra engajada”. A crítica de época vivia uma dicotomia entre “obras sociais” e “obras psicológicas”. Como você acha que essa tensão sobrevive no debate crítico hoje?

A primeira questão a ser destacada é olhar para essa aparente dicotomia e reparar os contextos históricos específicos: pós-Primeira Guerra, pós-crise de 1929 que é um momento de alargamento da crise do capitalismo e mais do que tudo isso uma consciência do subdesenvolvimento. A arte dos anos 1930 e Graciliano não vão trazer uma arte utópica. É como pontuou a análise do crítico brasileiro João Luiz Lafetá (1946–1996): 1922 e 1930 estão conectados, mas a fase do primeiro é um projeto estético e do segundo é um projeto ideológico. Isso é contestável. Mas nos anos 1930, de fato, existe uma cobrança para essa posição ideológica chegar em primeiro plano.

Ao olhar para hoje, vejo um alargamento do mercado de bens culturais e a literatura deixa de ter o lugar proeminente que tinha no passado. Eu não a vejo com o mesmo sentido que existia no passado e nem essa cobrança por engajamento político. A cobrança está muito mais ligada a questões de gênero, de raça e etnia. Existe uma demanda, seja de quem produz ou de quem lê. E isso traz uma problematização a respeito do cânone literário do lugar de fala dos escritores e as demandas do momento presente.

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