Há 150 anos, no dia 18 de março de 1871, trabalhadores e trabalhadoras organizados estabeleceram a primeira grande tentativa de autogoverno socialista da história moderna: a Comuna de Paris. Exemplo de emancipação política e econômica, a classe operária parisiense suprimiu os dispositivos burocráticos do Estado burguês e tomou o controle da cidade. O experimento incendiário dos communards durou apenas setenta e dois dias, sendo brutalmente massacrado na semana sangrenta que se deu entre os dias 21 e 28 de maio. Apesar de seu caráter efêmero, a memória da Comuna segue como referência fundamental para revolucionários e revolucionárias ao redor do mundo, inspirados por aquela multidão de anônimos em luta por liberdade.
No entanto, se queremos honrar “a tradição dos oprimidos” de que nos fala Walter Benjamin, precisamos ir além das celebrações e homenagens laudatórias, produzindo experiências rebeldes no presente. Por isso, na entrevista a seguir, converso com Joelson Ferreira (na imagem acima, à esquerda) e Erahsto Felício, autores do livro Por Terra e Território: Caminhos da Revolução dos povos no Brasil (edição independente)*, escrito durante a pandemia de covid-19 com o objetivo de semear a palavra de quem já caminhou muito no enfrentamento ao latifúndio e sistematizou reflexões que podem nos ajudar a avançar na luta política.
Joelson é agricultor, plantador de floresta, assentador da reforma agrária no Assentamento Terra Vista (Arataca-BA), militante e ex-dirigente nacional do MST, além de fundador e conselheiro da Teia dos Povos, articulação que busca construir caminhos para a emancipação dos povos através de uma “Aliança Preta, Indígena e Popular”. Erahsto é historiador, professor da educação básica e contribui na divisão de comunicação da Teia. Repetindo o processo colaborativo de escrita do livro, os autores optaram por responder conjuntamente às perguntas desta entrevista.
Neste momento em que estão ocorrendo celebrações pelos 150 anos da Comuna de Paris, Por Terra e Território é publicado como um chamado revolucionário aos povos no Brasil, em diálogo com outras experiências rebeldes do presente, como a insurreição zapatista em Chiapas, no México, as lutas em curso em Rojava, no Curdistão, e as retomadas dos Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. O que significa falar em Revolução no Brasil de hoje?
Embora a Comuna de Paris siga como referência de poder popular e emergência rebelde, sua enorme centralidade prova o quanto nossos olhares ainda estão voltados para fora de nossas próprias histórias. Canudos, Cabanagem e Contestado, para ficarmos em três exemplos, são experiências que dialogam com nossa gente de forma mais poderosa. E é sobre isto nossa conversa: é fundamental buscarmos nossas próprias referências e aprendermos com as histórias de nossa gente. Precisamos perguntar para o povo Tupinambá de Olivença como eles sobreviveram ao Exército, à Polícia Federal e à Força Nacional na luta travada por seu território há dez anos. Os Caminhos da Revolução dos povos no Brasil, subtítulo de nosso livro, são aprendizados que tivemos ao olhar para nossa história e conversarmos com os mais velhos. Aprendemos que hoje é essencial uma luta que se associe com a defesa dos biomas, ou seja, com a defesa da vida: proteger águas, subir florestas, construir soberania alimentar e ir abandonando a dependência do Capital e do Estado brasileiro, ambos genocidas de nossos povos. As experiências recentes que construíram autonomia no México e no Curdistão nos ajudam a entender que os povos originários estão mais atentos aos caminhos para se tornarem soberanos em seus próprios territórios. Não há dúvidas de que ali e acolá aprendemos com estas lutas. No entanto, as Revoluções não são iguais. Nós aqui temos os nossos próprios caminhos, que são muitos. Todos eles, se trilhados a partir da ação concreta, real, comunitária e, sobretudo, rebelde, poderão levar à derrota de nosso mais longevo inimigo: o latifúndio.
Como se deu a formação da Teia dos Povos e quais princípios a orientam desde então?
A Teia surge a partir da Jornada de Agroecologia da Bahia, em 2012. Ali, no Assentamento Terra Vista do MST (Arataca-BA), reuniram-se povos Pataxó, Pataxó Hã-hã-hãe, Tupinambá, quilombolas e campesinos de diferentes movimentos. Mas, antes de tudo, é importante dizer que a aliança que forma a Teia dos Povos é uma aliança ancestral. Nesse mesmo território, colaborações entre pretos e povos originários têm história desde o período da colonização. Na Mata Atlântica do sul da Bahia, a solidariedade, as trocas e o apoio mútuo foram a condição de sobrevivência ao domínio dos coronéis do cacau, e de tantos outros senhores de escravos que, antes deles, tentaram dominar a região. Então, quando nos encontramos em 2012 para compartilhar sementes crioulas [são aquelas da própria diversidade natural e da seleção dos agricultores tradicionais, sem modificação genética] de milho e feijão (e fazer um acordo de reprodução e disseminação destas), estávamos continuando uma aliança tradicional que nossos ancestrais e encantados construíram. A agroecologia sempre foi nossa bandeira de frente, assim como a luta contra o latifúndio e sua sanha em criminalizar as sementes crioulas. Esses princípios estão no conceito de “Bem Viver” que carregamos desde então. De 2012 para cá, temos falado cada vez mais da necessidade de construirmos territórios, de produzirmos autonomias nas comunidades, de irmos além das cercas. E só será possível cumprir essa agenda se gerarmos riqueza na terra, se trabalharmos para nós mesmos, se formarmos uma federação dos rebeldes Por Terra e Território.
O livro narra o processo de construção da autonomia através de uma articulação entre três momentos: “Passos”, “Caminhadas” e “Jornada”. Como funciona essa divisão? Além disso, vocês dedicam capítulos específicos para cada uma das soberanias que os povos em luta precisam conquistar. Vocês poderiam apresentá-las brevemente para as pessoas que ainda não conhecem o trabalho da Teia?
Hoje, há uma epidemia de ansiedade tomando conta da sociedade, e isto atinge em cheio a militância. As pessoas dizem que querem fazer a luta, que querem fazer Revolução. Mas, se dizemos a elas que “antes de uma boa luta, há que fazer uma boa roça”, elas logo desistem. São muitas as violências que acometem nossos povos, mas a fome, a insegurança hídrica e não ter um teto são violências maiores do que aquelas que aparecem no noticiário policial. Então, a autodefesa começa aí, na soberania hídrica e alimentar. Para explicar que vamos sim fazer o embate direto quando necessário, mas que antes precisamos entender as muitas temporalidades de uma luta, argumentamos que estamos numa viagem. Vivemos numa sociedade racista, machista, capitalista, que nos oprime todos os dias e nos aliena em nosso trabalho. Queremos uma nova sociedade, que supere todas estas violências e liberte nossos povos. Acreditamos que a nossa vitória se dará a partir da tomada de terras do latifúndio e da construção de territórios. Para que isso se concretize, precisaremos caminhar muito (e não há passe de mágica neste sentido). Se você toma um território e não tem água, você ficará refém do Estado; se não consegue prover soberania alimentar, ficará refém de políticos e suas chantagens com cestas básicas etc. Além disso, em cada Caminhada há Passos específicos. Ou seja, para realizar a Caminhada da soberania hídrica, há o Passo da conservação das nascentes, o Passo do sistema de captação de água da chuva e assim por diante. Poderíamos traduzir Jornada por “estratégia”, Caminhada por “tática” e Passos por “tarefa”. Mas o sentido que damos aos termos está mais ligado à construção da autonomia nos territórios do que a um modelo político de maneira geral. Cada território tem uma realidade própria e deve interpretá-la para saber o que é mais urgente. No livro, apresentamos algumas Caminhadas — para soberania hídrica, soberania alimentar, trabalho e renda, soberania pedagógica, soberania energética e, por fim, autodefesa —, mas sabemos que existem outras, que as muitas geografias deste país continental deverão produzir, tantas quantas forem necessárias para vencermos nossos inimigos. Essas que escolhemos apresentar são aquelas que nos pareceram fundamentais para a manutenção do povo no território e para a diminuição das chantagens do Estado e do Capital, que criam fratricídio entre os povos. Dessa forma, quando falamos em soberania pedagógica, falamos de uma formação, de uma educação que não ensine o individualismo capitalista aos jovens, que não promova o abandono dos territórios como a única maneira de “ser alguém na vida” — como a educação formal insiste em fazer.
Em um dos capítulos, vocês argumentam que as Revoluções não podem funcionar como aliadas do colonialismo, ignorando aspectos fundamentais da vida dos povos. Por isso, há que se enfrentar o poder político das religiões, mas sem perder a dimensão da fé do povo e a sabedoria que dela decorre. Qual o lugar da espiritualidade na luta por emancipação?
Quando estudamos as experiências históricas de nossa gente, percebemos que as lutas tiveram profunda conexão com a espiritualidade popular dos povos que as construíram. Se olharmos para a Serra do Padeiro (Território Tupinambá de Olivença, Bahia), vamos encontrar um povo originário completamente imerso em sua espiritualidade, em que a liderança foi escolhida pelos encantados e as orientações destes foram decisivas nas vitórias que tiveram contra o Estado. Precisamos aprender as lições da história! A esquerda que se forjou a partir da contribuição das teorias europeias vem de uma tradição materialista que destinou lugar subalterno à espiritualidade dos nossos povos. Uma esquerda que, na realidade, não compreendeu profundamente a cultura dos povos originários e africanos da diáspora. Sem essa compreensão, nós nunca conseguimos ter no Brasil uma luta revolucionária que alcançasse aqueles que mais foram massacrados pelo colonialismo e pelo capitalismo: os povos indígenas e quilombolas e os povos pretos das periferias. E, no entanto, as tradições destes povos possuem acordos profundos com a luta revolucionária. Quando indígenas fazem retomadas para proteger uma serra que é um ancestral de seu povo, eles tomam terras do latifúndio, enfraquecendo assim nossos inimigos. Toda vez que um quilombo autodemarca suas terras e expulsa os latifundiários invasores, eles estão lutando contra o capitalismo. Se um povo de terreiro faz uma luta para proteger um rio que considera a representação de um vodun ou orixá, temos a proteção de todos os seres que dependem daquele rio. Então, as lutas se encontram; mas elas só constroem aliança se existe respeito à inteligência profunda que cada povo traz consigo em sua trajetória. Há também um conteúdo sutil pouco refletido pelas esquerdas: a espiritualidade dos povos está alicerçada em autocuidados, tanto do ponto de vista da saúde como da retidão ética. Cuidar de nossa gente é um fundamento de luta. O combate aos vícios e doenças do “eu”, desta individualidade que se forma na sociedade capitalista, é uma experiência concreta das tradições espirituais. Esse combate, portanto, é parte da luta por emancipação.
Vocês defendem que o grande desafio revolucionário é parar o latifúndio e rejeitar a economia do Capital, atacando os interesses imperialistas. Como fazer esse enfrentamento a partir dos territórios organizados autonomamente?
Cada terra liberta das sementes dos conglomerados que reproduzem o modelo do agronegócio significa menos lucro para essa economia da destruição. A semente transgênica, que escraviza o agricultor à indústria de sementes, é um modelo muito lucrativo no capitalismo atual, mas é possível vencê-lo construindo territórios com abundância e diversidade alimentar — o oposto do modelo do agronegócio. Dessa forma, a libertação das sementes pode ser um exemplo de como a ação territorial impacta diretamente o imperialismo. Entretanto, derrotar o imperialismo vai além da construção de um outro modelo alimentar. Assim, será preciso que cada terra liberta vire um espaço de organização do poder popular, que expanda o território e se torne exemplo para os olhos e ouvidos do mundo, multiplicando-se por milhares. Nossos territórios precisam ser lugares para que o povo conheça a felicidade que é ter abundância alimentar, água limpa, organização popular e dignidade. A partir daí, há uma outra politização construída, baseada na ação concreta, na experiência revolucionária que não espera o êxito da Revolução para combater o racismo, por exemplo. A nova sociedade está sendo plantada hoje. Não podemos esperar o triunfo contra o capitalismo para nos alimentarmos com dignidade e termos uma casa. É disto que estamos falando quando produzimos territórios com mais autonomia: das ruínas da sociedade vigente nascerá a nova sociedade. Ainda assim, sabemos que contra o imperialismo não adianta só construir um território autônomo, pois a batalha é sem trégua. A defesa destes territórios e a emancipação dos povos é uma tarefa concreta e urgente. E nós já estamos muito atrasados historicamente…
Como vocês escrevem, mais do que propor algo novo, a Teia defende um padrão de união entre povos que pode ser percebido ao longo da história de formação do Brasil. Qual o papel dessas memórias na construção da “Aliança Preta, Indígena e Popular” que vocês convocam?
Nossos mais velhos nos explicam que os guerreiros que morreram lutando contra a escravidão, contra o racismo e contra o sistema capitalista, estão perambulando por nossas terras em busca de luta para vingar seus povos. Quando fizemos a nossa última Jornada de Agroecologia da Bahia, em 2019, no coração das terras dos Payayá, estávamos buscando a memória do grande cacique Sacambuasu, um guerreiro poderoso que venceu muitas batalhas em defesa de seu povo. Se esta memória está conosco, somos mais fortes. Olhamos Palmares e vemos que ali se constituiu uma federação de povos, mas que manteve liderança bantu, que era maioria na região. Daqui tiramos uma lição: a de não se deixar seduzir pelas classes médias e pelos intelectuais que têm fascínio por liderar lutas alheias. É preciso conservar o comando dentro dos povos, com as pessoas que estão na luta ao rés do chão. Mais à frente, olhamos como a Cabanagem conseguiu financiar parte de sua luta através do cacau, que tinha bom valor agregado, e vemos que também os Tupinambá da Serra do Padeiro venceram e produzem bastante cacau. Então, pensamos que é fundamental na nossa luta ter uma produção com bom valor agregado para nos financiar. No sul do país, a Teia do Rio Grande do Sul está produzindo a erva-mate pura folha Seiva Rebelde. O mate é uma cultura enraizada naqueles povos. Produzir de forma agroecológica e fazer o manejo tradicional, herdado dos povos Guarani, é aprender com as experiências históricas. Temos aqui na Bahia o chocolate Terra Vista, que segue a tradição de gerar riqueza a partir da terra (além de termos o domínio da cadeia tecnológica, da muda de cacau ao chocolate). Mas nada disso é novo, apesar das novas tecnologias: as sabedorias estão por aí nas memórias dos mais velhos e nas páginas da história. Os malês rebeldes de Salvador queriam ir para o Recôncavo, fugindo em busca de terras. E já sabemos também que a aliança de que falamos é ancestral: a Cabanagem foi feita por povos distintos; Canudos e Balaiada também. Por conta disso, defendemos que nossas lutas sejam constituídas pela soma de povos e comunidades, e não apenas pela adição de indivíduos. Se quisermos vitórias, teremos que lembrar dos nossos antepassados e saber como eles venceram. É claro que essas experiências sofreram muitas derrotas, e precisamos aprender com seus erros também. Já está claro, por exemplo, que há uma história comum de traição quando fazemos alianças com os brancos das elites. Na experiência recente do país, acaso não vimos a tal conciliação de classes ser golpeada justamente por setores ligados ao latifúndio? A história e a memória são pilares fundamentais na luta por emancipação! Portanto, acreditamos que levar em consideração as diferenças entre nossos povos, reconhecendo suas espiritualidades e tradições, é o caminho necessário para construirmos juntos a grande Aliança Preta, Indígena e Popular.
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* Para saber como adquirir o livro e acompanhar as ações da Teia dos Povos, acesse teiadospovos.org ou entre em contato pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..