“Por uma poética de trincheiras & quebradas”, o coletivo Os Vândalos justificou a transposição do sentimento das ruas para 75 poemas em meio às manifestações de 2013. A edição online de Vinagre: Antologia de poetas neobarracos ficou marcada pelo tom de manifesto e pela rapidez com que circulou nas redes, enquanto a poeira ainda estava suspensa no ar. Daquele ano até agora, multiplicaram-se as manifestações por temas aparentemente diversos, e também as narrativas e os poemas que parecem capturar este estado de alerta em que vive o Brasil.
A professora e pesquisadora da Universidade Brown (EUA), Leila Lehnen, do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, tem se dedicado a estudar como o discurso democrático e a representação da sua crise aparecem na literatura brasileira recente. Interessada nas narrativas produzidas desde o final da ditadura e a redemocratização e em temas como globalização, cidadania, justiça social e direitos humanos, ela alerta que o vocabulário democrático não chega a ser uma completa novidade no momento atual, mas é perceptível o investimento de autores em criar um imaginário político nos livros em alusão ao que se observa no tecido social.
Além de comentar como a democracia tem sido tratada pelos artefatos literários, a conversa com o Pernambuco, oferece aos leitores uma espécie de guia de leitura de obras, autores e autoras implicados nessa discussão.
Seus trabalhos mais recentes são dedicados a analisar como o discurso democrático, assim como a representação da sua crise, se apresentam na literatura brasileira. A partir de dois marcadores — o primeiro, o governo Lula, a partir de 2003, e o segundo, uma série de manifestações e protestos a partir de 2013 — podemos falar que a literatura contemporânea também incorporou a linguagem das ruas, os temas que envolveram o Brasil nos últimos 15 anos?
Acho que esta incorporação não é algo necessariamente novo. Observamos um constante diálogo entre literatura e realidade social no Brasil. Então não é uma surpresa que parte da literatura contemporânea incorporou o vocabulário que circulou durante as manifestações de 2013 ou durante o impeachment de Dilma Rousseff. Em Vinagre: Antologia de poetas neobarracos temos muitas palavras que adaptam o vocabulário dos protestos de 2013. Vemos como o lema das manifestações — “Não é só pelos vinte centavos” — se transforma em um refrão em vários dos poemas. Outro exemplo é o livro do escritor carioca Roy David Frankel, Sessão (2017). Neste livro, o Frankel manipula os discursos a favor e contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff para criar poemas. O livro de Frankel nos mostra o absurdo de muitos dos discursos, enfatizando também o papel que a retórica exerce no âmbito político. Não é somente uma retórica que prima pela ideologia; há muito de ficcional nos discursos que foram feitos para defender o impeachment. Sessão, de certa forma, expõe esta ficcionalidade, minando a autoridade dos pronunciamentos. Tematicamente, o que vemos é que há um certo desencanto em textos mais recentes — estou pensando no romance do Fernando Bonassi, Luxúria (2015), ou n’O verão tardio, do Luiz Ruffato. Ambos apontam à falta de horizontes utópicos que estamos vivenciando neste momento. Não que esta temática seja totalmente nova, mas parece que houve uma retomada deste tema que tenta entender as causas deste desencanto. Há uma reflexão, muitas vezes indireta, sobre como chegamos ao momento atual. Algumas das obras têm respostas mais claras. Já outras não fornecem motivos óbvios, incitando a leitora a chegar às próprias conclusões.
Qual seria esse vocabulário e a partir de que momento especificamente, considerando o período de redemocratização e não apenas a retomada do termo “democracia” mais recentemente, ele é incorporado pela literatura?
O vocabulário democrático na literatura brasileira é muito amplo, aponta para várias facetas da sociedade brasileira e, mesmo quando sinaliza que a democracia brasileira é incompleta, também expressa que houve ganhos democráticos no Brasil, especialmente até 2016. Para além de um “vocabulário” democrático, acho que é importante sinalizar que o panorama da produção literária tem apresentado uma democratização. Embora a literatura brasileira ainda seja um território dominado por autores e personagens masculinos, heterossexuais, brancos e de classe média, conforme indica pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè (UnB), houve uma abertura neste panorama. Esta abertura necessariamente implica incorporação de um léxico mais amplo, de imaginações que não estão limitadas aos espaços urbanos da burguesia, mas que nos apresentam outras formas de viver, de pensar, de criar.
Existe a incorporação de um vocabulário abertamente político, que nos lembra o tom de manifestos, de uma literatura de protesto. Este vocabulário aparece principalmente em algumas das obras que acabo de citar, como Vinagre, Luxúria, Sessão ou, ainda, do Golpe: Antologia manifesto (2016). Há também um vocabulário abertamente político que lida com a ditadura militar e (a falta de) justiça depois da democratização. Nestas obras, termos como “memória” organizam as narrativas. Como vários estudos acadêmicos têm mostrado, há uma explosão de textos que lidam com a ditadura e o legado deste regime desde pelo menos 2011. Muitos desses textos pensam a ditadura a partir da figura do desaparecido, que se transforma em uma metáfora da violência de estado e da inabilidade da sociedade brasileira de lidar com esta violência de forma produtiva.
Outro léxico importante se refere à produção literária periférica. É um vocabulário que se centra na questão dos direitos humanos e da cidadania. Os textos muitas vezes apontam à falta de direitos cidadãos das populações periféricas. Temos narrativas que descrevem violência policial, falta de acesso a serviços básicos como saúde, educação, saneamento, a discriminação enfrentada pelos moradores das periferias, sua invisibilidade. Mas esta mesma literatura também produz um vocabulário de reivindicação, de resistência, de criatividade. Estou pensando por exemplo nos textos do Sérgio Vaz ou da Sonia Bischain ou da Meimei Bastos. Este vocabulário aparece tanto na produção escrita, mas também se manifesta em performances, eventos, iniciativas culturais como o “Slam das Minas” ou então o projeto de renovação urbana “Literatura e paisagismo”, do escritor Sacolinha.
A literatura periférica, por sua vez, comparte um vocabulário com a produção afro-brasileira. Mas não se trata necessariamente de uma mesma produção, embora haja pontos de contato. Por exemplo, a literatura afro-brasileira, que é extremamente rica em termos temáticos, lida com a questão da ancestralidade, das práticas religiosas afrodescendentes. Estes temas não são tão centrais (embora apareçam) na literatura periférica. Podemos nos perguntar: o que este vocabulário referente à ancestralidade e à religiosidade tem a ver com a democracia? Mas se pensamos na exclusão social e simbólica dos afro-brasileiros, então a incorporação deste léxico indica uma democratização do panorama cultural. Por exemplo, o romance Um defeito de cor (2006), da Ana Maria Gonçalves, conta a história brasileira a partir de protagonistas negros. Este protagonismo amplia tanto nossa visão dos agentes históricos quanto a tipologia dos personagens na literatura brasileira. Kehinde, protagonista de Um defeito de cor, é uma mulher forte, emancipada, empreendedora e que também tem o seu lado menos laudável.
A sua leitura é de que a literatura não apenas reflete, mas participa dessa engrenagem de produção da realidade e, portanto, fomenta o debate público a respeito de questões como cidadania, justiça social e democracia. O filósofo Jacques Rancière nos alerta a respeito da crítica à democracia e sugere que o “ódio a democracia” pode ser o ódio à sociedade que luta pelas minorias ou pela igualdade de direitos. Esse “ódio à democracia” também é expresso nas narrativas recentes?
Muitas destas narrativas ecoam um profundo mal-estar com a erosão democrática que estamos observando não somente ao nível político, mas também ao nível social e até mesmo cultural. Há, também, uma tentativa de entender as raízes desta erosão, o porquê desse “ódio”. O que parece faltar são narrativas que propõem um antídoto, uma alternativa. Não que a literatura tenha que ser programática (e em geral não é e quando é, periga tornar-se dogmática). Mas como a função da literatura é, em grande parte, expandir a nossa capacidade de imaginação, de conceber outras visões de mundo, a falta destas visões pode, talvez, ser interpretada como um barômetro de crise democrática. Há narrativas que abordam o enfraquecimento democrático de forma explícita. Dois exemplos seriam A nova ordem (2019), do Bernardo Kucinski ou Sob os meus pés, meu corpo inteiro (2018), da Márcia Tiburi. Alguns desses textos fazem uma conexão entre a erosão democrática agora e a experiência da ditadura e da transição negociada e mal resolvida. Mas há aqueles mais alegóricos que apontam não ao enfraquecimento de todo um sistema político e social, mas sim de certos aspectos deste sistema — por exemplo, os direitos das mulheres, das minorias étnicas, o ecocídio, racismo etc.
Outro campo de interesse seu é o da ecocrítica, a partir de questões como o capitalismo extrativo, a exploração da terra e dos não humanos pelos humanos, o que resvala para a crise ambiental. Tudo isso dialoga com grandes temas (globalização, cidadania, direitos sociais etc). Você acredita que a nossa pouca habilidade para tratar esse tema também é causa da atual crise democrática, já que a economia é um dos motores da sociedade?
Penso que a crise ecológica é a consequência de um sistema onde os direitos são equacionados ao consumo. Neste esquema, quem não consome, não tem direitos ou tem menos direitos. E a natureza se transforma em um objeto de consumo, disponível à extração, inclusive à extração ao ponto de destruição. Este é um esquema que vai contra a ideia (admitidamente idealizada) de uma democracia onde há uma distribuição mais equitativa dos direitos. Dentro desta lógica que privilegia o consumo, se justifica a desapropriação de comunidades ribeirinhas, a invasão de terras indígenas, a derrubada ilegal de florestas. É uma visão de mundo profundamente autoritária que opera a partir de uma lógica de antagonismo e exploração. Em termos mais concretos, a exploração desenfreada dos recursos naturais muitas vezes ignora ou subverte políticas públicas ou até mesmo a legislação que tem como objetivo a proteção do meio ambiente. O aumento do desmatamento na Amazônia desde 2018, por exemplo, está ocorrendo em parte porque houve um enfraquecimento de agências de fiscalização. O extrativismo desenfreado que está provocando as crises ambientais também é um sistema que anula o futuro tanto no sentido material, como no sentido simbólico, epistemológico. Ou seja, sabemos por exemplo o papel que florestas como a Amazônica têm na manutenção d o equilíbrio climático, na contenção de doenças zoonóticas. A biodiversidade é importante não somente para a saúde física do planeta, e portanto de seus habitantes, mas também é um elemento integral de um imaginário muito rico tanto dos povos originais, como de toda humanidade. A destruição do mundo natural nos priva desta riqueza, nos diminui.
Acho que o texto do Davi Kopenawa e do Bruce Albert, A queda do céu (2015) articula isto de forma muito contundente. O Kopenawa mostra como a cosmovisão Yanomami é nutrida por diferentes dimensões: a natureza, a sociabilidade, os rituais, os antepassados, entre outros. São elementos que estão interconectados. A destruição de um elemento acarreta uma crise maior, existencial no sentido tanto da sobrevivência física quanto da sobrevivência cultural e social.
Apesar das conquistas em termos de direitos, as populações consideradas periféricas, os pobres, os negros, os indígenas, não tiveram seus problemas resolvidos — continuam sendo o alvo preferencial da polícia, por exemplo. A pauta do antirracismo deveria vir antes da antifascista e da defesa da democracia, sob o risco de se tornar invisível?
Não acredito que se possa separar estas pautas. O fascismo, assim como muitos outros sistemas autoritários, opera através da negação violenta de sujeitos não hegemônicos. Estes sistemas constroem outros racializados que, em muitos casos, justificam medidas de opressão, de supressão de direitos. Acho, no entanto, que o discurso da democracia no Brasil tem que prestar mais atenção e dar mais visibilidade à pauta antirracista. A democracia, embora seja definida como um sistema político, é também uma visão de sociabilidade. Dentro desta visão, a violência contra afrodescendentes não tem lugar.
O “imaginário bolsonarista” — e mais: a falta de imaginação política — já podem ser vistos nos romances brasileiros recentes?
A literatura brasileira contemporânea tem sido bastante rápida na incorporação, em geral crítica, deste imaginário. O Ricardo Lísias lançou o Diário de uma catástrofe brasileira e o Cristovão Tezza está publicando A tensão superficial do tempo. Ambos lidam com a momento político e social presente. Mas, mesmo antes da eleição do Bolsonaro, já podíamos ver a presença deste imaginário na literatura brasileira. Reprodução (2013), de Bernardo Carvalho, aponta a uma mentalidade paranoica, intolerante e ignorante. A literatura captou este estado de espírito que levou à eleição de Bolsonaro antes de 2018. E captou não somente a mentalidade medíocre, rancorosa, e autoritária que motivou muitos dos votos por Bolsonaro, mas também um cansaço, uma desilusão com a política institucional que também foi fator na eleição dele. Não que todos os textos se centrem na desilusão, embora haja vários deste tipo.
Há também aqueles que apesar de ter um tom menos pessimista, ainda assim repudiam a ideia da política ligada a instituições. Em Vinagre, por exemplo, vemos alguns poemas que expressam um micro horizonte utópico. Esses poemas centralizam a ideia de comunidade, da mobilização, de uma possível agência dentro de certos âmbitos. Mas não há uma ideia de um projeto político mais amplo. São intervenções mais pontuais. A antologia é um reflexo das próprias Jornadas de Junho de 2013 e dialoga com as textualidades das manifestações (os cartazes, hashtags etc.) que circularam durantes estas manifestações. É interessante que esta antologia foi publicada somente online. O próprio formato eletrônico aponta à provisionalidade do artefato literário, mas de certa forma também antevê a provisionalidade das jornadas e de seus ganhos.
Depois de um período de muito interesse pelo Brasil, o país volta a ser presença no noticiário internacional por conta do governo Bolsonaro e da provável pior crise de saúde pública enfrentada pelo país devido às posturas do atual governo. Isso se reflete de que forma no interesse pelos estudos brasileiros?
Sim, os estudos brasileiros aqui nos EUA tendem a estar ligados à sorte econômica do Brasil. Quando a economia brasileira estava forte e o Brasil tinha uma projeção internacional positiva, o interesse em estudar a língua portuguesa e o Brasil também aumentou bastante. Muitas universidades viram um recorde de estudantes matriculados nos cursos ou de língua portuguesa ou de estudos brasileiros. O interesse começou a decair depois de 2013, com o começo da crise econômica e sociopolítica que culminou primeiro no impeachment de Dilma Rousseff e depois na eleição de Bolsonaro. Acho que hoje em dia os estudantes nas universidades norte-americanas têm desenvolvido interesse na questão racial no Brasil, assim como em questões indígenas e do meio-ambiente. Mas o Brasil tende a ser visto de forma muito menos positiva desde a eleição de Bolsonaro.