Entrevista Margareth Rago Divulgacao

 

Nos anos 1980, a historiadora Margareth Rago movimentou o debate em torno das práticas feministas e anarquistas com a publicação do livro Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar; Brasil 1890-1930, fruto de sua dissertação de mestrado. Nessa pesquisa, a autora penetrou no interior das fábricas, bairros e vilas operárias do início da industrialização do país, atenta, sobretudo, às manifestações de resistência cotidiana que a imprensa anarquista noticiava, e àquelas que conseguiu filtrar do discurso patronal e de outros setores privilegiados. Ao mesmo tempo, buscou demonstrar como as estratégias de controle e vigilância perseguiram o trabalhador em todos os momentos de sua vida, através de sua integração no universo dos valores burgueses. Nesse sentido, a redefinição da ideia de família foi um passo essencial para a formação da nova figura do operário, que deveria ser dócil e submisso. 

Desde então, Margareth Rago vem defendendo que escrever sobre as experiências das mulheres e das práticas anarquistas é algo fundamental para que tenhamos um conhecimento mais acurado do passado, além, é claro, de um enriquecimento do nosso próprio tempo. Ao contestar a ideia de que a anarquia é pré-política, irracional e sem projeto próprio, Rago incluiu na história nomes que sonharam com um mundo mais justo e igualitário, e para tanto lutaram pelo fim da exploração do trabalho, da dominação política e do Estado, opondo-se ainda aos microfascismos presentes nas relações conservadoras e autoritárias. A despeito dos constantes silenciamentos, é preciso reconhecer que as marcas dessas lutas se mantêm vivas no presente, e podem ser percebidas nos insurgentes coletivos organizados nos últimos anos — entre eles, diversas editoras anarquistas —, afirmando modos de existência libertários e a construção de um mundo novo.

 

Ao analisar os mecanismos da cidade disciplinar no Brasil entre 1890 e 1930, Do cabaré ao lar deu contribuição inestimável à história das resistências anarquistas. Além disso, sua pesquisa se debruçou sobre a constituição da família burguesa no país, um processo que envolveu a colonização das mulheres, a apropriação médica da infância e a gestão higienista da miséria. Neste momento em que as lutas contra as opressões se mostram cada vez mais urgentes — sobretudo por conta dos efeitos da pandemia —, estudar o legado das tradições minoritárias pode nos ajudar a resistir às disciplinas do presente?

Inicialmente, obrigada pelo convite e pelo apreço. Como historiadora, considero fundamental conhecer o passado, em especial, o passado que não passa, indicando como há muitas continuidades em nossa história, e que também estamos falando da história do presente. Para se ter um “diagnóstico da atualidade”, como propôs Michel Foucault, é necessário fazer a genealogia dos processos e das formas que vivemos, entender como foi que chegamos a ser o que somos, a partir de que modos de sujeição e subjetivação — já que não há uma necessidade histórica inscrita na ordem do mundo —, além de perceber os tesouros que perdemos. Muitas páginas não foram viradas. As estruturas da dominação capitalista persistem, suas tecnologias de poder diversificam-se, sofisticam-se, mas não nasceram hoje. Têm história. As forças da direita não são nada criativas, como presenciamos no triste cotidiano do nosso país; copiam o que de pior os regimes totalitários inventaram no passado. Para além do poder disciplinar e do biopoder agindo sobre nossos corpos, temos também as técnicas biopolíticas e a governamentalidade neoliberal, enfim, inúmeras tecnologias de poder que visam nos controlar e que precisamos localizar para poder resistir, lutar e criar modos de existência mais justos e solidários. Os anarquistas denunciaram os microfascismos desde o início [século XIX], inclusive na imposição do modelo da família nuclear e da “mulher-mãe-24h”. Hoje sabemos que é fundamental conhecer a historicidade da construção dessa identidade feminina. Até o século XIX, não se entendia que o lugar da mulher era o privado, cuidando de filhos, nem se pensava que elas deveriam pagar um preço pela maternidade: perdiam neurônios e por isso não poderiam ser escritoras, engenheiras etc. A teoria da degenerescência nasceu ao longo daquele século, estigmatizando mulheres, negros, indígenas, presos, loucos…


Na busca pela construção de uma subjetividade libertária, como separar o “cuidado de si”, enquanto uma arte da existência, de uma prática de cuidado submissa aos desígnios do Capital, tornando-se, no segundo caso, o “empresário de si” de que falava Foucault?

Excelente pergunta, pois expõe os perigos de confusão diante das fortes ameaças de captura do legado da cultura grega e das nossas formas de luta e resistência, sobretudo em tempos neoliberais. Como destacou Foucault, o cuidado de si para os antigos gregos e romanos visava a constituição de uma subjetividade ética, de um indivíduo temperante, apto para cuidar do outro e da cidade, já que capaz de cuidar de si mesmo. Entendiam que aquele que não controla as próprias paixões despenca sobre o outro, o que temos visto, por exemplo, nas atitudes autoritárias e violentas dos nossos políticos. Para os antigos, formar um indivíduo apto a praticar a democracia na polis implicava a aquisição de equilíbrio pessoal, a capacidade de controlar as paixões — o que não significava renunciar a elas, como pregará o cristianismo em seguida. Os cristãos definiram os pagãos como selvagens e irracionais, e nos ensinaram que temos “o diabo no corpo”, que não sabemos de nós mesmos, devendo sempre obedecer ao pastor, que saberá nos conduzir ao caminho da salvação. Para os gregos, ao contrário, não se esperava obediência de um cidadão. Este, aliás, não deveria ser escravo de outrem, nem de suas próprias paixões. Foucault não estava dizendo com isso que nós deveríamos copiar os gregos, e sim mostrando que não existe uma linha de continuidade entre o mundo antigo e a sociedade burguesa; ao contrário, existem rupturas profundas. Nosso mundo vem da burguesia, é um mundo burguês. É claro que nós estamos falando da cultura dos homens, das ideias dominantes. Mas de onde vem a ideia de democracia, a ideia de liberdade, a ideia de autonomia, a ideia de justiça social? A anarquista Maria Lacerda de Moura (1887-1945) era leitora de Diógenes, Sócrates, Epiteto. Emma Goldman e outras grandes anarquistas citam esses autores o tempo todo. Por isso, me parece importante usar o conceito de “cuidado de si” para pensar as práticas feministas libertárias. Já o “empresário de si mesmo” ou “neossujeito”, segundo a teoria do capital humano de Gary Becker, é alguém que deve investir em si mesmo, pensando-se como empresa, segundo a lógica do custo-benefício; deve ser ultracompetitivo e egoísta, pois os neoliberais acreditam na concorrência, mesmo que, para eles, esta não seja natural. Não tem nada a ver com o cuidado de si dos antigos. No mundo antigo, o cuidado de si era uma prática da liberdade; no mundo neoliberal, é um modo de sujeição, de desaparecimento de si. O “empresário de si” é alguém que não sabe de si, e por isso assujeita-se aos códigos normativos dos neoliberais, que apostam na competição e na obediência ao pastor, figura que pode estar no partido, no Estado, e não apenas na Igreja.


Em seus textos e falas nos últimos anos, você tem chamado atenção para a construção de uma cultura filógina, em detrimento das práticas e reações misóginas. Como o conceito de filoginia surge e se desdobra na sua pesquisa?

O termo filoginia me foi apresentado no curso oferecido pela feminista Eleni Varikas na Unicamp, em 1987, e causou-me um forte impacto. Afinal, estamos acostumadas a denunciar a misoginia, a inferiorização constante das mulheres, mas não destacamos as práticas filóginas, o respeito pela cultura feminina que também vivemos. A palavra filoginia vem do grego philos (amigo) e gyne (mulher), e designa o amor às mulheres, enquanto seu oposto, a misoginia, traduz a aversão a elas. Partindo desse conceito, decidi destacar nas minhas pesquisas sobre anarquismo, feminismo e sexualidade, a maneira pela qual as mulheres criam novos modos de existência, novas práticas de si, outros modos de organização do espaço, enfim, como feminizam a cultura, já que foram educadas de outro modo que os homens. É importante mostrar que, além de pessoas misóginas, existem aquelas que contribuem para tornar o mundo mais solidário, livre e justo. Nem todos os homens são misóginos, nem todas as mulheres são feministas. Vemos hoje mulheres misóginas em postos de poder, lamentavelmente. Como aponta Deleuze, se o mundo é masculino, o devir-mulher é uma necessidade também para as mulheres...


Na sua leitura, o que as histórias das lutas autonomistas podem nos ensinar sobre os riscos da valorização da cidadania, ou seja, a constituição do sujeito de direito diretamente vinculado e submetido ao Estado?

As lutas autonomistas evidenciam os limites das lutas por políticas públicas e das ações implementadas pelo Estado — que, como também ensinou o marxismo, não resulta do contrato social, mas é dominado por um grupo que exerce seu poder sobre toda a sociedade. Acreditar que lutar por políticas públicas é suficiente para emancipar amplos setores da população traduz uma concepção questionável, como temos visto em nossa própria experiência. Não quero dizer com isso que não valorize as conquistas realizadas no Brasil nos últimos trinta anos, e que estas não tenham beneficiado muita gente. Lamento, aliás, a destruição dessas conquistas que estamos sofrendo com enorme rapidez. Contudo, seu alcance é limitado e a contrapartida é muito cara. Afinal, cria-se um cidadão, ou “sujeito de direito” diretamente subordinado ao Estado, a partir de um vínculo extremamente precário, como também estamos vendo nesse momento em que os poucos direitos conquistados estão indo por água abaixo. Sem mobilizações sociais, sem organização política, sem que as pessoas se associem e lutem pela mudança das formas de vida contra a violência do Estado e do mercado, em suas inúmeras faces e dimensões, dificilmente atingiremos qualquer patamar aceitável de humanidade. Os neoliberais sabem disso, e por isso mesmo apropriam-se das pautas dos movimentos sociais, como o feminismo, empenhando-se em produzir o/a novo/a sujeito/a do neoliberalismo.


Numa entrevista no final de 2019, a crítica argentina Beatriz Sarlo comentou que, em 50 anos percorrendo a América Latina, ela nunca viu um momento político como esse, em que as sociedades estão “desmoronando”. Um exemplo de novidade citado por ela — de maneira breve, mas que me pareceu guardar bastante receio — foi o ressurgimento de grupos juvenis anarquistas, na região e em outras partes do mundo. Como você percebe a presença anarquista nas lutas contemporâneas e por que ela ainda provoca tanto incômodo?

Os anarquistas sempre provocaram incômodo, isso é um traço muito impressionante em sua história. Tanto que foram caracterizados como pré-políticos, irracionais e sem projeto próprio. Apenas nas últimas décadas conhecemos melhor as experiências autogestionárias da Revolução Espanhola [nos anos 1930], ou as lutas sociais das primeiras décadas da industrialização no Brasil, em que os libertários tiveram peso. Como pergunta o libertário Christian Ferrer, o que seria do mundo se este fosse dividido apenas entre liberais e comunistas? A conquista do Estado seria o objetivo maior do processo revolucionário? Por isso, são necessárias tanto as denúncias que trazem os anarquistas, quanto as lutas pela ampla participação popular na construção de associações e organismos de base. Os anarquistas evidenciaram, ao longo de sua história, que a transformação social se faz em múltiplos espaços, na luta contra os microfascismos cotidianos, assim como contra o macropoder. Daí a importância de se conhecer a história da emergência das formas burguesas de vida como modos de disciplinarização, e, ao mesmo tempo, evidenciar as críticas que traziam os anarquistas desde aquele momento, apontando não apenas para o “beco sem saída” em que o capitalismo nos leva como para a possibilidade de viver diferentemente. A situação-limite tão assustadora que enfrentamos hoje resulta da exploração desenfreada do planeta, das espécies, da vida em prol do mercado e do lucro, como sabemos. Temos de pensar nas saídas possíveis e lutar para que não ocorra o aprimoramento da violência neoliberal. Felizmente, quando o deserto parecia iminente, grupos de jovens anarquistas e feministas emergiram com suas insurgências, insubordinações e revoltas, enchendo-nos de esperança e mostrando que a luta continua!

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