WhatsApp Image 2020 05 07 at 09.41.42

 

“Tudo indica que o videogame ganhou capital simbólico com a pandemia”, explica João Varella, jornalista e editor da Lote 42, por onde lançou o livro Videogame, a evolução da arte. Jogos como World of Warcraft e Plague Inc. têm auxiliado, do ponto de vista epidemiológico e reflexivo, humanos a pensarem pandemias. Hoje recomendado pela mesma OMS que via com ressalvas o seu uso, o videogame ainda é cruzado por uma discussão antiga: é arte ou não é?

O questionamento é feito desde que os aparelhos existem, mas (ainda) não há um reconhecimento, dados os apagamentos que sofrem pelos espaços tradicionais de discussão sobre arte ou pelos aprisionamentos que recaem, restritos a determinados grupos e faixas etárias. Tudo isso dificulta o processo de significação dos videogames enquanto forma de expressão capaz de contar histórias e propor novas formas de se conceber experiências. 

Abaixo, conversamos com João Varella sobre os games e de suas constantes evoluções a partir do diálogo de outras artes - como literatura (enredos), música (trilhas) e artes visuais (composições imagéticas). Falamos, também, sobre como a pandemia pode ser um momento propício de uma ressignificação da importância dos games ou sob perspectiva destes enquanto meios figurativos de momentos marcados por um horror global, como este que passamos. 

 

Videogame, a evolução da arte foi escrito antes da pandemia. Agora, nesse momento marcado pelo isolamento, dados apontam (pesquisa da Nielsen Media Research) que o consumo de videogames tem aumentado vertiginosamente em vários países. É possível estabelecer uma relação entre esse período e uma possível - e gradual - ressignificação da forma como entendemos os videogames hoje? 

Tudo indica que o videogame ganhou capital simbólico com a pandemia. Os sinais dessa mudança são esparsos, mas representativos. A mesma OMS que classifica vício em videogame em 2018 como um distúrbio mental específico apoiou a iniciativa de grandes estúdios incentivando as pessoas a desfrutar jogos eletrônicos em casa, reconheceu que há nisso um comportamento positivo. Jogos como Animal crossing viraram fenômeno ao oferecer um certo senso de normalidade e convívio social (embora em ambiente virtual) colaboram para essa percepção. É curioso que os jogadores e produtores de videogame não parecem empenhado em buscar legitimidade, algo muito mais presente em outros campos artísticos. 

Mas que fique claro, essa ressignificação e amadurecimento vinham acontecendo antes, de maneira natural. É uma linguagem jovem, com meio século de idade. Tanto a sociedade em geral quanto os elos da cadeia dos jogos eletrônicos serão lapidados pelo tempo.

 

Obras que figuram um horror global - como os livros Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, e A peste, de Camus, por exemplo - têm sido revisitadas como base de reflexão para pensarmos esse momento de pandemia. Algum game nos serve de base para pensarmos esse cenário? 

O grande símbolo da pandemia é Animal crossing: New horizon, lançado em março deste ano pela Nintendo. Videogame está sempre olhando adiante, se opõe nesse sentido à literatura, que não vê problema em exumar obras do passado, há uma busca pela eternidade. A palavra é uma tecnologia que envelhece um dia por século.

Animal crossing é um paliativo para mito da normalidade que perdemos ao mesmo tempo que propõe uma simplificação da vida reconfortante, fala da pandemia de maneira indireta, diferente dos livros que você menciona. Ao mesmo tempo, ele trouxe consequências reais para a geopolítica global, pois foi usado por manifestantes pró-democracia de Hong Kong para espezinhar o governo chinês, o que levou o jogo a ser censurado por lá.

Agora, em termos de um ataque mais direto ao tema da pandemia, o grande destaque é o jogo de celular Plague Inc. Esse foi lançado em 2012, um velhinho para os padrões dos videogames, e coloca o jogador para evoluir um patógeno para dizimar a humanidade. Gerou muita reflexão.

Fora isso, há um sem fim de jogos que lidam com doenças que transformam as pessoas em zumbis e criam uma distopia. Acabo de terminar Days gone, jogo bobo que coloca o jogador numa distopia cheia de chorume de cultura americana. É preciso criar fóruns de discussão, não necessariamente de exaltação. 

 

Você diz, ainda no ensaio de abertura do livro, que de certa forma a discussão de os videogames possuírem ou não o estatuto de arte é conversa ultrapassada. Os games, gerados a partir da interlocução de outras artes (literatura, música, etc), tem peculiaridades próprias que o configuram como arte. Para os leitores que não possuem experiências afetivas com games, o que você pode falar sobre isso?

Pessoas sem experiência com a linguagem podem realmente ter dificuldade em perceber o valor artístico por trás das obras em linguagem de videogame. Além dos reflexos e coordenação motora dos joysticks (controles), há espaços de construções narrativas, desenvolvimento de personagens, mundos possíveis, entre outras expressões que são inerentes à linguagem, como a agência do jogador diante do marco do game.

Além disso, trata-se de um fenômeno cultural, social, econômico (games giram US$ 150 bilhões por ano) e por momentos até mesmo político - vide o caso da censura ao mapa de Counter strike ambientado em uma favela do Rio de Janeiro e o recente banimento de Renan Bolsonaro da Twitch [plataforma que oferece streaming de jogos, hoje propriedade da Amazon] após ironizar a pandemia. Outro caso: a epidemia que atingiu World of Warcraft em 2005 [nota 1] e que rendeu estudos interessantes usados hoje no combate à Covid-19.

Todos estão convidados a experimentar uma linguagem que transita sem restrição pelas outras. Em maior ou menor medida, games fazem uso de música, artes visuais, performance, dramaturgia, cinema e até práticas incomuns ao que enquadramos como linguagem artística, como o esporte. Um jogo como Just dance mergulha na dança e na música, enquanto Dreams lida com escultura e Sim City foca em arquitetura. Videogames são onívoros.

Para quem está começando, tal qual um leitor novato, é preciso escolher obras mais acessíveis num primeiro momento. Alguém que está começando a se familiarizar com o joystick deve passar longe de um Bloodborne, assim como uma pessoa recém-alfabetizada deve evitar Ulisses, de James Joyce. O melhor seria começar por um Mario Kart, o equivalente a um livro da série Vagalume ou Agatha Christie, que conseguem envolver até os mais inexperientes com suas histórias. No final das contas a escalada por essa linguagem divide pontos em comum com a de qualquer outra esfera artística. A dificuldade de se converter adultos para o videogame é similar a de se criar um novo leitor. Ao se aprender as dores dessa caminhada, entre elas os percalços de se deparar com membros da comunidade arrogantes, certas discussões herméticas, pode nos servir de espelho esclarecedor para disseminar outros tipos de arte, como a literária.  

 

Pensando em jogos como o emblemático Shadow of the colossus ou do dramático Gone home, poderia falar um pouco sobre como pensa a evolução das narrativas, cada vez mais plásticas e complexas, enquanto formas de se conceber realidades e experiências ao jogador - este que é, também, a força motriz que move o enredo? 

A evolução das narrativas enquanto proposições de experiências acontece a par com a vivência e convivência das pessoas com a tecnologia, que por sua vez é influenciada em grande medida pelo videogame. Quando o Pong surgiu em 1972, aquela cabine encostada nos bares promovia uma sensação inédita: com o uso de um controle, era possível mover um elemento do televisor, que por sua vez agia como se fosse uma raquete, rebatendo uma bolinha. Uma experiência marcante. Não à toa, escolhi este título como primeiro capítulo do meu livro. 

Hoje vivemos num mundo com smartphones, Pong é banal. Crianças mexem com smartphones com naturalidade, a exigência para gerar impacto é maior. Pokémon Go, de 2016, conseguiu novamente introduzir possibilidades inéditas para as pessoas, transformando-se em um fenômeno mundial. Claro que Pokémon Go só existe porque um dia houve um Pong.

Essa evolução acontece em uma relação tensa com as possibilidades técnicas. Shadow of the colossus, para citar o exemplo que você propõe, parece ter acontecido graças às condições dadas ao diretor Fumito Ueda pela Sony, então incontestável líder da indústria de consoles. Gone home tem plasmado o espírito independente, uma narrativa sucinta de poucos recursos, que compensa destacando os arcos dos personagens em uma exposição que raramente se vê nos jogos mainstream. É comparável a postura das editoras independentes.

Gone home mostra como a evolução da estética nem sempre aponta para o acréscimo de efeitos visuais e sonoros mais complexos, que exigem placas de vídeo mais poderosas. Desde meados dos anos 2000, os estúdios independentes mostraram que direções de arte com mais personalidade também empurram essa evolução. Braid é de uma simplicidade gráfica cativante. 

Assim como ocorreu no surgimento do daguerreótipo e, pouco depois, das primeiras câmeras fotográficas, parece que o negacionismo com os games enquanto arte parte do apagamento que sofre por não estar (ou estar pouco) em espaços mais tradicionais de discussões estéticas. Os debates sobre games acontecem em blogs não especializados, seguindo questões circunstanciais (efemérides do calendário ou lançamentos da indústria). Você pensa uma possibilidade de viragem desse cenário hoje?

Torço que as discussões em torno de videogame deixem de ser pautadas pelo marketing das empresas, mas isso é difícil. O mercado de arte trabalha com uma dinâmica de novidades e parte da fruição vem da experiência social. Os que jogaram Sekiro pouco depois do lançamento relatam como houve um espírito comunitário para desvendar as melhores estratégias do jogo da FromSoftware. Por mais que eu adquira o jogo agora, mais de um ano depois do lançamento, minha experiência será diferente. 

Videogame por diversos prismas prova que se trata de uma experiência humana rica, digna de ser analisada, com pluralidade imensa. Enquanto aos artefatos artísticos em si, a crítica extrai experiências mais aprofundadas dos mesmos, o que amplia essa parte importante da cultura e da vida. Forma melhores espectadores e criadores. O gargalo está no mercado, que por sua vez depende do interesse dos jogadores, que por sua vez precisam acessar esse tipo de conteúdo, se acostumar com ele. É necessário despertar um ciclo virtuoso, com um agente incentivando o outro, de alguma forma. Aliás, cabe uma pausa para pensar na literatura. Muitos reclamam que os livros têm espaço exíguo de debate público. Talvez o jeito de ampliar essa ciranda de eventos positivos. Se serve de consolo, videogame infelizmente ainda não tem nada nem parecido com um Suplemento Pernambuco. E seria ótimo ter um espaço para se aprofundar em Diablo IIINight in the woods Resident Evil 4, para citar alguns que recentemente joguei.

A análise de videogame, no entanto, encontra desafios que exigem uma aproximação diferente. Um exemplo são os MODs, modificações feitas a jogos que escapam do controle dos criadores, embora os mesmos incentivem que isso aconteça. Ou ainda o comportamento de outros jogadores prejudicando ou ajudando a peça artística. Ou seja, há criações e influências do jogo que não são de responsabilidade do autor, embora provoquem influências no mesmo. Fazer um juízo ou apreciação desses elementos é arriscado. Há muito pioneirismo e ineditismo nessa seara tão intimamente ligada com a inovação, seu dinamismo não permite apego a modelos teóricos. Particularmente acho esse empinar de pipa no furacão muito empolgante.  

 

NOTAS 

[nota 1] Em setembro de 2005, um bug dentro do jogo World of Warcraft - um dos games mais conhecidos do planeta - se alastrou dentro do mundo virtual criado para o jogo, fazendo com que perfis de jogadores ficassem inutilizados por vários dias. O caso foi estudado por epidemiologistas por figurar uma pandemia dentro de um ambiente de segurança virtual em relação com o comportamento humano. 

 

SFbBox by casino froutakia