Clarice Lispector não tem leitor. Tem fã, devoto, é quase religião, um time de futebol. Quem lê Clarice grifa livro, manda trechos para amigos e paquerinhas, discute seus textos em lugares inusitados e acredita que a vida guarda o prazer de uma epifania logo ali na esquina. E, se não guarda o prazer do espanto, bem que deveria, ora bolas... Apesar da concorrência acirrada, o presidente desse fã-clube clariceano deve ser o escritor norte-americano Benjamin Moser, autor da biografia Clarice, que recolocou a marca da autora para toda uma geração de leitores.
Moser é convidado da Fliporto 2010 e retorna à mesma Olinda onde ele se hospedou, disfarçado de turistão (e Moser tem uma cara de turista inegável), para entender o Pernambuco que Clarice enxergou na infância. “A Clarice era quase obcecada pela infância, e a infância dela se passou na Boa Vista, Recife, na pequena comunidade judaica ao redor da Praça Maciel Pinheiro e a Rua da Imperatriz. Pernambuco para ela era a infância de antes da morte de sua mãe, que era um divisor de águas na sua vida, antes da mudança da família para o Rio de Janeiro”, destacou Moser para o Pernambuco.
Durante a Fliporto, vai conversar sobre o lado bruxa que persegue a escritora e, claro, colocar em pratos limpos um artigo, publicado no Brasil pela Folha de S. Paulo, em que ele descasca Gilberto Freyre. “Naquele ensaio fiz questão de reconhecer as qualidades positivas do Gilberto Freyre, de como ele ajudou o Brasil a se fazer uma ideologia moderna. Mas do outro lado, o intelectual honesto tem a obrigação absoluta de se comprometer – sempre, sempre, e sempre – com a democracia liberal, com os direitos humanos, e com a liberdade do indivíduo”, destacou Moser. Confira nossa entrevista na íntegra.
É comum escutarmos que Clarice Lispector foi uma “bruxa”. De certa forma, atributos como esse não diminuem o fato de que ela foi uma autora preocupada com a criação do texto literário? Será que essa visão mística não prejudicaria nossa percepção de uma escritora que teve uma preocupação intelectual séria?
Ela, em vida, ficou chateadíssima com este tipo de descrições. O que ela queria, mais que nada, era ser vista como uma pessoa humana, sem todos os rótulos que lhe puseram quase desde o início da vida pública. E é assim que tentei retratá-la. Do outro lado, ela era uma figura mitológica, como poucas que tem havido no Brasil: Clarice Lispector tinha uma coisa diferente que chamava a atenção, sua beleza, sua estranheza, seu gênio literário, e é preciso confessar que isso, de certo modo, ajudou no marketing da obra dela, se podemos dizer assim... Mas ela já está morta há quase 34 anos. Acho que essas coisas vão diminuindo enquanto sua obra vai ficando cada vez maior. Porque, no final, uma escritora pode ter toda uma mitologia, mas se a obra não for interessante, sempre acabará caindo no esquecimento.
É comum escutarmos que ler Clarice Lispector impregna o imaginário de um leitor de maneira quase fatal, que as pessoas passam a querer escrever como ela. Isso aconteceu com você? Como você se separou de Clarice na hora de escrever? Ou você não se preocupou com isso?
É só olhar no Orkut para ver o que acontece quando as pessoas se “inspiram” na obra da Clarice. Tem essas perguntas nos grupos Clarice: “Faça uma frase no estilo de Clarice.” E o resultado é horrível! Horrível mesmo, porque, como todo grande artista, ela tinha uma coisa única, que pode parecer fácil de imitar, mas que não o é. É extremamente sedutora. Mas a gente tem que descobrir o nosso próprio estilo, e isso sempre passa por toda uma aprendizagem, por um processo de aprender o que podemos dos mestres do passado sem perder a nossa própria voz.
Na discussões literárias sempre nos deparamos com esta mesma polêmica: o debate se a vida de um escritor é importante, ou não, para iluminar sua obra. O que mudou na sua leitura de Clarice após ter escrito essa biografia?
Sim, eu entendo o que você está falando, mas não acredito muito nessa polêmica, porque o artista finalmente é sua obra. É uma coisa que eu sempre sentia, mas fazendo este livro eu me dei conta de que Clarice Lispector é um caso quase exagerado disso. Ela é tão vinculada ao que escreve que quando chega o final de sua vida, se vê que ela está querendo matar suas personagens. Ela fala isso: “É preciso que a Ângela (do Um sopro de vida) morra mas eu não tenho coragem.” Porque ela sente que, se ela deixa morrer suas personagens, ela própria terá que se despedir. Em A hora da estrela, último livro dela, ela hesita durante páginas inteiras: Deixo ou não a Macabéa morrer? Finalmente ela deixa e poucos dias depois da publicação do livro ela vai para o hospital e morre. Estremeci quando entendi isso.
Você passou um tempo em Pernambuco pesquisando para a biografia de Clarice Lispector. Que Pernambuco você descobriu na obra dela? Ou melhor: Qual é o Pernambuco que Clarice concebeu?
A Clarice era quase obcecada pela infância, e a infância dela se passou na Boa Vista, no Centro do Recife, na pequena comunidade judaica ao redor da Praça Maciel Pinheiro e nos arredores da Rua da Imperatriz. Pernambuco, para ela, era a infância de antes da morte de sua mãe, que era um divisor de águas na sua vida, antes da mudança da família para o Rio de Janeiro. Ela viveu em muitos lugares, na Europa, nos Estados Unidos, no Rio de Janeiro... Já adulta, ela falou que nada, “mas nada,” das viagens que fez pelo mundo a marcou, “mas Recife continua firme.” E, por uma coincidência, minha avó era casada com um judeu da Boa Vista, cujo filho era o melhor amigo da menina Clarice. Mas isso eu só soube depois de sua morte.
Clarice tem seguidores obsessivos, leitores de uma dedicação quase canina. Com que tipo de reação de leitor clariceano você passou a se deparar depois que sua biografia foi publicada?
Eu também sou da turma – falar de Clarice é uma coisa que eu gosto muitíssimo - e a gente se reconhece. Mas a reação que mais me surpreendeu foi de agradecimento, porque o clariceano tem essa coisa missionária, de querer compartilhar o amor a ela; e ficaram tão contentes com as reações internacionais, com as novas traduções que estão acontecendo como resultado do meu livro. As pessoas ficaram muito felizes com isso, como ficariam contentes com uma filha predileta fazendo sucesso pelo mundo.
Você é do tipo que se incomoda com opiniões redutoras do tipo “Clarice é melhor compreendida por mulheres”, “Clarice é melhor compreendida por gays”? Você acha que o fato dela ser mulher ainda limita o alcance da sua obra, fazendo com que rotulações desse tipo sejam postuladas?
De um lado, não me incomoda. Não acredito que a opinião de uma pessoa gay, ou de uma mulher, seja de menos valor que a de um homem heterossexual. Eu sou gay e entendo porque os gays se sentem entendidos por ela. Eu sou judeu e vejo o espírito judaico na obra dela como quem não tem a intimidade com a cultura judaica talvez não perceba. Mas não sou mulher e sei que muitas mulheres também se sentem próximas dela. Nem sou brasileiro e com certeza tem nuances poéticas na linguagem dela que fogem a quem não fala português como língua materna. Essas categorias são úteis até certo ponto, mas só até certo ponto. O grande artista é quem consegue transcendê-las e falar a todo mundo.
Você está escrevendo seu primeiro romance agora. Tem pouco ou muito de Clarice Lispector nele?
Não na escrita propriamente dita. Onde Clarice está presente é no plano moral: no modelo que ela nos dá de fidelidade a nós mesmos. Isso é um enorme desafio para qualquer pessoa, e para um escritor ainda mais.
Na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), muito foi discutida a sua opinião sobre a obra de Gilberto Freyre, após um artigo publicado na Folha de S. Paulo em que você fazia diversas críticas a ele. O que mais lhe incomodou no sociólogo?
Naquele ensaio fiz questão de reconhecer as qualidades positivas do Gilberto Freyre, de como ele ajudou o Brasil a se fazer uma ideologia moderna. Mas, por outro lado, o intelectual honesto tem a obrigação absoluta de se comprometer – sempre, sempre, e sempre – com a democracia liberal, com os direitos humanos, e com a liberdade do indivíduo. Neste espectro, tem muito espaço para se situar à direita ou à esquerda ou no meio, mas o que é inaceitável é uma aliança com racistas ou assassinos ou ditadores. Não estava dizendo lá nada de estupendamente original: ele foi criticadíssimo por isso tudo em vida. Devemos criticar. Mas do outro lado, temos que ser consistentes. Se formos criticar sua aliança a ditaduras de direita, temos também que criticar quem se vinculou a ditaduras “de esquerda.” E isso significa quem apoiou - quem ainda apoia - Fidel Castro, por exemplo. A quantidade que não tem vergonha disso é espantosa. O Lula achou legal andar abraçado com Fidel Castro enquanto havia prisioneiros políticos literalmente morrendo de fome.
Para terminar a nossa conversa: Clarice é uma autora que nos inspira a grifar várias passagens com caneta dos seus livros. Qual passagem de Clarice que você grifou (ao menos mentalmente) e não esquece?
De fato, eu já li os livros de Clarice mil vezes, é lógico, e faço questão de usar tintas diferentes em cada leitura. Assim posso ver por exemplo as frases que me tocaram quando ainda era estudante, quando comecei a fazer minha pesquisa, e quando reli o livro pela última vez antes de escrever os capítulos. Nem são sempre as mesmas coisas – às vezes grifei uma frase com enorme paixão que numa leitura seguinte nem entendo direito... Mas acho que as primeiras páginas de A hora da estrela são as que sempre ficam comigo, porque foram as primeiras páginas que li dela...