Em conversa com o Pernambuco, o jornalista e biógrafo revela o princípio das suas paixões literárias, reclama do internetês e faz a defesa das oficinas para novos autores

A palavra escrita seduz Ruy Castro. Ele deixa-se seduzir há muito tempo. Desse balé harmônico — executado com perfeição entre a literatura e o jornalismo — nasceram biografias como O an-jo pornográfico (sobre Nelson Rodrigues), Estrela solitá-ria (Garrincha) e Carmen (Carmen Miranda), livros de ficção (Bilac vê estrelas e Era no tempo do rei), ensaios, reportagens e crônicas. A sedução lenta e dura-doura construiu uma sólida paixão, escancara-da em O leitor apaixonado, recentemente lançado pela Companhia das Letras, cuja organização é de  Heloisa Seixas. É uma coletânea de textos publica-dos na imprensa brasileira desde a estreia de Ruy Castro como jornalista no final da década de 1960. O epicentro são a literatura e o jornalismo. Sem- pre com um olhar atento e, muitas vezes, irô- nico — marcas inconfundíveis da escrita deste mi- neiro nascido em Caratinga em 1948, mas cuja vida está visceralmente ligada ao Rio de Ja- neiro, que lhe concedeu o título de cidadão be-nemérito.

Nesta entrevista ao Pernambuco, Ruy Castro fala sobre suas duas grandes paixões: jornalismo e literatura. “A palavra escrita é o grande aval, não? As coisas só parecem ter acontecido depois que a gente as vê impressas”, diz. É fácil concordar. Ele também divide com os leitores suas críticas em relação às restrições que sofrem os biógrafos no Brasil, sobretudo após a polêmica que seu livro sobre o jogador Garrincha enfrentou. “É a lei da mordaça, nas barbas desse Código Civil frankens-tein que existe no Brasil.”, reclamou. Confira agora os melhores momentos da entrevista.

Na apresentação de O leitor apaixonado, vislumbra-se uma foto de um repórter de 19 anos acompanhando a mítica posse de João Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras. O que aquele jovem Ruy Castro buscava nas letras, no jornalismo e na literatura? E o que ele encontrou nestas décadas de vida dedicadas à arte de ler e escrever?

Naquela noite de novembro de 1967, eu tinha exatamente nove meses de profissão, já estava no meu segundo emprego e me sentia um veterano — começara no Correio da Manhã em março, como repórter, e, em fins de outubro, a Manchete, que ainda era a revista mais poderosa do Brasil, me convidara a ir para lá, também como repórter. A cobertura da posse do Rosa foi uma das minhas primeiras saídas pela revista. Àquela altura, eu já deixara temporariamente de lado a ideia de que iria usar o jornal para escrever ensaios profundos e pretensiosos sobre cinema, literatura, música popular etc. — que foi o que pensei no começo do ano, quando o José Lino Grünewald me levou ao Newton Rodrigues, redator-chefe do Correio, sugerindo a minha contratação — e já me sentia totalmente à vontade numa revista semanal ilustrada, entrevistando pessoas da área cultural ou de outras áreas. O responsável por isso fora o Newton, ao me aceitar no jornal e me mandar para a reportagem geral, não para o Segundo Caderno. Na hora fiquei chateado, porque a geral significava cobrir áreas sem o menor charme, como polícia, hospital e esgoto de rua — numa época em que a vida cultural carioca estava fervendo, com o cinema novo, o teatro de agressão, Tom Jobim gravando com Frank Sinatra, os primeiros festivais da canção, o movimento estudantil etc. Mas aceitei, claro, porque meu sonho era trabalhar no Correio da Manhã, não importava onde — se precisasse, aceitaria cobrir turfe ou jardinagem. E aconteceu que essa experiência com a reportagem braba me quebrou um pouco a crista e me fez ver o quanto eu tinha de aprender se quisesse continuar em jornal. Comecei a achar ótimo sair com aqueles fotógrafos cascudos, que não davam boa vida a repórter, e a fazer matérias em dupla com os outros rapazes, alguns pouco mais velhos do que eu, mas já com dois ou três anos de jornal. E, na verdade, não demorei muito a emplacar pautas também no Segundo Caderno, então editado pelo José Lino. Além disso, desde cedo me interessei por toda a operação: entregava a matéria ao editor e ia com ele ao arquivo procurar fotos para ilustrar a matéria, ficava ao lado do diagramador para ver como ele ia jogar o texto na página e já lhe entregava os títulos, subtítulos e legendas antes que ele terminasse o trabalho.

O prólogo da coletânea (Começou com Alice) é uma espécie de declaração de amor à literatura: “A vida não é mais a mesma depois que se penetra no reino das palavras”. Que poder transformador tem a literatura na vida cotidiana das pessoas?A palavra escrita é o grande aval, não?

As coisas só parecem ter acontecido depois que a gente as vê impressas. No meu caso, foi fundamental. Veja bem, nasci em 1948, aprendi a ler entre 1952 e 1953 e, desde então, me senti contemporâneo de tudo de importante que me passou pelos olhos: morte do cantor Francisco Alves em 1952, várias “invasões” de discos voadores em 1953, estouro da Marilyn Monroe no cinema em 1954, suicídio do Getúlio no mesmo ano, morte da Carmen Miranda em 1955 etc. Ouvia meu pai e seus amigos falando desses assuntos e, depois, lia sobre eles nos jornais e revistas que rolavam pela minha casa — Correio da Manhã, O Jornal, Ultima Hora, Tribuna da Imprensa, O Cruzeiro, Vida Doméstica, Mundo Ilustrado. E eles só pareciam existir porque o jornal ou revista falava deles — as próprias fotos eram avalizadas pelas legendas. A literatura trabalha em outro plano. Li meu primeiro livro também em 1953, Alice no país das maravilhas, que ganhei no aniversário de cinco anos. Depois saí com meu pai para comprar eu próprio um livro e, sem ninguém para dar palpite, escolhi Tarzan, o filho das selvas, do Edgar Rice Burroughs, numa linda edição da coleção Terramarear. Li, adorei, comprei mais Tarzans, descobri o Sherlock Holmes, depois o Arsène Lupin, mergulhei em muito capa-e-espada. E qual a diferença da literatura para com os jornais? É que, no livro, você descobre que os personagens pensam, sentem, amam, odeiam — enfim, têm uma rica vida interior. Parecida com a sua.

No texto Perigo — palavras enlouquecendo (2002), ao apontar uma série de barbaridades cometidas diariamente contra a língua portuguesa, o senhor escreve que “num processo galopante de degeneração da língua, estamos falando como zumbis, e os jovens, talvez, mais do que todos”. O senhor acredita que a língua portuguesa passa por maus bocados neste momento no Brasil? E a que (ou a quem) o senhor credita este descaso?

Hoje de manhã, uma amiga minha me disse candidamente: “Fulano me adicionou no Facebook” — e, pela minha cara, caiu em si, sentiu o ridículo, viu que estava falando em internetês e começou a rir. Já falamos melhor, não? Apesar dos acréscimos à língua — usamos hoje palavras que não existiam há 20 ou 30 anos, porque não havia função para elas —, temo que o vocabulário de uso corrente tenha sido consideravelmente reduzido. A culpa disso é nossa, que trabalhamos com livros, jornais, revistas... Sempre que deixamos de usar uma palavra ou expressão, porque ela “pode não ser entendida pela maioria”, contribuímos para sua morte — e aí é uma ferramenta linguística a menos. Se quiser se certificar do estado deplorável da língua na boca do povo, ouça as entrevistas dos jogadores de futebol depois dos jogos. E todos usam as mesmas palavras: “com certeza”, “a gente já sabia” e “agora é levantar a cabeça”.

Se por um lado a língua portuguesa não é tratada com galanteios pelo povo, a literatura brasileira parece percorrer um caminho bem mais animador. Nunca o país abrigou tantos festivais, feiras, bienais etc., e também há uma um grande número de prêmios literários. A literatura brasileira passa por um bom momento ou estes sinais que chegam de vários cantos do Brasil têm pouco significado?

A literatura brasileira passa por um bom momento de mercado. Os prêmios, feiras e bienais tornam alguns escritores conhecidos e isso pode ajudá-los a vender mais e a se profissionalizar. É do que precisamos: de escritores profissionais — os gênios virão com o tempo. Ao mesmo tempo, houve uma mudança de escala, fazendo com que certos best-sellers estrangeiros agora saiam aqui com uma tiragem de 800 mil exemplares, segundo suas editoras. Se isso for verdade, que interesse terão em editar um romancista brasileiro estreante que, se vender excepcionalmente bem, não chegará a oito mil?

A leitura do conjunto de textos de O leitor apaixonado causa certa nostalgia de uma época romântica do jornalismo, desde os jornais cariocas das décadas entre 1950 e 1970, aos grandes jornais e revistas do mundo feitos há alguns anos. O senhor considera que o jornalismo já teve tempos mais gloriosos do que os vividos atualmente? O que mudou? Por que mudou?

A nostalgia é de vocês, não minha. Acho os jornais de hoje melhores que os dos anos 1950, que eram uma bagunça gráfica, sem qualquer critério editorial, os textos tinham enormes narizes-de-cera e a opinião contaminava permanentemente a informação — uma simples notinha de cinco linhas no Globo, por exemplo, era quase um editorial, principalmente se envolvesse comunismo ou algum aspecto moral. A partir da reforma do Janio de Freitas no Jornal do Brasil, em 1959, as coisas melhoraram. Mas, mesmo assim, a maioria dos outros jornais levou décadas para seguir o modelo do JB, e vários morreram pelo caminho antes de adotá-lo. O que os salvava eram os colunistas: a Última Hora tinha Nelson Rodrigues, Antonio Maria e Sergio Porto. O Correio da Manhã tinha Carlos Drummond de Andrade e um escrete de críticos — Moniz Vianna e Sérgio Augusto no cinema, Fausto Cunha na literatura, Mario Pedrosa nas artes plásticas. O Globo tinha uma ótima seção de esportes, inclusive desde cedo usando cores. Mas não eram jornais fáceis de ler. Os de hoje são mais bem editados, os assuntos são organizados em cadernos. O que eles quase não têm é o charme dos antigos colunistas e cronistas.

Que tipo de benefício a internet pode trazer à literatura? Ou não há benefício algum nesta relação que busca algum tipo de harmonia?

Quando ouço alguém dizer que “pesquisou” a meu respeito no Google, já sei que vem besteira a caminho. O Google só deveria ser acessível a pessoas com, no mínimo, um Ph.D. em história e filosofia [risos]. É um instrumento poderoso demais para ser usado por semi-ignorantes.

É muito comum as biografias causarem grande alvoroço com os familiares dos biografados ou, às vezes, com os próprios biografados. Livros são proibidos de circular. Processos se arrastam na Justiça. Qual a sua opinião sobre a chamada “Lei das Biografias”, que pretende alterar o artigo 20 do Código Civil na tentativa de evitar que biografias sejam impedidas de circular?

Totalmente a favor. Qualquer medida que venha proteger a biografia deve ser apoiada, mesmo que venha às custas do biógrafo como pessoa física, que pode ser processado. Eles começaram processando um livro e tirando-o de circulação por um ano, como aconteceu comigo no caso de Estrela solitária — Um brasileiro chamado Garrincha, em 1995. Depois processaram, tiraram de circulação e sumiram com o livro do Paulo César Araújo sobre aquele cantor. E agora querem impedir que o Edmundo Leite escreva sua biografia sobre Raul Seixas. É a lei da mordaça, nas barbas desse Código Civil frankenstein que existe no Brasil.

Há pouco tempo, assiste-se a uma proliferação de oficinas de criação literária pelo Brasil. Alguns autores se dizem “formados” em oficinas. Como o senhor avalia este fenômeno?

Bem, eu próprio já dei vários cursos de biografia, no Rio e em São Paulo, e diplomei centenas de alunos. Acredito em oficinas de “criação literária”, desde que ministradas por escritores de verdade, não por professores inéditos, e mesmo assim apenas para dar um polimento ou orientação a um talento que já exista no aluno.

 

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