Flávio Carneiro faz parte daquela estirpe de criadores que não se contenta em permanecer em apenas um lugar de criação. Além de ficcionista, Carneiro, nascido em Goiania, porém radicado no Rio de Janeiro, há quase 30 anos, atua como professor de literatura, curador, roteirista de cinema e crítico literário. Escreveu os romances O campeonato (Objetiva, 2002) e A confissão (Rocco, 2006), nos quais se aproxima do romance policial e da literatura fantástica, respectivamente. Foi crítico literário de O Globo e do Jornal do Brasil entre 2000 e 2007. O último livro lançado por Flávio Carneiro, O leitor fingido (Rocco, 2010), consiste numa interessante mistura de ficção, ensaio literário e autobiografia. Na obra, o autor faz uma série de reflexões sobre a figura do leitor, pensando de que maneira os textos literários metaforizam e debatem a leitura e a importância dos leitores no mundo da literatura. Nesta entrevista, concedida por e-mail, Carneiro, além de falar do leitor fingido, conversa com o Pernambuco sobre crítica literária e ficção contemporânea, entre outros assuntos.

O que levou você a escrever O leitor fingido? Você acha que a figura do “leitor” continua em segundo plano nas reflexões literárias?
Sempre achei que o ofício de escritor está diretamente relacionado a uma experiência de leitura. Não acredito em escritor que não lê. Nesse livro, quis falar um pouco disso, dessa dupla face da literatura: o escritor e o leitor. As reflexões sobre a figura do leitor já foram mais escassas. Desde os anos 1970, na Alemanha, nos EUA e mais recentemente no Brasil, esse quadro vem mudando e hoje já se pode falar em linhas de pesquisa consistentes sobre o tema da leitura. Mas acho que ainda pode melhorar, o leitor é parte fundamental da literatura e merece mais atenção por parte dos pesquisadores da área.

No seu O leitor fingido, você faz uma interessante mistura entre crítica literária, ficção e escrita autobiográfica. Como e por que você chegou a esta forma de escrita para o livro?
Demorei muitos anos trabalhando no projeto do livro porque não sabia ainda como escrevê-lo. Até que optei por uma escrita híbrida, que misturasse ficção, ensaio e depoimento. A opção veio naturalmente e depois pensei comigo que tudo o que escrevi até hoje é assim mesmo, essa escrita misturada. Nos meus ensaios, procuro usar técnicas narrativas, buscando prender a atenção do leitor, inclusive com estratégias de criação de certo suspense, como o de sugerir certa interpretação de determinado romance e ir revelando essa interpretação aos poucos, deixando a surpresa para o final. Ricardo Piglia dizia isso, que a crítica é uma variante do gênero policial. Concordo com ele. E em tudo o que escrevo está, claro, minha própria vida. O escritor escreve sempre sobre sua vida. Não de forma explícita, direta, mas pelo disfarce, pelo fingimento ficcional. E a leitura também é uma forma de autobiografia. Se você quiser contar a alguém partes da sua vida, mostre para esse alguém os livros que você leu e as anotações que fez neles. Está tudo lá. Então, se queria escrever um livro sobre leitura e escrita, achei que o melhor seria investir nessa proposta: a de um livro que fosse uma história de vida, da vida de um leitor.

Na página 61, começa um raciocínio sobre aquilo que leva você a não gostar de um livro, contudo não chega a aprofundar este aspecto. Você poderia falar mais sobre isso?
O leitor deve, sim, fazer a distinção entre livros bons e ruins. O que não se pode é ditar regras: esse livro todo mundo tem que achar ótimo e esse todos devem jogar no lixo. Isso é autoritarismo e já sabemos quais são os resultados, não é? Agora, um leitor deve saber escolher. Deve ter seus critérios de escolha. No meu caso, não gosto de livro que subestime minha inteligência. Se percebo que um romance está querendo me doutrinar, me dar uma lição de moral – a famosa “mensagem” –, não continuo a ler. Assim como o escritor deve saber quando precisa abandonar o que está escrevendo e partir para outra história, o leitor também deve saber quando abandonar um livro que está lendo. O que é muito difícil, sem dúvida. Também não gosto de livros que não me deixam imaginar, que explicam demais, que me tiram o prazer (detetivesco) da descoberta.

Qual a sua leitura de ficção brasileira hoje? É possível traçar vertentes e características?
Escrevi um livro sobre isso, No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Lá respondo melhor a sua pergunta. O que acho é que a ficção brasileira atual é bastante rica, em qualidade e em variedade. Acredito que a falta de um modelo a seguir pode ter sido um problema, sobretudo no início dos anos 1980, no período pós-ditadura, mas também uma grande vantagem para as novas gerações de escritores. Se, por um lado, você ficava sem rumo, por outro tinha vários rumos pela frente. A questão era escolher. E os ficcionistas brasileiros escolheram bem, tanto os novos quanto os já consagrados e que estão sempre buscando arejar sua própria ficção. Só pra lembrar algumas das vertentes, poderia citar a do romance policial, que nunca teve espaço na nossa tradição literária e que vem, desde o final dos anos 1960, com Rubem Fonseca, encontrando ótimos ficcionistas. O mesmo ocorre com o fantástico. E a ficção passada fora dos grandes centros,  em cidades pequenas ou em lugares do interior do país, também tem aparecido, na contramão da nossa tendência ficcional, que é a do romance urbano. Vejo ainda como outras vertentes promissoras a do humor, a do diálogo com a linguagem da mídia (em especial da televisão e da internet), a do conto curto, entre outras.

O que te dá mais prazer: praticar a crítica literária na imprensa e na internet, ou dentro da universidade? Você concorda com a leitura que muitos fazem de uma “crise” da crítica nestes dois lugares de atuação?
Para falar a verdade, a crítica que faço na imprensa, na internet ou na universidade segue o mesmo padrão: seriedade na abordagem, com sustentação teórica e de história literária, e clareza de linguagem. E muito de imaginação. É isso o que busco sempre. Pode ser que não tenha conseguido, só o leitor pode julgar, mas é o que penso ser o melhor para mim, enquanto alguém que também escreve sobre literatura. Não acho que haja uma crise da crítica. Acho que as pessoas ainda estão procurando ler uma forma de crítica que não cabe mais, a do grande mestre, que diz o que se deve e o que não se deve ler. Quem procura esse tipo de crítica vai se frustrar, como alguém que procure o grande romance, o autor genial a servir de modelo. Não há mais espaço para isso no mundo em que vivemos. Acredito que há críticos ruins hoje, despreparados, mas também há críticos muito bons, com uma nova visão do que seja a crítica. Em todos os períodos de nossa história literária houve a convivência de críticos bons e ruins. Cabe ao leitor escolher o que ler, também em termos de crítica literária.

Seus romances O campeonato e A confissão partem de tramas do romance policial. Como a literatura brasileira atual trata o tema “crime”?
Nem toda ficção que tenha o crime como tema pode ser entendida como policial. Para ser um romance policial, é preciso que haja um crime, um detetive, uma investigação, ou, se não houver, que haja esses “espaços” – às vezes o “espaço” do detetive é preenchido pelo próprio leitor, por exemplo. Mas o crime pode ser tratado de outra forma, como mote para um romance de crítica social, ou de depoimento ficcional de alguém que mora numa favela ou que lida com o tráfico noutro ambiente urbano. Na literatura brasileira atual, essas vertentes convivem. A que mais me agrada é a do policial. Vejo o romance policial como um formato privilegiado dentre os modos de se escrever ficção, aquele em que é possível mesclar entretenimento e sofisticação, jogo intelectual e suspense.

Há algum tempo, entrevistei um editor brasileiro que criticava o fato do Estado brasileiro ser o maior comprador de livros do mercado editorial. Sabemos que um dos filões desse mercado é a literatura infantil e juvenil. Enquanto escritor que também escreve para crianças e jovens, como você analisa a atuação do Estado nesse setor?
Esta é uma situação complexa. O ideal seria que o livro infantil e juvenil tivesse seu lugar não apenas nas escolas mas também no cotidiano do leitor, que alguém entrasse numa livraria e encontrasse não apenas poesia e romance para adultos mas também romance e poesia para crianças e jovens. Desde que comecei a escrever livros infantis e juvenis, tive claro pra mim que não se pode fazer distinção de valor entre esse gênero e o outro, digamos só para adultos. Acredito que toda obra para crianças deve agradar também ao adulto, é uma condição para a sua qualidade. Infelizmente não é assim que as coisas funcionam. Literatura infantil e juvenil ainda é vista como uma forma sedutora de passar ensinamentos, de passar valores. Acho isso um grande, um gravíssimo erro. Literatura não é pedagogia. Aprendemos quando lemos um bom romance, mas um romance não deve querer ensinar nada. Se aprendemos é porque o romance em si, com a história que nos contou, nos fez um pouco melhores do que éramos antes da leitura. O que acontece é que, por pensar nessa literatura como mero suplemento didático, tanto o governo quanto a sociedade em geral decretam que lugar de livro para crianças e jovens é na escola, não nas livrarias e depois na casa do leitor. Um desastre isso.

Na sua oficina durante o A letra e a voz – Festival recifense de literatura, você falou um pouco sobre o tema “vida literária”. A literatura, enquanto carreira, já é algo viável? Quais os caminhos para um escritor se profissionalizar?
Viver de literatura no Brasil é viável sim. O difícil, quase impossível, é viver de direitos autorais. O que o escritor ganha com a venda dos seus livros é irrisório, apenas 10% do valor do livro vai para o escritor. Num país que lê pouco e compra poucos livros, não dá para viver disso. Por isso a grande maioria dos escritores no Brasil tem outras profissões além da de escritor. É professor na universidade, ou escreve para jornais e revistas, dá palestras, cursos, oficinas. Para um escritor se profissionalizar, em primeiro lugar é preciso que escreva. Tem muita gente pensando primeiro na carreira, na exposição midiática e coisas do tipo. Está errado. Primeiro o escritor tem que escrever, tem que lutar com as palavras todo dia, como diria Drummond. Não digo que o escritor não deva pensar em se profissionalizar. Se achar que é importante ser um escritor profissional, deve sim buscar ser um profissional. Agora, para isso ele deve levar muito a sério o que faz, não achar que pode escrever uma coisinha aqui, outra ali, deve ler muito, deve se aprimorar, escrever, retocar, escrever, retocar, sem pressa. Isso é importante: quem escreve deve ter paciência, muita paciência.

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