O primeiro conto de Machado de Assis publicado em língua inglesa veio à luz pelas mãos de Isaac Goldberg (1887-1938), crítico e professor de Harvard, em 1917. Dezenas de traduções de contos machadianos se sucederam ao longo do século, mas focaram sobretudo nas coletâneas Várias histórias, Páginas recolhidas, e Relíquias da Casa Velha. Só neste ano, leitores anglófonos puderam degustar a totalidade dos contos publicados em livro (76 de um total de quase 200, a maior parte publicados de outras formas), graças aos tradutores Margaret Jull Costa e Robin Patterson, responsáveis pelo volume The collected stories of Machado de Assis (Liveright Publishing Corporation). Já que estou terminando minha tradução anotada das Memórias póstumas de Brás Cubas (a quarta em língua inglesa), não quis perder a oportunidade de interrogar os dois colegas sobre suas estratégias, seus métodos, e sua relação com o mestre e com o país.
Vocês dois têm trajetórias bastante diferentes. Poderiam falar um pouco sobre como chegaram à tradução e como tem sido a vivência com a profissão?
Margaret: Estudei espanhol e português na Universidade de Bristol (Inglaterra). Fiz a minha primeira tradução literária em 1984 – um pequeno ensaio de Gabriel García Márquez – e, em 1987, fiz a tradução de um romance do escritor espanhol, Álvaro Pombo. A partir de então, não parei de traduzir, e tenho tido muita sorte com os autores que me deram para traduzir: Fernando Pessoa, Eça de Queirós, José Saramago, Javier Marías, e, mais recentemente, as poetas Sophia de Mello Breyner Andresen e Ana Luísa Amaral.
Robin: Cheguei um pouco tarde à tradução literária, após uma primeira carreira como advogado que me levou a viajar frequentemente ao Brasil e aprender a língua. Em 2012, participei de uma masterclass de tradução literária ministrada por Margaret e tudo se desenvolveu a partir daí.
Como foi o primeiro contato de cada um com Machado e com o Brasil?
Margaret: O meu primeiro contato com Machado foi na universidade, e foi amor à primeira vista! Mas tive que esperar mais de 30 anos para traduzir a sua obra. Só visitei o Brasil uma vez e há muitos anos, mas é verdade que o meu amor pela língua portuguesa começou com Orfeu Negro, que vi quando tinha 18 anos.
Robin: Meu primeiro contato foi com Dom Casmurro, que li há 10 anos. Um dos livros mais maravilhosos que já li. A essa altura, já conhecia bem o Rio de Janeiro, mas Machado me abriu os olhos para aspectos do Rio e do Brasil que ultrapassam a questão visual.
Margaret já traduziu um sem-fim de vozes lusitanas, e Robin já é íntimo tanto de Lúcio Cardoso quanto de Luandino Vieira. Como caracterizariam a experiência de traduzir Machado em relação aos outros autores?
Margaret: É um enorme privilégio poder traduzir Machado, mas não faço comparações entre autores. São todos diferentes e todos têm os seus prazeres e as suas dificuldades.
Robin: Senti uma enorme confiança em relação a Machado. Pode parecer intimidador traduzir uma figura literária tão grande, mas há um certo conforto em saber que você simplesmente precisa deixar que ele lhe mostre o caminho.
Miraram em alguma referência da literatura anglófona para levar esses contos para o inglês?
Margaret: Sou leitora da literatura anglófona de toda a vida, e esta experiência e o amor pelo meu idioma materno formam a base de todas as minhas traduções. Mas, no caso de Machado, talvez tenha tido em mente escritores lúdicos como Laurence Sterne, mas só subconscientemente.
Robin: Acho que ambos sentimos ecos de autores da língua inglesa que nos são familiares, e claro há momentos quando Machado faz alusões específica a todo tipo de autores, incluindo aí os autores de língua inglesa – lembro que estava numa releitura de grandes passagens de Paraíso perdido, de Milton, apenas para traduzir a referência de um trecho de Machado.
Como funcionou o processo de uma tradução em dupla? Além do diálogo entre vocês dois, chegaram a cotejar outras versões dos contos que já tinham tradução em inglês?
Margaret: Dividimos as várias coleções, e depois líamos as traduções de cada um, fazendo sugestões etc., até chegar a uma versão final. Agora, nem me lembro muito bem quais são as minhas traduções e quais as de Robin. Preferi não ler as outras versões inglesas que existem.
Adoraria ouvir histórias de termos ou frases que foram especialmente desafiadores ou curiosos, ou que lhes obrigaram a recorrer a fontes inusitadas para decifrá-los.
Margaret: Suje-se gordo! foi algo difícil. Tivemos que procurar uma frase em inglês que comunicasse aquela combinação de desdém e arrogância. Into the mire não é uma frase muito comum, mas acho que evoca ambas as emoções. Quanto a Aurora sem dia, a nossa versão, Much heat, little light, é também completamente diferente, mas acho que comunica a futilidade e a esterilidade da vocação poética do (personagem) Luís Tinoco muito melhor do que uma tradução literal do português, e também tem um agradável toque proverbial.
Queria parabenizar vocês por um detalhezinho que reparei. No conto Singular ocorrência, um personagem pergunta para outro se ele viu um “passarinho verde”, porque parece feliz. Já que essa expressão não existe no inglês, na tradução ele pergunta se o outro ganhou na loteria. Mas em vez de dizer que o sujeito está “feliz”, vocês colocaram que ele anda chirpy, que é um sinônimo de feliz, oriundo do cantarolar de um pássaro contente. Podem falar sobre como contornaram outras dessas expressões idiomáticas, e se ficaram particularmente contentes ou descontentes com alguma solução? (Ao cotejar várias traduções, por exemplo, vi que a expressão “caçador de pacas perante o Eterno”, usado para caracterizar um tio do alienista Simão Bacamarte, ainda não foi traduzida de forma que incluísse as pacas ou o Eterno.)
Margaret: Obrigada pelos parabéns! Parece que a expressão “caçador de pacas perante o Eterno” vem de Gênese 10:9, onde a tradução inglesa é “a mighty hunter before the Lord”, portanto sem “pacas”. Depois de muito falar e pensar e consultar uma amiga machadiana, decidimos desistir de qualquer referência bíblica e optar por algo que tinha mais a ver com o personagem no conto: “an inveterate meddler in the affairs of others”, que é, achamos, o significado subjacente.
Machado é muitas vezes visto como excepcionalmente universal – e por isso os brasileiros podem se decepcionar com a falta de repercussão da obra dele no exterior –, mas a leitura “ultracuidadosa” da tradução revela muitas de suas armadilhas linguísticas. Depois de traduzir Iaiá Garcia, Robert Scott-Buccleuch disse que Machado passava para o inglês sem muita dificuldade, graças ao fato de ele ter seguido moldes europeus. Mas na apresentação da tradução dele de Dom Casmurro, na década seguinte, ele diz que o estilo do Machado é tão conciso, tão sintético, que fica “virtually impossible to render satisfactorily in English”. Acham que a diferença é apenas das fases da obra do Machado – entre o período de Iaiá Garcia e o de Dom Casmurro? Vocês encontraram um Machado mais convencional e anglófilo ou sintético e escorregadio?
Margaret: Eu não diria que Machado tem armadilhas linguísticas, diria, antes, que foi um estilista consumado, e é preciso traduzir as palavras com muito cuidado para captar o tom de voz e o significado implícito (tanto quanto possível). Quanto à sua falta de repercussão no mundo, tem fãs como Susan Sontag, Philip Roth, Allen Ginsberg, Harold Bloom e Salman Rushdie, e os contos e romances já foram traduzidos para o inglês várias vezes. Infelizmente, o mundo anglófono é notoriamente resistente aos escritores de outras culturas, mas parece-me que a situação vai melhorando.
A presença (ou ausência) da escravidão na obra de Machado é discutida há décadas na crítica literária, e voltou à tona na resenha da tradução de vocês no New York Times. Lá, o resenhista comenta “his refusal to write more explicitly about slavery”. Como vocês viram isso no processo de traduzir os contos? A propósito, adotaram alguma estratégia conjunta para lidar com termos como “mucama” e “moleque”, e com a linguagem dos personagens escravizados?
Margaret: É curiosa a ausência da escravidão na obra de Machado (Pai contra mãe e O caso da vara são, talvez, exceções), mas quando se considera o público para quem escreveu – a classe média branca e rica – não surpreende tanto. É a mesma coisa na obra de Tolstói e Dostoiévski. Ainda que poucas, há referências nos contos à relação quase familiar entre donos e escravos. Em A mulher de preto, por exemplo, surge esta frase: “Morava só; tinha um escravo da mesma idade que ele, e cria da casa do pai – mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto”. Ou, como no conto Um homem célebre, existe uma relação que oscila entre o íntimo e o distante entre dono e escravo.
Robin: Não acho que adotamos uma só “estratégia” em relação a “mucama” e a “moleque” (já que sempre existirão outros fatores, como o contexto específico de uma palavra ou mesmo a estrutura da frase onde ela aparece), mas tivemos cuidado com termos relativamente neutros, porém explícitos, como “slave-woman” ou “houseboy”. O uso de expressões mais coloquiais em inglês tende a ser associado com regiões particulares e épocas (por exemplo “the antebellum American South” [nota 1]), que seria problemático de traduzir. O mesmo ocorre com o diálogo dos escravos nos contos. Usamos uma gramática não padronizada que Machado também usou, mas, ainda assim, tentando resistir a um padrão geográfico de discurso.
A tradução de vocês está sendo bastante comemorada no Brasil como uma redescoberta de Machado no exterior. A trajetória da obra dele em tradução para o inglês, no entanto, parece ser de pequenos booms de interesse (nos anos 1950, 1970, e no final dos anos 1990, por exemplo), que depois arrefecem. No Wall Street Journal, Sam Sacks diz que Machado ocupa um ponto cego na consciência do mundo de língua inglesa. Como vocês encaram isso?
Margaret: Como já disse, o mundo anglófono tem certa resistência aos escritores estrangeiros, sobretudo aos escritores de outros séculos, mas esperamos que esta nova tradução dos contos possa servir como uma introdução para os novos leitores às maravilhas de Machado. Esperamos também fazer novas traduções dos romances, começando com Memórias póstumas de Brás Cubas. Talvez seja o momento dum novo boom machadiano.
NOTAS
[nota 1] Período histórico do Sul dos Estados Unidos, que vai do fim do século XVIII ao início da Guerra Civil, em 1861.