A professora e pesquisadora da USP, Eliane Robert Moraes, é nome incontornável quando se fala de literatura erótica. Seus estudos ajudaram a divulgar a obra do divino Marquês de Sade no Brasil (é dela o posfácio da edição mais recente de 120 dias de Sodoma). Sua Antologia da poesia erótica brasileira há pouco foi lançada em Portugal pela Tinta da China. No final de 2017, numa conversa informal com Eliane, tive a ideia de convidá-la para escrever um dos livros do selo do Pernambuco. Surgia assim a seleta O corpo descoberto – Contos eróticos brasileiros (1852–1922), que é lançada este mês reunindo “taras” pouco conhecidas de nomes como Olavo Bilac e resgatando personagens como Coelho Neto. Aproveitando o lançamento, conversei com a pesquisadora sobre as descobertas que seu novo projeto propõe para o estudo desse período que foi fundamental para estruturar o que hoje entendemos por literatura brasileira.
O título dessa seleta soa, em certos momentos, como uma ironia em relação ao conteúdo do livro, O corpo descoberto. Há pouca carne nesses contos. Há, por outro lado, muita insinuação, muita tara, obsessões de vários tipos. Qual o corpo que você descobriu no processo de pesquisar esse livro?
Haverá mesmo “pouca carne” nesses contos? Tenho dúvidas... De toda forma, a questão dá muito o que pensar. Afinal, o que é efetivamente “orgânico” quando se está diante de uma realidade de palavras, como é a literatura? Creio que este livro toca justamente nesse ponto e tento explicar por quê. O “corpo descoberto” ao qual alude o título supõe a descoberta do corpo pelas palavras. As enormes restrições morais no Brasil daquelas décadas – no caso, de 1852 a 1922 –, impediam a literatura de abordar o corpo erótico por meio das palavras obscenas, ou seja, de empregar os termos que designam de forma direta as partes e os atos corporais ligados ao sexo. Assim, os escritores do período eram obrigados a “dizer de outro modo”, por vezes fazendo malabarismos extraordinários... Mas, o esforço de descobrir outras formas para dizer o sexo terminou por exceder o próprio intento original de burlar a censura. Foi essa a minha descoberta nessa pesquisa. Assim, ao lançar mão de toda sorte de procedimentos alusivos, a literatura acabou por desvendar também novas virtualidades do corpo, criando fantasias até então impensadas e ampliando os horizontes
do erotismo.
Essa é uma coletânea marcada por textos curtos, vários publicados em jornais. A categoria de conto nesse livro pode ser pensada também como uma produção, de certa forma, lateral desses autores, se pensarmos o status que a categoria romance sempre teve. O fato de serem textos “laterais” possibilitava uma liberdade maior por parte dos autores na hora da escrita?
É verdade que, no século XIX, o conto está longe de partilhar a reputação “nobre” atribuída ao romance. Mas, nem por isso o gênero está mais livre para se abandonar às temáticas eróticas... Até pelo contrário. Basta pensarmos em romances tão prenhes de erotismo como Lucíola, de José de Alencar, ou O bom crioulo, de Adolfo Caminha, ou ainda O cortiço, de Aluísio Azevedo. De certa forma, tirando a pornografia mais popular do período, o conto se mantém mais tímido, mais contido mesmo. Há um paralelo interessante que se revela neste livro, que diz respeito à prática do conto e à tematização do erotismo. Ora, no período romântico não tivemos muitos contistas e tampouco tivemos muitos autores interessados na erótica. A sexualidade ganha mais espaço mais tarde, com o Realismo e o Naturalismo, quando o conto passa a ser igualmente mais praticado. Acho que esse paralelo nos explica, em parte, porque o conto erótico tende a ser mais contido antes do Modernismo.
Você já fez um projeto de reunir o erotismo na poesia brasileira, num processo que ia dos primórdios da literatura brasileira até os dias atuais. Até que ponto esse processo de poesia lhe ajudou na “colheita” desses contos?
Passei quase 10 anos realizando a “colheita” para a Antologia da poesia erótica brasileira, que publiquei pela Ateliê Editorial aqui (Brasil), em 2015, e dois anos depois pela Tinta da China, em Portugal. Foi uma longa pesquisa e, ao longo desse tempo, muito material me caiu às mãos, e nem sempre em forma de poemas. A rigor, esses anos me foram muito valiosos para conhecer a erótica brasileira de uma forma plural, inclusive excedendo a literatura, o que me permitiu um contato intenso também com a dramaturgia, a pintura, a gravura e até o cinema erótico do país. Os contos me apareceram nesse processo e, a bem da verdade, a “colheita” segue seu rumo... A paisagem sensível sempre nos oferece novos frutos.
Só há uma mulher presente na seleção, que é a Júlia Lopes de Almeida, que aparece com dois textos – inclusive um deles, O caso de Ruth, é bastante trágico. Você veria alguma diferença da abordagem dela em relação à abordagem do restante dos autores?
Esse é um ponto sempre delicado. Se já temos tão pouca notícia de mulheres fazendo literatura no século XIX, imagine então o que acontece com a literatura erótica!
É realmente um dos lugares onde se evidencia a eficácia dos mecanismos repressores sobre nossas escritoras. E como! Sem falar que, no caso do Brasil e da maior parte dos países sul-americanos, esse quadro pouco se altera com a passagem ao século XX. Em Modernidade periférica, Beatriz Sarlo faz uma análise muito fina do lugar da voz feminina na Argentina modernista, chegando a conclusões que valeriam muito bem para o Brasil. Diz ela que algumas escritoras do período se veem obrigadas a lançar mão de imagens e procedimentos tradicionais para “tornar decente o sensível e o erótico”, ou seja, tendo que pagar um pedágio por ser mulher... Creio que é esse o caso de Júlia Lopes de Almeida, que comparece nessa seleta com dois contos muito bem-acabados, mas sem marcar diferença de seus colegas masculinos de ofício. Gosto disso. Afinal, por que deveria ela fazer diferença? Só por ser mulher? Como não acredito em “literatura feminina”, creio que a presença de Júlia Lopes de Almeida nesta coletânea só nos faz lembrar que muitas outras mulheres poderiam figurar no livro em pé de igualdade com nossos melhores escritores, não fossem os absurdos mecanismos de exclusão de nossa atrasada sociedade patriarcal. Fora isso, a boa literatura não tem sexo.
O ensaio O império da alusão, que é usado como prefácio para a obra, se detém no exemplo de Machado de Assis. E o curioso é que a sombra de Machado parece se lançar sobremaneira sobre essa seleção. Você poderia comentar um pouco da importância de Machado para esse livro?
Machado é Machado... E como há erotismo em seus contos! Confesso que, para mim, ter de fazer escolhas entre eles foi um dos momentos mais difíceis da composição do livro. Os contos machadianos são exemplares em diversos sentidos, e também no sentido erótico, porque tudo é muito velado e, ao mesmo tempo, muito pulsante. Por isso, os textos do autor de Causa secreta muitas vezes nos explicam os outros textos do volume. Creio que esse diálogo, ora manifesto, ora latente, é um dos aspectos mais ricos da coletânea. Até porque aqui se está sempre numa rua de mão dupla. Tome-se, por exemplo, a seção do livro intitulada De viúvas e viúvos: a formosa e circunspecta Conceição de Missa do galo comparece ali ao lado de outras viúvas cuja disposição sensual é muito mais evidente, como é o caso da fogosa signatária das Notas de uma viúva esboçadas por Aluísio Azevedo. Mas, colocadas lado a lado, esta não explica aquela?
No processo de leitura desses contos do livro, o que achei mais curioso foi a forma como sua seleção nos guia pelo olhar, nos faz ver um erotismo antes insuspeito. Você pensou um pouco nisso na hora de reunir esses textos, de que o livro seria uma conversa sua com o leitor?
Todo livro é uma conversa com o leitor, não é? Gosto de pensar assim. Isso me faz recordar uma passagem encantadora de Stendhal em De l’ amour, quando ele diz que só escreve “para aquelas pessoas infelizes, amáveis, encantadoras, nem um pouco hipócritas, nem um pouco morais às quais eu gostaria de agradar; conheço apenas uma ou duas delas”. Ora, a escrita permite fazer amigos que não conhecemos, mas com quem nos identificamos: para Stendhal, são as “almas sensíveis”, as pessoas de “sentimentos delicados”, aquelas “trinta ou quarenta pessoas de Paris que eu nunca conhecerei, que amo loucamente”. Adoro isso. Acho que estamos sempre implicados no livro. No caso de uma coletânea, como O corpo descoberto, a conversa inclui mais gente e o contato se amplia: afinal, nas seletas e antologias a gente apresenta os amigos de leitura aos amigos leitores, não é?
O livro termina com um texto do Mário de Andrade, já puro Modernismo, um texto com cenas bem mais explícitas. E mais: um texto que termina dizendo que a rotagonista seria infeliz para sempre. Por que encerrar o livro com O besouro e a rosa?
Por tudo isso que você aponta na questão. De um lado, a quebra do paradigma romântico que sobreviveu durante muito tempo entre nós, obrigando as heroínas a destinos melodramáticos. No conto de Mário, a infelicidade aparece sem a grandiloquência que marca muitos textos do século XIX e “ser infeliz para sempre” é apenas um atributo da nossa humana condição. De outro, sendo um conto quase contemporâneo da Semana de 1922, já estamos mesmo em “puro modernismo”. Em termos de erótica, isso supõe uma expressiva mudança de patamar. Nunca é demais lembrar que o movimento modernista reunia duas preocupações fundamentais: primeiro, a conquista de um novo olhar para o Brasil que levasse em conta formas mais “rebaixadas” de cultura; segundo, a busca de uma sintonia com as vanguardas europeias que, em grande parte, se voltavam com particular interesse para as expressões do erotismo. Não surpreende que o sexo seja abordado com maior naturalidade pelos nossos modernistas. Por fim, eu diria ainda que, ao encerrar este livro com um conto de Mário de Andrade, estou secretamente iniciando outro que, por sinal, começa com
um conto de Mário de Andrade!