entrevista evandro

Às 15h, nas terças e sextas-feiras, Evandro Affonso Ferreira senta-se a uma das mesas do café da Livraria Cultura da Avenida Paulista. Demora-se ali cerca de quatro horas, conversando com amigos ou conhecidos, entre advogados, jornalistas, atores, dramaturgos, artistas gráficos, críticos musicais e até escritores. Com um chapéu Pralana de feltro marrom protegendo a calva, o romancista de 72 anos é atendido com reverência brincalhona pelas garçonetes do lugar. Se as tardes são dedicadas à conversa fiada, durante a manhã, todos os dias da semana, seu local de trabalho tem outro endereço, mas de natureza idêntica. Evandro lê e escreve em uma confeitaria por duras horas. Tem sido assim desde o início do século, quando desistiu de manter um sebo – antes, ele fora bancário e redator de publicidade – e resolveu dedicar-se integralmente à literatura.

Ao longo desses anos, publicou 10 livros e ganhou prêmios por três deles: da APCA, por Minha mãe se matou sem dizer adeus em 2010; o Jabuti, por O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam em 2012; e, em 2016, a revista Bravo! conferiu-lhe o prêmio de melhor romance do ano por Não tive nenhum prazer em conhecê-los. Há cerca de dois meses, Evandro publicou sua 11ª obra: Nunca houve tanto fim como agora (Record), uma história das memórias de um menino que cresceu nas ruas de São Paulo.

O escritor é mineiro de Araxá, mas vive em São Paulo desde o início da década de 1960. Mantivemos, eu e o autor, longas conversas e uma extensa troca de e-mails. Esta entrevista é um resumo desse diálogo.

 

Minha primeira pergunta é se você acha que o fim do mundo está próximo? Em todos os seus livros a sensação é de que o máximo a que podemos aspirar é a uma extinção menos dolorosa.

Uma sensação premonitória, talvez, mas o fim do mundo, do meu mundo, começou no meu próprio nascimento. Vivo no abismo de mim mesmo, motivo pelo qual digo que tudo o que é ruim para a vida é bom para a literatura.

 

Hölderlin (poeta alemão) suplica às potestades que lhe concedam uma visita de Deus em troca de todo o resto de sua vida e de sua obra. Embora seus personagens sejam incrédulos, não é o caso de se pensar que não fomos nós que abandonamos os deuses, mas que foram eles que nos abandonaram?

Deus? Que diabo é isso? Num de meus romances, faço um personagem, à beira da morte, pegar na mão macia de Santa Teresa de Ávila, ao invés de pegar numa segunda e única alternativa: a mão de Darwin. Sim, sou um autor de cérebro contraditório. Não creio em Deus, mas acredito em Santa Teresa de Ávila. A Hilda Hilst perguntou, uma vez, para um amigo comum, o Alcir Pécora: “Eu acredito em Deus?” Sou ateu hipócrita. Quando o coração tamborila às tontas, descompassado, rezo sozinho no quarto escuro.

 

Loucura, solidão e morte é um trio do qual o mendigo, a órfã e Seleno, para só citar alguns de seus personagens, não conseguem se livrar. Você acredita que o artista é mais livre no inferno?

O artista se banha melhor no fogo do inferno. O subsolo do subsolo é seu paraíso.

 

Em Os piores dias da minha vida foram todos, você escreveu: “Meu amigo entrou para a literatura como Cheterston na igreja, para livrar-se dos seus pecados”. Quais são os piores pecados que deseja sejam perdoados em você?

Intolerância. Fui infectado pelo vírus da intolerância. Acho que os deuses da incomplacência me adotaram de vez.

 

Você pode comentar sobre a profusão de imagens em sua obra? Se eu tivesse que escolher uma que a resumisse, escolheria a Nau dos loucos de Brueghel, ou a Stultifera navis de Josse Bade, dentro das quais são amontoados todos os excluídos do “mundo civilizado”.

A Stultifera navis. A dos excluídos, dos loucos, dos sem porto, pátria, nada, ninguém. Deveria existir no topo dessa nave este magnífico epigrama kafkiano: “Há esperança, mas não para nós.”

 

Quando se examinam os interlocutores com os quais você dialoga, parece-me evidente sua filiação com gregos, latinos e renascentistas; na modernidade, com Musil, Schulz, Kafka, Broch, Kaváfis. Na literatura de língua portuguesa, além de Drummond, Rosa, Hilst, com quem mais você terça armas?

Cornélio Penna, Lúcio Cardoso e Juliano Garcia Pessanha são gênios, magistrais. Para não citar ele, o magnífico, louco e deslumbrante Samuel Rawet.

 

Você concorda com Witold Gombrowicz (1904-1969) de que “o mundo todo só existe porque é tarde demais para recuar”?

É pior. Acho que não deveríamos ter vindo, mas, já que viemos, o jeito é seguirmos o trouxe-mouxe pelos becos da indecisão.

 

Acho que outra provocação de Gombrowicz se encaixa no tipo de literatura que você faz: contradizer continua sendo a necessidade suprema da arte hoje.

Sim. Não concordo com absolutamente nada do que eu mesmo disse nas respostas anteriores. Não se entra duas vezes no mesmo rio, não é mesmo, senhor Heráclito?

 

Quero me deter um pouco na sua estética. Ela parece combinar pletora com concisão. Imagino-a como um pequeno cilindro – a curta extensão de suas narrativas – de ar comprimido.

É a concisão da própria vida. O súbito, o zás-traz, o fogo-fátuo. A sensação de que nasci ontem, sim, 72 anos atrás. Meu texto é epigramático, como o piscar de olhos da nossa própria existência.

 

Há uma longa discussão que surge de tempos em tempos no nosso ambiente cultural em torno do compromisso social do escritor e de um poder, suposto ou não, de transformação da literatura, com autores mais explicitamente engajados e outros não. No seu último livro, um homem que teve seu destino transformado escreve sobre os anos que passou nas ruas de São Paulo, quando menino. Não contarei o final para não estragar o prazer do leitor. Penso que, no seu caso, se há um compromisso, ele é de outra ordem, não exatamente o de transformação social, mas o de permanente espanto, de permanente dúvida. Álvaro Lins escreveu que “toda obra de arte há de ser essencialmente socrática, isto é: conter mais questões do que respostas”.

Sim, perfeito, Auden disse que a única obrigação que o escritor tem com a sociedade é escrever bem. Quando escrevo um livro, dou o máximo de mim. O leitor nem sempre faz o mesmo.

 

Você não divide o texto em capítulos; há, no máximo, um espaçamento entre as manchas de texto, como que para o narrador tomar fôlego. Em Nunca houve tanto fim como agora, o que existe são apenas asteriscos. Asteriscos remetem o texto principal para notas no pé da página. Qual o significado semântico disso? Como você pensou em asteriscos?

Não há semântica nisso, mas sua observação é poética, bonita, melhora, por assim dizer, a proposta real: dividir os fragmentos. Ao invés de imitar Nietzsche, numerando-os, resolvi “asteriscá-los”, se me permite o neologismo.

 

Quero falar a respeito dos títulos de seus livros. Como eles surgem? Para mim, eles procuram criar um efeito ambíguo de publicidade. 

Vou dar um exemplo. Estava escrevendo um romance. Fiz o que sempre faço: coloco um titulo provisório. Sei que a qualquer momento, a páginas tantas, surge o título definitivo. Foi o que aconteceu mês passado, quando ia atravessar uma avenida movimentada. Dia calorento, fico ao lado de poste, cuja sombra tinha meio metro, mais ou menos. De repente, uma moça pega, digamos, carona na minha sombra. Rimos. Sinal abre. Ela sai correndo. Fico. Abro minha mochila, anoto num caderno: “Nunca mais outra vez noutra sombra’. Sim: o título do meu próximo livro. O acaso não é publicitário. Veja o encanto inesgotável da literatura: ontem, lendo Henri Michaux, esbarrei neste verso: “Eu sou a sombra de uma sombra que se atolou.”

 

Você não entra em avião e se recusa a participar de eventos que não o remuneram. Há feiras literárias do Oiapoque ao Chuí, me perdoe o lugar-comum. Um escritor brasileiro como você vive do quê, de favores?

Sim, favores. A palavra me favorece. A palavra é meu capital de giro. Ensino palavra aos carentes de frases nas oficinas literárias; ensino palavras numa feira mais próxima; seis, sete horas de viagem de ônibus, se tanto. Sim, sigo à risca um epigrama do meu saudoso e querido padrinho literário, José Paulo Paes: “Para quem sempre pediu tão pouco, o nada é positivamente um exagero”.

 

Em uma carta a um jovem escritor, o que você lhe diria?

Seria a mais concisa de todas as cartas: Leia!

 

Queria que você comentasse sobre o que convencionalmente se chama de estilo. Como você chegou ao que se pode denominar sua ousadia formal?

A causa determinante, a raiz disso tudo, foi o autodidatismo, digamos assim. Não sabendo pontuar direito, comecei a lançar mão do ponto e vírgula a todo instante. Não contente, cataloguei uma infinidade de palavras sonoras, caídas em desuso, as tais estrabulegas e catrâmbias e zoropitós. Não contente, querendo ser o Paulinho da Viola da literatura, musiquei de vez o meu texto com rimas internas, aliterações. Acho que foi isso. Não sei explicar direito. O trabalho é árduo, exaustivo, as coisas literárias são dificultosas, lentas.

 

Você escreve todo dia, sete dias por semana? Simplesmente senta e tudo começa ou existe algum tipo de aquecimento?

Todo dia, por duas horas. No período da manhã. Fico numa padaria/confeitaria qualquer lendo, escrevendo e lendo, com um papel e uma caneta sobre a mesa. O ano inteiro. Quando encontro, durante a semana, uma frase interessante, sinto-me o rei da cocada preta, uma espécie de Bruno Schulz das Gerais, mesmo morando há séculos em Sampa.

 

Um dos efeitos secundários, como denominou Saul Bellow, da civilização do entretenimento é a necessidade de se produzir celebridades. Muitos dos seus colegas escritores parecem bem à vontade nesse palco. Em torno de você criou-se alguma espécie de culto? Como você se sente sob a luz dos holofotes?

Costumo dizer o seguinte: Quando o sucesso flerta comigo, mudo de calçada. Sou mais ou menos conhecido na Livraria Cultura da Avenida Paulista, em São Paulo. As garçonetes, pelo menos, depois de quase uma década, já sabem meu nome de cor.

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