Está sentada à mesa com a família, sabe que é a última refeição naquela casa, naquele país, naquela vida. Lá fora há uma guerra, os vizinhos foram embora, e chegou o momento de partir. Era 1975, em Luanda, capital da Angola, então colônia portuguesa, e Dulce Maria Cardoso tinha 11 anos. Como não conhecia a palavra “memorizar”, disse para si mesma que precisava “decorar” - como fazia na escola - o que estava vivenciando. Era preciso guardar consigo os cheiros, as pessoas, a paisagem, os últimos instantes, porque intuía que aquela partida significaria o fim de muita coisa.
Dulce Maria Cardoso cresceu, tornou-se escritora, e em 2011 publicou O retorno, livro que foi um marco não só na sua carreira, mas na literatura do seu país. Até então, ninguém havia tratado a partir da ficção, pelo menos não com tanta qualidade e profundidade, a questão dos retornados – aqueles portugueses que, por conta da descolonização, voltaram da África para Portugal praticamente com a roupa do corpo. Cerca de meio milhão de pessoas desembarcaram em Lisboa em poucos meses.
Até esse romance, Dulce havia publicado Campo de sangue (2002), Os meus sentimentos (2005) e O chão dos pardais (2009), todos eles premiados e editados no Brasil, mas foi com o livro sobre os efeitos da descolonização que a escritora chegou ao grande público e viu sua obra ser traduzida a mais de uma dezena de línguas.
Numa tarde em Lisboa, concedeu esta entrevista em que diz que a literatura não é o centro da sua vida, mas, sim, os seus afetos, e que, se nunca mais publicasse, não se sentiria frustrada, porque muito do que gostaria de dizer já está dito.
Você tinha 11 anos quando teve que deixar tudo em Luanda e vir para Portugal. Foi uma partida comentada em família, deu tempo de pensar no que ficaria para trás?
Meus pais não eram muito de conversar, mas de repente estávamos em guerra, e a guerra civil era muito notória, as coisas fechavam, as escolas fechavam, as lojas fechavam, não havia pão. E os vizinhos iam todos embora. Claro que mesmo uma criança percebe que não há retorno. E o meu pai também percebeu, mas não podia perder a esperança. Dizíamos: a escola fechou. E ele dizia: não tem problema, vai abrir outra vez.
O fato de nunca mais ter voltado a Angola tem a ver com o medo de mexer com lembranças dolorosas?
Não, isso não, eu estaria disponível para arriscar. Tem que ver com a questão de que os convites que tive foram sempre vindos de instituições ligadas ao regime, e de alguma maneira acho que não faz sentido aceitar, já que estou sempre a criticar o poder político angolano.
Ou seja, voltar não é algo que descarte.
Sim, claro, a partir do momento em que seja uma democracia.
Isso de pensar “preciso decorar” não foi já a decisão de alguém que quer ser escritora? Reter para depois contar.
No princípio, acho que o que eu queria era não esquecer. Queria guardar aquilo sempre comigo. Sabia que nunca mais voltaria, ou, pelo menos, que tão cedo não voltaria, e sabia que aquilo que estava a ver nunca mais veria. Mais tarde, quando cá cheguei, é que foi mais nesse sentido: um dia eu vou contar esta história.
E depois vem essa coisa tão engraçada que você conta, que, como não sabia como se tornar escritora, foi aprender a escrever à máquina.
(Risos) Foi assim: quero ser escritora. Qual é o curso para ser escritora? Eu perguntava para qualquer adulto que achava que podia saber, e todos me respondiam mais ou menos o mesmo: não havia curso. Durante anos, isso me angustiou profundamente. Médico tinha curso, advogado tinha curso, como é que escritor não tinha? Então, um dia, vi num filme um escritor a datilografar e achei: é isso. Eu tinha 14 anos e convenci os meus país e me colocaram num curso.
Mas, se você queria ser escritora, o caminho mais fácil era ter ido estudar literatura, não? Porque foi fazer Direito?
Não quis. Quando pude escolher, eu já sabia que havia pessoas que sempre tinham estudado os livros e achei que isso me iria limitar muito, que eu ficaria muito formatada.
Quando foi estudar Direito, imaginava que seria uma advogada que escreveria livros, pensava em conciliar?
Sempre achei que o que eu iria ser era escritora, mas tinha que fazer um curso, até porque fazia parte de uma vontade dos meus pais que eu respeitava. Eles não puderam estudar e tiveram um grande desgosto por isso. Deram-me a oportunidade e eu sentia que lhes devia fazer. E também era uma maneira de ser mais independente, se tivesse uma licenciatura, tornar-me-ia mais capaz no mercado de emprego.
Numa entrevista de 2009, portanto dois anos antes de sair O retorno, perguntam se não iria escrever um romance sobre os retornados. Já se falava nisso... Foi um livro muito aguardado, não foi?
Como de alguma maneira eu ia contando a história de como comecei a escrever e a relacionava com o fato de ter vindo para cá (Portugal), acho que as pessoas ficaram sempre à espera de que um dia escrevesse sobre isso. Como se, ao contar a história de que tive um acidente grande e fiquei muito tempo hospitalizada, ou que estive para morrer afogada, ficassem à espera (de um livro). Tudo isso é verdade, mas eu nunca escrevi sobre isso. A vida das pessoas é feita de muitas peripécias, mas nem todas são aproveitadas na literatura, servem para uma proposta literária que eu queira partilhar. Por exemplo, esses dois acontecimentos da minha vida, o de ter tido uma acidente muito grave e de ter estado a morrer afogada, eu lembro-me de tudo.
O último romance que você publicou é de 2011 e teve muito sucesso. O seu próximo é muito esperado, mas você parece que não tem pressa. Lembro que uma vez me disse que, se não publicasse mais nada...
Já estava bem. Há aquelas pessoas que dizem que nasceram para escrever, que sem escrever morreriam. Eu não. Eu gosto de escrever, acho que é o que faço melhor, mas a escrita não é o centro da minha vida. O centro da minha vida são os meus afetos, isso é que me faria parar de viver. Se eu perdesse todas as pessoas que eu amo, sucumbiria.
E escrever, poderia deixar de escrever?
Escrever tem que ver com ter alguma coisa para dizer. A minha maneira de me relacionar com o mundo passa pela escrita e, se calhar, é quase impossível eu não sentir essa pulsão. Neste momento, ainda tenho coisas que quero fazer. Mas se um dia deixar de ter... Da mesma maneira que demorei imenso tempo para publicar, não escrever não me aflige. Como contei, desde criança quis ser escritora, mas demorei até os 37 anos para publicar, e nem nunca me abeirei de uma editora, de um crítico ou de um professor para tornar isso possível. A única coisa que fazia era concorrer a concursos anônimos, e aí até havia mais a ideia do prêmio como uma maneira de ganhar dinheiro, já que tinha desistido da advocacia. Da mesma maneira que, sabendo que era o que eu queria, pude estar tranquila sem me mexer até os 37, posso estar tranquila agora, muito mais tranquila. Porque, na verdade, alguma das coisas que eu queria dizer, já as disse. Já têm o seu caminho. Se eu puser tudo o que já escrevi, tirando as coisas avulsas, já é imenso.
Possivelmente, muitos leitores estão à espera disso.
Talvez até gostassem. Mas o que é que me interessa? Já está feito.
É verdade, os seus livros, embora haja alguns assuntos recorrentes, em termos de estrutura, de forma de narrar, eles não têm semelhança nenhuma.
Nem quero. Não são parecidos e não pretendo isso. Não pretendo ter aquilo que se diz que é um estilo, em que se pega numa folha e se pensa: ah, aqui está ele. Talvez a minha identidade se constitua de tal maneira fora da escrita também, que nunca me interessou isso. Quer dizer, interessa-me que as pessoas que eu amo me reconheçam no meio da multidão, isso interessa-me muito. E que saibam, vendo um bocadinho de qualquer coisa minha, identificar. Agora, que um leitor leia uma frase minha e saiba que sou eu? Cada livro me fala de coisas tão diferentes, que seria muito estranho eu estar sempre a escrever da mesma maneira. Seria como se eu fosse a todas as ocasiões da vida com a mesma roupa. O estilo é uma coisa exterior, o que é importante, penso eu, é o que tem para se dizer.
É como se cada livro exigisse um estilo diferente, então.
E sirva para aquilo que estou a trabalhar. Por exemplo, o desafio maior de O retorno foi ter encontrado aquela voz de um adolescente, eu que sou muito mais velha (que o narrador) e nunca fui um rapaz, evidentemente. Agora, o que é que me interessa andar aqui a escrever só livros como adolescente? Ou escrever livros com uma linguagem tão poética como Os meus sentimentos? Naquela altura, e para aquele tema, aquilo interessava-me. Achei que estava certo, mas agora já não me interessa. Dificilmente repita. Dificilmente aquela fragmentação de O chão dos pardais torna a acontecer, como dificilmente o coro do Campo de sangue. Ou seja, dificilmente as coisas tornam a acontecer, porque dificilmente eu vou estar interessada naquelas personagens outra vez, e as personagens de alguma maneira ditam a maneira como eu falo delas. Isso vê-se nos meus contos. Tenho contos com linguagem de internet, com linguagem rural, com linguagem quase bíblica, com linguagem administrativa, e não há nenhum que eu diga: gosto mais desse estilo do que do outro. Não, eles estão adequados, no meu ponto de vista, àquilo que eu estava a querer dizer naquela altura.
Pensa na sua obra no futuro, em como a escritora será lembrada?
É-me bastante indiferente. Espero que as pessoas próximas recordem mais pelas gargalhadas que dei, pelos jantares que gostava de fazer, pelas festas, e que digam que eu gostava muito de dançar. Os livros vão estar aí, se estiverem, e as pessoas vão continuar a ler ou não ler, e dizer coisas ou não, mas isso é-me mais indiferente. Quer dizer, se os livros continuarem a fazer o que têm feito até aqui, ótimo. Senão, também, segue-se o curso natural, enquanto alguém se lembrar de nós não estamos esquecidos, não morremos completamente. Os livros não são o autor, são uma coisa que o autor fez, mas não são o autor.