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Manual de flutuação para amadores
(7Letras) está longe de conter instruções. Antes, os poemas de Marcos Siscar (Borborema, SP, 1964) fornecem perguntas – e reafirmam a importância de formulá-las. Neste livro, o crítico, tradutor e professor de Teoria da Literatura na Unesp, problematiza a existência, a escrita, a arte, a forma do poema, a relação com o mundo, por meio das pequenas coisas. Palavras, ideias e temas vão se relacionando, chamando uns aos outros ao longo das páginas. Mas de modo similar aos versos de Siscar, que por vezes “transbordam”, como ele diz, para a linha seguinte, produzindo ambiguidade e estranhamento, e assim chamando o leitor a agir sobre o poema. Há também ternura e fascínio nessa leitura, que se coloca entre o solo e a altura: “Não há como ter o “pé no chão” (num sentido existencial ou político) sem considerar esse imponderável, isto é, aquilo que nos faz flutuar, que escapa do nosso controle, que nos priva de nossas certezas imediatas”, resume Siscar nessa entrevista.

A seguir, o autor de Interior via satélite (Ateliê, 2010), Metade da arte (7Letras e Cosac Naify, 2003) e Poesia e crise (Unicamp, 2010) fala sobre o novo livro, as questões que se coloca enquanto autor, a poesia como perspectiva sobre o mundo e a noção de “crise”, frequentemente relacionada à poesia.

Certa leveza, a presença da efemeridade, algum titubeio, perguntar sem se preocupar em responder, deixar-se levar pelo vento, voltar-se para a subjetividade, mergulhar as mãos na terra, inquietude – tudo isso me pareceu rondar os poemas de Manual de flutuação para amadores. O que busca essa voz? De onde vem essa postura?

A inquietude e a fragilidade, em poesia, são modos de abertura para o mundo, evidências de uma relação com as coisas que é cuidadosa e, ao mesmo tempo, problematizante. Meu livro não faz de modo algum o elogio da inconstância ou da inconsistência, mas propõe (por vezes, aliás, bem firmemente) que a constância e a consistência dependem justamente da capacidade de levar em conta os fluxos de que somos feitos. Não há como ter o “pé no chão” (num sentido existencial ou político) sem considerar esse imponderável, isto é, aquilo que nos faz flutuar, que escapa do nosso controle, que nos priva de nossas certezas imediatas.
Retomo, de modo mais incisivo, um tema que já estava no livro precedente (Interior via satélite, de 2010): a altura. Refiro-me à altura não para revisitar qualquer transcendência, mas para modalizar e aprofundar um certo materialismo. É também uma tentativa de recuperar um tema e uma questão de poesia, que é o “sublime”, a possibilidade de se falar em beleza artística, de consideramos a arte como uma maneira particular e legítima de olhar para as coisas. Pensar o “empuxo”, como proponho em Manual de flutuação para amadores, é de certa forma pensar a capacidade que a poesia tem de nos oferecer um ponto de vista.

A leitura de seus poemas por vezes parece um deslizar, mas eles impõem alguns tropeços para o leitor. Como pensa o corte e a formulação de poemas em prosa?

O corte do verso é uma das figuras de linguagem mais básicas da poesia. Reconhecemos um poema, tradicionalmente, pelas suas linhas cortadas. Geralmente, cada linha contém uma frase, mas às vezes a frase “transborda” para a outra linha (é o que chamamos de enjambement) que pode muitas vezes soar como tropeço, como você diz. O modo de cortar o verso ou de encadear as frases, usando o recurso das linhas corridas (o que chamamos “prosa”), tem a ver com a cadência que queremos imprimir ao nosso uso da língua, mas também com um pensamento sobre a poesia. Na medida em que são um pensamento sobre a poesia, efeitos de “corte” e “enjambement” podem também fazer sentido no caso de poema em prosa.
O uso desses recursos, que às vezes soam como ruídos para o leitor, é uma tentativa de criar estranhamento, de sensibilizar o leitor para o fato de que alguma coisa está acontecendo ali, naquele texto, da qual ele precisa participar. O deslizar das frases convencionais pode criar a sensação de que o significado de um texto está contido nele mesmo, de que basta ao leitor acompanhá-lo, de que o melhor de um texto é ser levado por ele. O que tento fazer é criar uma sensação de artificialidade que obriga o leitor a fazer escolhas de leitura (se lê a frase até o final do verso, ou se conecta a frase com o verso seguinte, por exemplo). E assim ele acaba por perceber que a ambiguidade, em determinadas circunstâncias, não é uma perda de sentido, necessariamente. Ela é capaz de associar sentidos que se iluminam, uns aos outros.

Por vezes, leitores, críticos e mesmo poetas lamentam a falta de grandes projetos, tendências ou questões na poesia contemporânea – “que colecione todos os dramas todas as paixões as grandes frases e as pequenas as paisagens e os costumes todas as obsessões as intrigas (...)”, como você escreve. Isso lhe preocupa de alguma forma?

Isso me preocupa, sim. Como muita gente, me preocupo com o sentido daquilo que faço. Pergunto-me para que escrevo, para quem escrevo, se é o melhor que posso fazer, se vale a pena ou não, se não deveria parar, fazer outra coisa da vida, etc. Alguns preferem interpretar perguntas desse tipo (“vale a pena a poesia hoje?”) como prova inequívoca de que a poesia não tem mais interesse algum (porque, se tivesse interesse, segundo argumentam, a pergunta não seria necessária). Quanto a mim, acredito que qualquer pessoa minimamente interessada no que faz, independentemente de sua atividade, por mais prestigiada que seja, se faça perguntas desse tipo com frequência. Colocar essas questões de fundo faz com que vivamos as coisas de modo mais crítico e mais decisivo.
Se fazer perguntas é, no fundo, um modo de ser responsável, é importante constatar que a poesia moderna é uma poesia que se preocupa muito com sua situação. Uma de suas grandes virtudes é a de ser exigente consigo mesma e com sua situação histórica. O poema ao qual você se refere é justamente uma crítica à tentativa contemporânea de fazer dessa virtude poética uma limitação, ao projetar sobre a poesia uma visão totalizante e acumulativa que o (mau) romance foi incorporando ao longo do tempo. A ideia de totalidade não sobrevive à simples constatação de que flutuamos, de que as passagens são tão importantes quanto as estruturas.

Deixando os “Projetos” da Poesia Contemporânea de lado, quais as questões que lhe interessam, os temas que o instigam atualmente?

Tento ver minha inserção pública como algo mediado pela poesia, pela questão da literatura. Claro que essa opção é também uma forma de desmascarar outros tipos de mediação que não se assumem como tal: a do discurso político, a do discurso científico, a de determinadas tendências culturais. Fatos da política, da cultura midiática, da ciência aparecem frequentemente trabalhados nos meus textos, inclusive neste livro. Nesses momentos, interessa-me especialmente nosso modo de conceber “comunidade”, ou seja, de explicar os jogos de forças que determinam grupos ou identidades.
Mas quem lê meus poemas percebe que esses interesses reflexivos aparecem tematizados com muito mais frequência pela via das “pequenas coisas”; percebe que gosto de estar junto com pessoas, de colocar a mão na terra, de olhar a paisagem – pois a vida é uma viagem só de ida.

O embate entre o mundo utilitário, dos “manuais”, e o mundo subjetivo frequenta o livro. A poesia lhe ajuda a lidar com isso, serve como mediadora da experiência? Como viver os dias em meio a esse embate?

Como sugeri, a poesia constrói uma perspectiva sobre o mundo. Ela não é subjetiva ou anti-utilitária, no sentido de que se afasta do mundo por nojo do mundo ou de que se refugia na subjetividade de um eu, por incapacidade de encarar o que há em torno. A poesia é um discurso sobre o mundo. Mesmo a abjeção pode ser uma figura agenciada pela poesia para dar sentido àquilo que acontece.
Quando uso a palavra “manual”, no título do meu livro, é de maneira irônica, claro, pois o livro não traz um conjunto de regras, uma fórmula de como flutuar, de como viver. Nem por isso, o livro abre mão de dizer alguma coisa articulada. Não se abstém de levar em conta determinadas questões, de formular perguntas representativas. Em muitas circunstâncias, as perguntas são muito mais decisivas do que as respostas. Mesmo no mundo “prático”, é preciso se fazer perguntas. Sem elas, corremos o risco de reproduzir as piores coisas.

Poemas como “Autoficção” e “Piada de auditório” refletem seu incômodo quanto à exposição pública do escritor? Você discorda do saldo positivo apontado por algumas pessoas, a formação de leitores?

A exposição pública do escritor não me incomoda, de modo algum. Minha atividade, como poeta e como professor, vai exatamente no sentido de criar lugares para essa exposição. O poema “Autoficção” remete a uma discussão da literatura contemporânea, sobretudo romanesca, e propõe outra ideia de relação com a realidade. O poema “Piada de auditório” descreve uma situação de narcisismo e de cinismo mercadológico. O recuo que você sentiu nos poemas vem da posição que assumo em relação a esses temas. Não se trata de uma recusa à exposição do escritor.
Não é fácil falar sobre a formação do leitor em espaço tão reduzido. Eu diria, de muito geral, que o contato do público com os escritores e com as questões da literatura são extremamente benéficos para a literatura e para a leitura. O que me deixa intrigado, por isso mesmo (ao mesmo tempo em que cresce o interesse pelos escritores), é a extinção de muitos suplementos literários nas últimas décadas, inclusive os não deficitários do ponto de vista econômico, esses que são espaços dedicados à reflexão sobre a literatura e não apenas à venda de livros.

“Piada de auditório” diz: “poeta declara o fim da literatura/ e aproveita para autografar seus livros”. A discussão sobre o “fim da literatura”, a “crise da poesia” e uma “realidade plural” (sem impasse) para a poesia contemporânea vem à tona com frequência. Você mesmo abordou o assunto (mais para questioná-lo) em ensaios, preferindo falar em poesia e crise. Como procura trabalhar a relação entre tradição e “o interregno interessantíssimo do ‘quase’” na sua obra? O que essa crise representa para a sua poesia?

Constato que a ideia de crise acompanha a poesia há séculos. Na obra dos autores e no discurso da poética, essa ideia costuma ser um modo crítico de relação com a linguagem e com o contemporâneo: é um tipo de autocrítica que envolve também uma exigência crítica. Vindo de outros lugares discursivos (por exemplo, do jornalismo), a ideia funciona comumente como uma estratégia de substituição cultural. Tento me relacionar com isso da maneira a mais consequente possível. Na condição de crítico, acho que é meu papel contrariar a tendência contemporânea de excluir determinadas manifestações artísticas, a pretexto de hermetismo, de elitismo, de hegemonia, etc. Procuro redescrever a tradição poética, mostrando que a ideia de crise não é especificamente contemporânea e que, além disso, precisaria ser lida de outro modo. Nos meus poemas, tento manter uma atitude diante das coisas que seja contrariamente, e paradoxalmente, mais crítica e mais generosa.

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