Há dois anos tive a chance de editar/organizar a estreia literária da fotógrafa e escritora brasileira residente na Alemanha, Adelaide Ivánova, Polaróides (sic). Uma obra marcada por uma série de cartões-postais enviados para o ponto de partida, um livro sobre readequação após perdas, sobre a tentativa de se fotografar como uma ausência-ambulante sem maiores pudores. Agora ela lança pela editora portuguesa Douda Correria a coleção de poemas O Martelo, uma obra politicamente mais engajada, restituída por novas ausências, que coloca o corpo, o seu corpo, o nosso corpo, como uma espécie de “prova do crime”. Um crime que se repetirá todos os dias enquanto persistirmos no centro de uma sociedade onde costumes estão acima das leis. Apesar disso, a autora define seu novo projeto como mais feliz, “o livro como uma mordida”. Confira nossa conversa com Adelaide.
O Martelo que nomeia o livro é uma expressão que, como você define num dos poemas, remete tanto à violência (proteger-se é também, de certa forma, em algum momento também atacar) quanto a uma espécie de “batismo”, ao início de alguma coisa. Como você chegou a esse substantivo solitário para nomear o livro?
Esse livro foi praticamente uma encomenda da poeta Érica Zíngano. Dois anos atrás estava com ela num bar na Berlim Oriental e confessei que durmo com um martelo embaixo do travesseiro. Aí ela disse: "Adelaide, escreve sobre isso". Então o livro nasceu por causa desse objeto muito concreto, mas que também tem, claro, a simbologia que ele adquire quando deslocado do lugar ao qual ele pertence (a caixa de ferramenta haha). Então não tem alegoria, é a vida mesmo. O livro já nasceu com esse nome, e não tinha como ter outro.
O "martelo" do título é também o martelo da lei, ainda que quando falemos de lei não estejamos falando necessariamente de Justiça, Justiça com maiúsculas. E há um verso em especial em que você compara a visibilidade das festas à visibilidade de um exame de corpo de delito. O Martelo seria uma forma de você criar tanto um livro quanto as suas próprias leis, as leis da sua própria sociedade?
Eu não estava interessada em criar minhas próprias leis, eu queria apenas falar da inadequação das leis pra vida. Uma figura crucial quando estava montando o conceito do livro é Constantino, o primeiro imperador cristão. Para Constantino, tanto a mulher adúltera como a mulher estuprada eram criminosas, e teriam a mesma condenação - isso foi há 1.710 anos e ainda se age da mesma forma. Por isso o livro é dividido em duas seções - na primeira, é a voz da estuprada, na segunda, a voz da adúltera. Eu queria dar voz às duas. Uma mulher que se assume como ser sexual é condenável, assim como a estuprada é condenável (você sabia que Gandhi considerava uma mulher estuprada como tendo perdido sua humanidade? Pois é). Isso das leis ainda é uma ilusão. Elas não servem para nada, enquanto ainda houver um costume que fale mais alto que a lei. Criamos a lei Maria da Penha mas e daí?, se os aplicadores da lei acreditam que há uma mulher "protegível" e a outra, que não merece proteção?
A sua obra, a poética e a fotográfica, sempre é marcada por musos. Fale um pouco da presença do muso nessa obra em comparação com seu livro anterior, Polaróides, que tanto falava sobre o fim de um relacionamento.
O Martelo tem um muso, sim, que é Humboldt. Ele é como se fosse o herói do livro e tem o antagonista, que é o príncipe. Humboldt representa a fazeção das pazes com o masculino, com o pau. Ele é uma figura ficcional que condensa e é inspirada em várias figurais reais - os maridos, os amantes, o melhor amigo, o escritor preferido, etc. É o único nome próprio com letra maiúscula, porque ele representa uma figura en-Deusada. Não, tem Henriette Herz, também, que foi o primeiro amor do viajante alemão Alexander von Humboldt, que inspirou o nome do meu herói ficcional. Enfim, os dois livros têm isso em comum, da celebração do outro. A diferença entre os dois é que em Polaróides há uma tristeza ainda maior, por causa da minha própria inadequação pra vida e da minha incapacidade de articular uma linguagem, depois de sofrer uma grande perda. Já O Martelo eu acho mais alegre, por ser mais simples, mais direto. É como se fosse uma mordida.
O Martelo é um livro claramente feminista, até muito mais que o livro anterior. Como você destacaria a importância hoje para alguém declarar “sim, minha obra é feminista?”
Não é minha obra que é feminista, eu sou feminista e tudo o que eu fizer vai ser também - ao menos é a isso que eu aspiro. Eu destaco isso porque mais importante que uma obra feminista é levar uma vida que se posicione e isso é tão difícil. Eu vivo num relacionamento heterossexual burguês e sou diariamente confrontada com limitações à minha liberdade intelectual, sexual, emocional - tanto pelo meu marido, quanto pelas nossas famílias, pela sociedade e principalmente por mim mesma. É preciso estar atento pra conseguir ser socialmente funcional e, ao mesmo tempo, se manter ativista. Rihanna, Beyoncé e Madonna, por exemplo, todas são feministas e lutam pelo empoderamento das mulheres, mas cometeram deslizes graves em suas vidas pessoais, no que diz respeito a casos de violência e/ou machismo. Então sim, o livro é feminista porque minha vida é. Mas a obra não basta.
:: Poemas de O Martelo ::
a porca
a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.
o urubu
corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)
deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular
eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.
* Ainda sem data de lançamento no Brasil, o livro pode ser comprado pelo e-mail do editor português da autora, Nuno Moura: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..">Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..