Vanderley, gostaria que contasse, para os leitores do Pernambuco, um pouco da história da Demônio Negro.
O nome Demônio Negro nasceu antes do selo editorial, durante uma festa medieval quando eu morava na Espanha. Era assim: de um lado populares que representam anjos cristãos, vestidos de branco, e de outro lado, pessoas que representam mouros ou demônios, todos de preto, promovem uma disputa. Ganha quem faz mais barulho atirando com seus bacamartes. Isso foi em Valência, lugar onde aprendi e estudei catalão medieval e me fez recordar minhas raízes nordestinas. Nessa festa, eu ficava sempre ao lado dos demônios. O nome Dimoni Negre ficou desenhado, então, na minha cabeça, até o dia em que encontrei uma representatividade pra ele e criei um selo editorial em que eu pudesse resgatar as tradições das artes do livro, preservar algumas técnicas de impressão e acabamento que estão se extinguindo. Mas principalmente procurei criar um projeto literário sólido, exaltando a poesia e a prosa de invenção. O selo tem hoje 3 anos e agora associei-me à editora Annablume, que possibilitou uma amplitude maior na distribuição dos livros, inclusive em livrarias na Europa.
Qual o foco editorial do selo? Que critérios são utilizados para publicação?
Na poesia e na prosa, o foco é a inventividade, a novidade no bom tratamento na linguagem. Foco em novos autores e clássicos que por algum descuido do mercado editorial estejam à sombra, escondidos dos leitores. É o caso d’ O guesa, de Sousândrade, que apesar de duas edições fac-similares de muito mau gosto, teve realmente impressa sua última edição há mais de 100 anos, e na Inglaterra. Reeditei-o, dando-lhe o merecido tratamento editorial e tipográfico que resgatasse sua importância na literatura brasileira. Por isso, fiz um livro com capa em tecido importado da Alemanha, impressão com clichês e um minucioso estudo que recuperasse a sua característica tipográfica novecentista, sem esquecer que tivemos um amigo filólogo, Luiz Rosalvo Costa, ajudando na recomposição do texto.
Uma outra curiosidade do mercado editorial brasileiro é o caso de Glauco Mattoso, poeta maldito, conhecido em muitos países, e que até há pouco ainda pagava pra ser editado. Dele editei um pequeno livro intitulado A maldição do mago marginal, também uma edição com técnicas artesanais de impressão, mas muito luxuosa. Há ainda uma série de novos autores estreantes ou inéditos, nesses três anos. Os critérios de publicação vão desde minha admiração pelo trabalho do autor, até uma aposta em algo que tradicionalmente outras editoras não o fazem, isto é, imprimir livros com requintes de acabamentos em baixíssimas tiragens e manter preços de mercado.
É preciso um investimento muito alto para viabilizar um selo como Demônio Negro? A venda consegue dar lucro?
Normalmente, não há lucro, no máximo os livros se pagam. O investimento é relativamente baixo, se falarmos em equipamentos antigos, mas acredito que boa parte dele deva ser usado em formação. Produzir do nosso modo é caro e demorado, pois utilizamos sistemas de reprodução antigos nas capas e no acabamento, como linotipos, clichês etc. e a montagem é sempre manual. Isso encarece, porém, como somos nós mesmos que detemos o know-how de produção, não gastamos grandes valores em quantidades enormes de livros (digo isso, porque vale para livros de poesia, por exemplo) para justificar um baixo preço unitário. O modo de reprodução industrial para livros endivida as editoras porque demora-se para vender 1500 ou 2000 livros de poesia. A novidade que a associação com a editora Annablume possibilitou é a venda on line, pelo site www.annablume.com.br/demonionegro, e pudemos assim manter os preços acessíveis ao leitor, apesar do acabamento mais caro.
Existe sentido de fabricar um livro artesanal nos tempos do Kindle?
Os amantes do livro normalmente são amantes das artes gráficas. Esta arte é mais requintada nos livros que noutras áreas. Em geral, profissionais gráficos de revistas, de publicidade e de boa parte dos jornais não tem conhecimentos em artes tipográficas e as relações da tipologia com os modos de produção. As poucas escolas ensinam estética, mas muitos esquecem que o aprendizado da arte gráfica está intimamente ligado à técnica de reprodução, aos suprimentos utilizados, ferramentas e a seus suportes específicos. Nesse sentido, novos suportes terão sua própria estética advinda de sua tecnologia. Fui um dos primeiros a comprar o Kindle, acho-o fascinante, ela nasce da necessidade moderna de tornar tudo mais fácil e rápido de se reproduzir e de se vender cada mais e mais barato. Pena que desta necessidade, a qualidade do material editado e comercializado hoje é da pior espécie. Acredito que isso mudará. No entanto, ter em mãos um livro fabricado artesanalmente, sentir tactilmente a textura de um tecido na capa, os mais variados tipos de papel, a profundidade do impacto dos tipos de chumbo, o brilho e a densidade das tintas é uma experiência somente aprazível a poucos. E estes poucos justificam a produção artesanal e de baixa escala.
Quais são as principais etapas de publicação e editoração dos livros da Demônio Negro? Como eles são impressos?
Como já disse, sou também impressor. Pesquiso tecnologia gráfica há muitos anos. Eu mesmo seleciono o autor, traduzo, se for uma das línguas que domino. Desenho o livro, imprimo e monto. Isso, inclusive, está se tornando um impedimento à produtividade dos títulos, na medida em que se vão aumentando os lançamentos, mas em breve teremos gente treinada para fazê-lo também. As técnicas de impressão são escolhidas em função do livro. Não há regras, exceto na composição tipográfica das páginas, o respeito aos antigos manuais de composição e conceitos primordiais de grandes mestres impressores. Utilizo também sistemas de impressão digital, offset, fazendo um produto híbrido, algo que junta vários momentos dos sistemas de reprodução do livro. Estou projetando um livro, por exemplo, em que todas as imagens serão impressas em gravuras em metal por que o autor é um gravurista. A capa terá clichê de zinco e tipos de madeira. Parte do miolo terá impressão digital. Não será livro de artista, mas um projeto para utilizar técnicas de arte que tem a reprodução como essência.
Que experiências tipográficas e de produção artesanal de livros influenciaram o seu trabalho na Demônio Negro?
Tenho grande admiração e influências do editor e tipógrafo italiano Aldo Manuzzio, que definiu, no século 16, os padrões estéticos para livros que continuam ainda atuais e válidos. Aldus Manutius (que o software PageMaker homenageou, denominando-se Aldus PageMaker, nos anos 1980) notabilizou-se, entre outras razões, por ter usado os caracteres itálicos (ou aldinos) desenhado por um de seus assistentes, Griffo (daí a atribuição às palavras escritas em tipos itálicos). Na realidade Aldo Manuzzio, que chamava-se Teobaldo Manucci e mudou o nome por influência de um amigo, o cabalista Giovanni Pico, foi o editor que mais contribuiu para a divulgação da literatura humanística no século 16, especialmente das obras da Antiguidade grega. Gosto muito também das obras impressas em Portugal por tipógrafos judeus na época manuelina. No Brasil, tenho muita admiração e influência dos trabalhos de Cléber Teixeira (e sua Noa Noa) e Guilherme Mansur (e sua Tipografia de Fundo de Ouro Preto). Estes, sabem compor uma página como poucos.
Com o excesso de recursos da segunda metade do século 20 pra cá, o livro, em especial, teve um rebaixamento vertiginoso em suas qualidades gráficas e tipográficas. Sem contar uma influência às vezes grosseira de artistas plásticos desenhando livros. Há hoje também grande influência da web na composição dos livros, as páginas começaram a parecer páginas de revistas, com filetes pra todo lado, muitas famílias de tipos etc. Desses designers, quero distância. Fui aluno de Claudio Ferlautto, quando estudei na Belas Artes, em Sáo Paulo. Dele aprendi a utilizar poucas fontes de letras.
Que formação é necessária para alguém que deseja criar um selo com o perfil da Demônio Negro? O Brasil oferece cursos e incentivos que auxiliem essas iniciativas?
A formação de artistas gráficos, especificamente para o livro no Brasil, é quase inexistente. Em geral é como eu disse, muitos conceitos e pouca ou nenhuma prática. Aprende-se a ser diagramador na melhor das hipóteses. Há em São Paulo o Senai Teobaldo de Nigris, uma ótima escola. Lá tem equipamentos e bons professores. Acho que sem atributos básicos para a produção gráfica e conhecimento, formação e paixão pela literatura fica muito difícil alguém criar um projeto literário. Eu, além de minha formação em artes gráficas e tipográficas, estudei também literatura na PUC - São Paulo e design na Escola de Belas Artes. Sempre estudei línguas e viajei muito. Há que se somar a isso um pouco autodidatismo também, sem dúvida.
Como a Demônio Negro lida com dois gargalos da produção editorial: primeiro, a distribuição dos produtos; segundo, conseguir espaço na mídia?
A distribuição para livrarias ainda está numa fase inicial. Nós estamos selecionando alguns pontos pelo Brasil, fazendo parcerias e iremos expandir ainda este ano, inclusive para fora do País. Porém, quase tudo é comercializado no site da editora.
Quanto ao espaço na mídia, não dá pra nos queixarmos, pois temos conseguido boa divulgação. Acredito que pela importância dos títulos.
Você poderia falar dos projetos para 2010?
Para este ano, a pauta de publicações é até grande para o nosso tamanho. Entre os mais importantes lançamentos, teremos a obra poética e teatral do tcheco Vaclav Havel, que foi presidente de seus país; a reedição dos Poemobiles de Augusto de Campos; um inédito do português E. M. de Melo e Castro e outro de Guilherme de Almeida. Pelo selo também há muita coisa brasileira contemporânea, como os poetas Marcelo Sahea e Beatriz Bajo, os escritores Luiz Roberto Guedes, Furio Lonza e Tamara Sendler, entre outros.