Alexandre Vidal Porto, diplomata e colunista da Folha de S.Paulo, foi um dos autores premiados na primeira edição do Prêmio Paraná de Literatura, em 2012, premiação dada a originais inéditos, apresentados sob pseudônimo. O vencedor da categoria Romance — Sergio Y. vai à América— não era exatamente um iniciante: já publicara anteriormente Matias na cidade, pela editora Record.
Desde a publicação do romance pela Companhia das Letras, em 2014, o autor tem se dedicado intensamente à divulgação da obra em eventos literários Brasil afora. Esteve presente tanto em clubes de leitura promovidos pelas livrarias quanto em festivais literários: recentemente, na Feira do Livro de Porto Alegre falou sobre “Sexualidade e transformação”, assim como debateu, na programação paralela da Flip, o tema “Sexualidade, felicidade e autoexílio”. Tanto passou pelo sofá do Jô Soares quanto foi entrevistado por Jean Wyllys, a respeito da visibilidade LGBT.
Alguns livros têm a capacidade de provocarem nos leitores não apenas o desejo de indicá-los para as pessoas mais próximas, mas também um instinto de proteção destas de informações que possam comprometer a leitura e estragar eventuais surpresas. Esse, a história de um psiquiatra — Dr. Armando — e seu paciente mais instigante — Sergio Yacoubian —, é um de tais livros. Tendo isso em mente, a entrevista pode ser lida sem medo até o momento em que o escritor discorre a respeito dos famosos spoilers, essa preocupação tão contemporânea; depois desse trecho, alguns detalhes importantes da trama podem ser (e serão) citados.
Um teto todo seu, de Virginia Woolf, é uma leitura que permanece atual no que diz respeito às mulheres e a ficção: ela fala sobre a segurança financeira necessária para que se possa escrever sem interrupções uma obra de que se orgulhe. Você acredita que o escritor precisa buscar esse teto todo seu?
A necessidade de segurança financeira ou emocional depende do temperamento e das expectativas materiais de cada autor. O fato de que poucos escritores brasileiros consigam viver exclusivamente da atividade literária é um dado da realidade. Não dá para negar. Escritores que quiserem a garantia de conforto material devem ter uma atividade paralela que os sustente. Por outro lado, tem escritores que eu conheço que acham que a instabilidade — financeira, emocional — ajuda no processo.
Qual a importância de prêmios para originais inéditos como o Paraná de Literatura? E quanto aos prêmios pelos quais concorrerá em 2015 (com a edição da Companhia das Letras): são importantes ou melhor é ter um livro querido pelo público?
Nunca havia participado de concurso literário. Inscrevi Sergio Y.no Prêmio Paraná de Literatura por insistência de um amigo. Já tinha até esquecido do concurso quando tive a notícia de que havia ganhado. Além da visibilidade e da divulgação do livro, o prêmio paga uma boa soma em dinheiro, e tudo isso é instrumental para alavancar a carreira de um escritor, iniciante ou não. Gostaria de ganhar outros prêmios, naturalmente, mas não penso em prêmios enquanto escrevo. Não é algo que ocupe os meus pensamentos.
Como você concilia a atividade diplomática com o fazer literário — escrita de ficção e de suas colunas para a Folha? Essa experiência foi importante para a escrita de seu segundo romance?
Eu tento fazer com que uma não interfira na outra. Tento observar limites. Separo os horários do diplomata, do ficcionista e do articulista. Não gosto de promiscuidade entre as minhas diferentes atividades. Por exemplo: como sabia que o lançamento do Sergio Y. envolveria viagens e compromissos incompatíveis com a agenda de um diplomata vivendo no Japão, resolvi tirar uma licença sem vencimentos do Itamaraty. Mudei-me de Tóquio para São Paulo e mergulhei na vida de escritor. Enquanto isso, aproveito também para trabalhar no próximo livro. Pretendo voltar à diplomacia em agosto de 2015. Até lá, continuarei escrevendo em tempo integral.
Milton Hatoum (com suas histórias sobre imigrantes) e Bernardo Carvalho (com narrativas entremeadas por livros fictícios, inventados pelo autor para fins narrativos) são dois autores que vêm à mente durante a leitura de Sergio Y. vai à América. Esse foi um diálogo proposital? Quais influências e inspirações você tem para si quando escreve?
Sou fã de ambos, e o Hatoum foi uma das primeiras pessoas a ler o manuscrito do Sergio Y., mas o diálogo que você viu não foi deliberado.
Gosto muito de Maupassant, de Pirandello, de Kafka, de Flaubert e de vários brasileiros. No entanto, até onde eu concebo, são as histórias que me inspiram, e minha inspiração começa quando eu identifico um personagem que me interesse literariamente. Sou um contador de histórias. Em termos estilísticos, isso se reflete na minha busca por clareza sintática e propriedade vocabular. Quero facilitar a vida dos meus leitores. Não quero pedir-lhes mais esforço que o necessário para que eles entendam bem a história que quero contar. Para isso, preciso de um texto eficiente, que proporcione boa leitura. Esse desafio técnico que o texto impõe também me inspira.
Essa busca é perceptível, por exemplo, nos trechos relacionados à gastronomia: há algo de poético nas descrições, mas nada que pareça afastar o leitor comum. Como se faz para descrever uma sensação?
Minha maior preocupação como escritor é não afastar o que você chama de “leitor comum”. Não quero subestimá-lo. Quero que meu texto seja simples, mas não simplório; que tragam em si o essencial para que o leitor possa, a partir dele, construir uma visão própria e familiar da história que apresento.
Minha fórmula básica para descrever sensações é colocar-me na situação do personagem cujas sensações pretendo descrever.
Como se deu a ideia de entremear a narrativa com a biografia de Angelus, um dos personagens transexuais do romance?
Nos anos 1990, numa visita que fiz ao Museu de Imigração de Ellis Island, comprei um livro que trazia uma série de retratos de imigrantes recém-chegados aos Estados Unidos no começo do século passado. Entre esses retratos, encontrei a de um homem transexual, cuja biografia eu inventei e inclui no livro.
Em seu novo livro, você buscou escrever um romance sobre o exílio ou um bildungsroman em que um acontecimento (no caso, uma viagem) separa o menino do homem?
Para mim, Sergio Y. é meramente um romance sobre a importância de se arriscar em busca da felicidade pessoal. Não tinha formato ou tema predeterminado. Fui contando a história que eu queria sem me preocupar com classificações. Esse tipo de preocupação deve ser dos críticos, não dos autores.
Muita gente se esforça para indicar o seu livro sem revelar muitos detalhes da trama: há algo detetivesco na busca do Dr. Armando. O que pensa dos spoilers? Como você consegue falar sobre Sergio Y. nos eventos literários?
Eu não tenho problema com spoilers, mas tem gente que tem. Por isso, nas primeiras vezes em que apresentei o livro em eventos, evitava falar sobre as reviravoltas da trama que acabam, de certa maneira, tornando-se um dos temas centrais do romance. Atualmente, falo do romance sem medir palavras. No final, a leitura acaba sendo mais sobre como se conta a história do que sobre a história em si.
Carol Bensimon, em uma coluna para o blog da Companhia das Letras, constatou: “Brasil, 2013-2014. Não por acaso, vimos chegar às livrarias uma leva de romances que lidam com questões ou de identidade sexual, ou de identidade de gênero. [...] Seriam dramas impensáveis cinquenta anos atrás? Provavelmente, ao menos com essa abordagem (cinquenta anos atrás, o foco seria na repressão). Cem anos atrás? Absolutamente. A chance de vermos uma garota tranquila com sua bissexualidade cem anos atrás era a mesma de ver um iPod em cena. Ou seja, zero.” A escritora escreve sobre esses livros conseguirem ser publicados em editoras grandes, mas e quanto à escrita: Sergio Y. poderia ter sido escrito antes?
A história de Sergio Y. só seria possível de uns 20 anos para cá, quando o entendimento da transexualidade é maior e o processo de adequação sexual já se tornou possibilidade acessível a um adolescente de 17 anos em São Paulo ou Nova York. Sergio Y. é de um tempo no qual os transexuais já ganharam visibilidade, em que há personagens LGBT nas novelas das 9 e uma mulher trans é a CEO mais bem paga dos Estados Unidos. Esses são fenômenos contemporâneos muito recentes, que desmistificam a transexualidade.
A ida de Sergio Y. para a América era essencial para que se tornasse Sandra?
Não. O essencial para que Sergio se tornasse Sandra foram os exemplos que ele recebeu de gerações passadas. Areg [seu antepassado, imigrante] viajou para Belém, Angelus Zebrowskas viajou para Chicago e Sergio, para Nova York. No entanto, o destino dos três — a felicidade — era o mesmo.
Gregory Woods, em seu A History of gay literature, disserta sobre a tradição dos romances queer: houve uma época em que o final trágico era a regra; após Stonewall, buscou-se mais finais felizes; hoje, não haveria uma linha principal. Há controvérsias a respeito do final de seu romance, em particular no que diz respeito ao personagem do título. Você o vê de que de lado da moeda?
Eu considero o Sergio Y. um livro otimista. Sandra foi vítima de uma tragédia — de uma bala perdida em forma de gente, como eu digo, mas isso foi obra do acaso. Acontece todos os dias, com queers e não queers. Afinal, todo mundo morre mesmo. Uma vida boa não deve ser considerada ruim apenas porque foi curta. Há vidas boas, profícuas, que acabam cedo. Sergio morreu aos 23 anos, mas foi feliz enquanto viveu. É o que vale.
O livro também apresenta o ponto de vista dessa “bala perdida em forma de gente”, o que torna a questão mais complexa: ela também se culpa pela educação homofóbica, assim como o doutor Armando se martiriza por não ter ajudado Sergio no processo de readequação de gênero. Foi consciente a tentativa de matizar a moral de todos que têm voz no romance?
Foi consciente. Na minha concepção, um terapeuta experimentado como o Dr. Armando, ao narrar uma história, um caso clínico, procuraria apresentar o ponto de vista dos outros personagens com isenção. Ele procura dar a cada personagem a oportunidade de se explicar e de declarar de forma sincera, ainda que por voz alheia, o que pensa e o que sente em relação a Sergio e os rumos que a vida dela tomou.