Nos últimos anos, tem ocorrido uma série de mudanças no mercado editorial brasileiro. Destaca-se o processo de fusão e aquisação, no qual selos e editoras passam a fazer parte de empresas maiores. Um dos elementos motivadores desta tendência é a chegada de grupos editoriais estrangeiros ao Brasil. É o caso do grupo espanhol de comunicação e editoração Prisa-Santillana, que adquiriu a editora Moderna e detém as ações majoritárias da Objetiva.
A atuação da Prisa-Santillana em nosso mercado trouxe a prestigiada editora Alfaguara, sinônimo de qualidade na área de publicações literárias. O leitor do Pernambuco já deve ter entrado em contato com alguns dos livros do seu catálago: editados com esmero, os lançamentos da Alfaguara não apenas publicaram obras de autores consagrados da literatura mundial, como também trouxeram ao Brasil diversos títulos da literatura espanhola e latino-americana. Além disso, nomes pertinentes da ficção contemporânea em língua portuguesa, como Ronaldo Correia de Brito, João Ubaldo Ribeiro e António Lobo Antunes, tiveram seus livros lançados ou reeditados por este selo.
Nesta edição, o Pernambuco conversou por e-mail com o paulista Marcelo Ferroni, um dos editores da Alfaguara no Brasil. Jornalista, Ferroni trabalhou na Folha de S. Paulo, na revista Galileu, na Istoé e na editora Globo. Na pauta, entre outros assuntos, foram abordados a trajetória da Alfaguara, as tendências do mercado editorial e o quanto interessa, às editoras estrangeiras, traduzir literatura brasileira.
Ferroni, gostaria que você falasse um pouco da sua trajetória profissional e de como se tornou editor.
Sou formado em jornalismo. Comecei a carreira na Folha de S.Paulo. Como eu lia muito, me colocaram na área de ciência, da qual, por gosto, nunca mais saí. Continuei a ler muita literatura (escrevia contos nessa época), mas intercalada com livros de ciência, papers, revistas especializadas etc. Em 2004, deixei o jornalismo e, após um período como free-lancer, passei a trabalhar como editor de livros da Editora Globo. Eles já me conheciam por alguns serviços que eu havia feito para eles e porque haviam decido publicar, nessa época, um livro de contos meu na editora. Então fui chamado e, de certa forma, acabei virando meu próprio editor. Editava tanto não-ficção (biografias, livros-reportagem, ensaios, divulgação de história e — é claro — ciência) quanto ficção literária. Saí da Globo em 2006 para trabalhar como tradutor e editor free-lancer, e no final do mesmo ano fui convidado a trabalhar na Editora Objetiva, no Rio de Janeiro, para assumir o cargo de editor da Alfaguara, selo de literatura da editora que tinha acabado de ser criado.
Como surgiu a Alfaguara, qual a linha editorial deste selo e a importância da chegada dela ao Brasil?
A Alfaguara é um selo de ficção literária que existe há mais de 40 anos na Espanha e se tornou uma referência ao longo dos anos. Aqui no Brasil o selo foi criado em outubro de 2006, focado em ficção literária, tanto nacional quanto estrangeira. Já existia no país uma forte tradição na publicação de ficção literária, com excelentes editoras. Mesmo assim, ainda havia um espaço para publicar bons livros e bons autores, e acho que conseguimos rapidamente nos firmar como um selo de alta qualidade literária.
Nos últimos tempos, observamos uma tendência do mercado editorial de diversos selos e editoras estarem agrupados em torno de empresas maiores. Qual a sua leitura deste processo?
Depois que a Santillana adquiriu parte da Objetiva, a Objetiva passou gradualmente a lançar alguns dos selos já existentes na Espanha. Começou com o selo Suma, de ficção comercial. Em seguida, lançou a Alfaguara, para ficção literária. A Objetiva optou por criar diferentes selos para cada tipo de livro; assim o leitor sempre sabe o que encontrar em cada um deles. Mas há editoras de grande porte que lançam todos os livros em uma só marca. É uma opção editorial.
O romance Galileia, do cearense, radicado em Pernambuco, Ronaldo Correia de Brito, foi um recente sucesso de público e crítica, vencendo o Prêmio São Paulo 2009 de melhor romance. Você poderia nos contar um pouco de como foi o processo de editoração deste romance, desde a avaliação dos originais até a sua publicação?
Quem nos falou do livro do Ronaldo pela primeira vez foi o Rodrigo Lacerda. Havíamos contratado seu romance mais recente, Outra vida (lançado pela Alfaguara em 2009), e o Rodrigo havia conversado sobre isso com o Ronaldo, que também se interessou em nos enviar seu romance para avaliação. Eu e a Isa Pessoa, diretora editorial da Objetiva, lemos rapidamente o livro. O romance, de fato, é um desses livros arrebatadores, que prendem desde o início o leitor. Conversamos com o Ronaldo, que concordou em publicar seu livro por aqui.
O romance já estava todo ali, com toda sua força, pronto para ser publicado. A edição, pelo que me lembro, foi tranquila, e conseguimos lançar o livro em outubro de 2008, conforme havíamos discutido com o Ronaldo. Foi um dos livros que me deu mais prazer de editar, não só pela sua qualidade, mas também pela convivência com o Ronaldo, uma pessoa incrível. O Prêmio São Paulo de Literatura foi uma notícia sensacional e agora estamos batalhando para publicar Galileia em outros países. Até agora, conseguimos na França e nos países de língua espanhola.
Como você avalia o mercado para livros de bolso no Brasil?
O mercado de livros de bolso é um mercado crescente e importante para fazer chegar ao leitor livros de qualidade e a preços mais baixos. Lançamos o Ponto de Leitura (selo da Objetiva voltado às publicações de bolso) recentemente, e a recepção do selo, entre livreiros e consumidores, tem sido muito positiva.
Como a editora Objetiva e os seus selos estão lidando com os desafios da virtualização do livro?
Estamos fazendo isso aos poucos, conversando com autores, agentes literários e outras editoras, para criar um sistema que seja bom para todas as partes.
Tem sido muito discutida a projeção da literatura brasileira no exterior. Há algum tempo, entrevistei um escritor paulista que defendia haver pouco interesse dos editores internacionais na tradução de nossa literatura. Há interesse da Alfaguara e dos outros selos da Prisa-Santillana em traduzir literatura brasileira? O que os editores estrangeiros esperam da nossa literatura?
A Alfaguara na Espanha está aberta, claro, à literatura brasileira de qualidade. Sei que eles têm leitores muito bons do português, e nos correspondemos com frequência sobre isso. Mas esse não é o caso de todas as editoras estrangeiras. Veja o caso de Galileia. Agora em março a Liana Levi, uma editora francesa, deve lançar o romance na França. Em língua espanhola, o livro foi comprado pela prestigiosa editora Adriana Hidalgo. Ambas as editoras leram o livro no original e fizeram rapidamente uma proposta de publicação. Mas não é sempre assim. Em outros países, algumas editoras nos pediram a tradução francesa, pois não podem avaliá-lo diretamente do português.
A respeito do que eles esperam... isso varia. Alguns querem livros que “viajem”, ou seja, que possam ser rapidamente compreendidos por leitores de outros países. Isso está ligado principalmente à forma do texto; aqueles mais experimentais, mais radicais, são mais difíceis de ser traduzidos e de conquistar os leitores estrangeiros. Nesse caso, o editor precisa apostar no autor, publicar sabendo que não terá retorno a curto
e médio prazo. Outras editoras esperam um certo exotismo... mas não tenho visto isso tanto.
A Alfaguara investe num produto que mantém uma tensão maior com os valores do mercado e possui preocupação de legitimar-se enquanto “arte”. Como um editor deve lidar com o equilíbrio entre “expectativa do mercado” e “Literatura”? Uma editora consegue se sustentar ao investir somente em “ficção literária”?
A ideia da Alfaguara é lançar bons livros de ficção, de alta qualidade literária, mas que ao mesmo tempo possam atingir um público leitor mais amplo. Lançamos desde autores novos — brasileiros ou estrangeiros — até clássicos da literatura que estavam fora do mercado havia algum tempo, ou que nunca tinham sido publicados no Brasil. Recentemente, por exemplo, lançamos o primeiro romance de fôlego do escritor paulista Ricardo Lísias (O livro dos mandarins), uma nova tradução de O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, e um livro da década de 1980, muito bom, e que nunca havia saído no Brasil: Até mais, vejo você amanhã, do norte-americano William Maxwell, que foi por 40 anos editor da New Yorker. Todos os livros têm em comum a qualidade do texto. São também acessíveis, profundos, muitas vezes divertidos. Mas investir em ficção literária não é uma equação simples. É preciso emplacar alguns sucessos de vendas (como, no nosso caso, Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa, ou Os espiões, do Luis Fernando Verissimo) para conseguir equilibrar a conta dos romances que vendem menos.
Um dos lançamentos que mais gosto da Alfaguara é a revista literária Granta. Você poderia falar um pouco sobre ela?
A revista Granta, entre os leitores de língua inglesa, tornou-se uma referência da nova literatura. No Brasil fizemos uma parceria para publicar a Granta em português, com textos inéditos de autores brasileiros e textos de autores que já tenham sido publicados em alguma edição internacional da revista. Lançamos também alguns números especiais, como o primeiro volume, dedicado aos melhores escritores norte-americanos jovens. A editora da Granta no Brasil é a Isa Pessoa, que seleciona os textos e pensa nos temas de cada edição. Até agora, tivemos uma boa repercussão com a revista, que está em sua quinta edição.
Que conselhos daria àqueles que desejam começar uma carreira de editor, ou que desejam trabalhar no mercado de livros em geral?
O mercado editorial é pequeno e não existe uma forma padrão de entrar nele. Comecei como free-lancer, fazendo pareceres de livros para a Editora Globo. Ou seja, eles me enviavam livros que haviam recebido para publicação e eu escrevia um relatório sobre eles, sugerindo ou não a publicação. Isso, e a publicação de meu livro de contos, abriu caminho para que eu conhecesse os editores e me candidatasse a uma vaga quando tive a oportunidade. Muitas editoras têm programas de estágio, que também pode ser uma boa porta para entrar nesse mercado. Mas antes de sair à procura de uma vaga é preciso estar por dentro do que acontece no mundo dos livros. Não quero dizer que é preciso conhecer os procedimentos de revisão, de produção gráfica etc. Mas é vital que a pessoa leia muito, saiba o perfil de cada editora, conheça o trabalho de autores da área de interesse, tenha uma base cultural. No final, o que conta é a bagagem.