Penso em Pepetela e penso em Hemingway. Explico: penso em autores reféns de seu (auto)personagem. Pepetela, já o vi dizer no registro em vídeo de um bate-papo na UFRJ, que gosta de criar e também “quebrar mitos”. É fato: os mitos da nação Angola ora são criados, ora desestruturados na sua obra. O próprio escritor já disse ter tomado como mito a ser quebrado, ou pensado em um livro seu, a ideia do “internacionalismo proletário” e da solidariedade irrestrita entre os países do antigo bloco comunista. O mito de Manuel Cerveira Pereira, fundador do inexistente reino de Banguela, também é retrabalhado na sua obra. Mitos sobre branco e negro, sobre a ideia de nação, a lista é longa e passível de constantes atualizações. Mas há um mito que Pepetela, parece, criou e não consegue quebrar: o seu próprio. E aí penso em Hemingway. Quero dizer assim: imagino que, se Hemingway fosse vivo e viesse à Flip ou à Bienal de Pernambuco— para a qual vem Pepetela — muito se perguntaria a ele sobre o boxe, sobre barcos e pesca, sobre ir à guerra. E pouco se falaria dos seus livros. É a mesma sensação que tenho sobre Pepetela, e que um passeio pelo Youtube confirma. Parece irresistível querer saber sobre a guerrilha, a guerra civil, Angola ontem, hoje, sobre o que pensa Pepetela dos rumos da política, da sociedade, da economia angolanas. É como nos eventos literários que reúnem escritores da Palestina, de Israel, Irã. Dificilmente saberemos o que os autores escrevem. Mas sairemos de lá com muita clareza das suas visões de mundo, das suas posições políticas. Já escrevi isso uma vez: acho que tem, aí, um aspecto positivo: fala-se tanto da perda de relevância da literatura nos tempos atuais, mas, bem, ainda se quer saber o que os escritores — alguns deles, ao menos — pensam sobre o mundo. Isso parece ter algo de bom. Mas parece também caricaturizar um pouco os autores. Transformá-los em uma imagem.
Talvez você esteja lendo apenas lamúrios de um escritor de apartamento — eu. Talvez Pepetela intimide autores que crescerem jogando videogame, assistindo MTV na adolescência, sem muita transcendência. Porque Pepetela, Hemingway e tantos outros fazem parte daquele time de autores, tão diferentes entre si, mas iguais numa coisa: viveram para contar. O sujeito nasce numa colônia, parte adolescente para estudar em Portugal, filia-se ao Movimento Para Libertação de Angola, exila-se então em Paris e Argel, retorna para a colônia para pegar em armas, participa decisivamente da independência da sua nação, integra o primeiro governo, e creio que é natural que sua vida e experiência inspirem profundamente os temas da sua escrita. Só que uma consequência disso é, muitas vezes, crítica e leitores esquecerem a obra. Ou confundirem com biografia. Preocuparem-se só com a vida, com o foi ou não foi.
Lamúrios de um escritor de apartamento ou não, de alguém que às vezes se pergunta se tem mesmo o que contar, avanço um pouco nesse raciocínio sobre a recepção de Pepetela. Tudo bem que haja interesse pela vida dele, tudo bem. É de fato uma narrativa interessante, que já se desdobrou em muitas ficções interessantes. Mas me pergunto se, desse interesse bio ou historiográfico despertado por ele e por seus livros, não deriva uma atitude da qual muito já ouvi brasileiro reclamar: a supervalorização do pitoresco em detrimento do literário. Que jogue o primeiro Memórias Póstumas aquele que nunca viu, ouviu, ou leu um escritor brasileiro reclamar do reducionismo europeu e norte-americano por tratarem a literatura brasileira como parte da literatura latino-americana, relacionando-a com o boom latino-americano (aliás, referências ao boom também são motivos de queixas). E pergunto mais: não se reclama bastante por aí de que o estrangeiro só tem interesse pelo clichê da brasilidade, pelo balangandã, que é incapaz de perceber e abarcar o cosmopolitismo e a fragmentação da prosa nacional? Aquela pergunta: por que um brasileiro não pode escrever uma história que se passe em NY ou Londres, por que Jorge Amado segue sendo campeão de traduções? Pois é, camaradas, agora que tal perceber o tratamento que talvez dispensemos a outras literaturas? Não cometemos os mesmos equívocos em relação às literaturas africanas de língua portuguesa, justamente quando botamos, no mesmo saco chamado literaturas africanas de língua portuguesa, a produção de Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde e Guiné? Ou, ainda, quando eternamente invocamos o guerrilheiro Pepetela, quando percebemos que a maioria dos seus livros aqui disponíveis se relacionam com o seu viver para contar, não somos um tanto redutores sobre a produção desse autor e de todos os outros? Não fica o exótico e o histórico colocado acima do literário?
Ou melhor dizendo: Pepetela, quando indagado sobre a guerrilha, sobre a formação de Angola, temas de livros com mais de 20 anos (para falar de Geração da utopia), no mínimo, não se sentirá mais ou menos como, digamos, Paul McCartney? Não adianta querer vir com disco novo, tocar mambo, jazz ou hip-hop, toca aí Hey Jude. Pepetela, fala aí da guerrilha. Sempre penso isso sobre roqueiros que envelhecem, mas têm que continuar roqueiros e cantando versos que talvez não digam muito mais sobre si. Agora penso também sobre escritores com longa trajetória. Certamente orgulham-se do reconhecimento da sua obra pregressa — que sempre terá seu mérito e magia —, porém artistas estão sempre renovando a sua linguagem, olhando para sua produção atual.
Não se trata aqui de afirmar que é errado valorizar a trajetória, a história e toda a obra de Pepetela. É lembrar que também é bom dar valor ao outro lado — se que as coisas são polos opostos, provavelmente não, são partes de uma mesma coisa. Já vi em uma entrevista aqui, outra ali, Pepetela, despretensiosamente, dar uns toques sobre seus procedimentos literários. Sobre seus recursos narrativos — que não são poucos. Durante um debate, comentando O planalto e a estepe, por exemplo, ele observa que “normalmente pega-se num personagem verdadeiro e põe-se ficção à volta. Aqui é ao contrário: é uma história verdadeira, e os personagens e que são a ficção. Mais uma brincadeira. Se não se faz essa brincadeira, não tem piada nenhuma escrever... ser jornalista talvez”. Temos aí uma espécie de início de poética de Pepetela, que nem sempre é aprofundada quando ele dá deixas como essa. Claro, é o mesmo homem que já disse, numa entrevista para o programa Umas palavras, que “um dos papeis da literatura não é só mostrar habilidade a juntar palavras de uma maneira mais ou menos esteticamente bonita, mas tem uma função social”. Mas reparemos com cuidado no que a frase diz: “um dos papeis da literatura não é só”, quer dizer, não é apenas a forma, mas também é. Porém, esse tipo de assunto, digamos, menos engajado não costuma ser pauta muito debatida com o autor. E é evidente que os procedimentos literários têm grande importância na literatura pepeteliana. O depoimento mais eloquente a esse respeito não está em nenhuma entrevista ou registro de palestra. É um livro depois do outro quem melhor testemunha isso. Não li todos os seus romances, mas, com a amostra que já tive, me sinto seguro para fazer esse tipo de afirmação. As diferenças estruturais entre Mayombe e aGeração da utopia, por exemplo. Ou os diferentes olhares e tons sobre a mesma Angola que nos oferecem Jaime Bunda, agente secreto e Predadores. Ou repare no começo do conto Nosso país é bué: “Quando Miúdo Lito irrompeu pela casa feito bola de futebol a entrar na baliza do Primeiro d’Agosto, como ele gostava de ver no estádio da Cidadela, a mãe assustou, que passa, que passa?”; e agora preste atenção nas primeiras palavras de A sul. O sombreiro: “Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, é um filho da puta. O maior filho da puta que pisou esta miserável terra”. Frases fortes, que agarram leitores, mas em registros completamente diferentes. Isso para não falar dos jogos metaficcionais que costumam aparecer em algumas obras de Pepetela, com narradores metidos, comentadores, divertidos ou céticos, ou ainda sobre a economia de discursos que vai se verificando desde as suas obras mais utópicas até as mais desencantadas com a realidade. Digamos assim, um autor que passeia por jornadas heroicas, romances de geração, parábolas, sátiras de livros policiais, distopias, romances históricos — e o faz, em geral, muito bem — está produzindo uma literatura que vai além do testemunho histórico, da construção de uma imagem de nação. Está fazendo uma realização estética. E afirmar isso talvez seja fundamental, falar um pouco do outro lado de Pepetela. Sua importância na forma literária. Quem sabe ampliar ainda mais sua recepção no Brasil, a oferta de seus livros por aqui.
Aliás, tenho a impressão de que Pepetela é ainda um autor inquieto do ponto de vista estético. Ele diz “sou velho porque me doem as costas, de resto fico muito admirado quando me dizem que já sou velho (...) na minha cabeça ainda não sou”. E não há como se negar que a cabeça e as ideias do autor estão longe de pedir aposentadoria. Percebe-se isso, pegando-se, por exemplo, seus três últimos livros. Um romance histórico (A sul. O sombreiro); uma história de amor e política na qual ele pegou “uma história verdadeira e botou uns personagens fictícios” (O planalto e a estepe); e uma distopia (Quase fim do mundo). Nenhuma repetição de estrutura ou de tema. Arrisco dizer um pouco mais: pelo movimento que a sua literatura vem fazendo desde o começo deste século, o projeto de desenho ou escrita da identidade angolana, por mais que que tenha sido o que universalizou Pepetela, vai convivendo com novas ambições na sua produção. Vejam: foram oito livros lançados desde 2001. Três deles (e bastante recentes, O terrorista de Berkeley, California e Quase fim do mundo) deixam Angola de lado, inclusive, e tem um olhar, pode-se dizer, global. Seria possível, em certo sentido, até afirmar o que O terrorista, de algum modo antecipa questões como as espionagens do governo norte-americano e a NSA que tanto pano têm dado para a manga. E são obras de ficção muito mais afastadas da realidade angolana do autor. Os demais livros deste século 21 passeiam por Angola, sim, mas numa sátira detetivesca da sociedade que se formou, numa viagem ao século 17 e por aí adiante. Onde se passará o próximo livro de Pepetela? Já não aposto com tanta certeza na letra A, de Angola.
Mas é possível que sim também. Lembro de um causo: quando organizei a antologia Desacordo ortográfico, precisava enviar exemplares para os autores participantes. Pepetela era um deles. Na mesma mensagem em que ele me passou seu endereço em Luanda, me deu o seguinte recado: era para enviar só um livro de cada vez, senão desapareceriam. Nunca perguntei o que ou quem daria sumiço nos livros, fiquei imaginado descaminhos de correios e burocracias, destinos diferentes para pequenos envelopes e para grandes e apetitosos pacotes. Conto esse causo para requentar uma tese que já escrevi aqui mesmo no Pernambuco sobre a realidade fantástica da Angola de Ondjaki: é certo que a terra natal de Pepetela continua a oferecer um terreno incrível para observar e encontrar histórias. Livros que desaparecem se vierem em grande quantidade. É um país que ainda não chegou aos 40 anos. Como disse o supracitado Ondjaki sobre Luanda, “é uma cidade que se presta à ficção, Luanda é uma cidade com uma teatralidade”. Mas, mais do que isso, Pepetela declarou na entrevista ao Umas palavras que “no fundo, a ideia é sempre a mesma, a identidade angolana”. Lógico, isso o persegue. Escritores são feitos de obsessões. Porém isso não quer dizer que nós leitores, críticos, entrevistadores, devemos tomar como obsessão nossa a imagem cristalizada da identidade angolana em Pepetela refletida nos seus primeiros livros, mais calcada nas suas vivências mais notórias. Até porque, vamos combinar, a única identidade que não muda, é o documento plastificado que a gente traz na carteira. Amarela, mas segue o mesmo. De resto, individual ou coletiva, identidade não é um retrato. Está mais para um filme, constante movimento. Basta pensar sobre o Brasil: o que é a identidade brasileira além dos clichês? É possível definir? É possível estar em constante investigação. Como acredito que Pepetela esteja, observador que é. Por isso, para falar de identidade angolana com ele, quem sabe o mais interessante não seria perguntar qual será o seu próximo livro. Em vez de falar da obra passada. É no próximo livro de Pepetela que estará a Angola que ele vê hoje. Ou não.
E por que não, já que ele estará na Bienal de Pernambuco, e este texto fala dos lugares comuns sobre Pepetela, por que não dar umas ideias para loucos de plateia, mediadores, entrevistadores ao falarem com o autor. Quem sabe, falando sobre seu livro mais recente, A sul. O sombreiro, perguntar se ele percebe relações entre o verídico Battel, o marinheiro inglês que se embrenha rios d’Angola adentro, e O coração das trevas, de Conrad? Ou ainda perguntar se Pepetela assistiu a Django livre, do Tarantino. Não consigo ler sobre o Carlos Rocha, o negro-branco, o negro que usa botas, o negro que tem uma arma e não associar essa figura com a de Django. Taí, se não for uma boa pergunta, quem sabe uma sugestão de análise comparada? Ou para uma adaptação cinematográfica. E Jaime Bunda, esse agente secreto tão divertido criado por Pepetela, não podemos conversar com o autor sobre o nosso Ed Mort, do Veríssimo, e traçar paralelos, discutir a ironia e o tipo de humor que une esses dois personagens? Vamos mais um pouco: ele mesmo já disse que “Levantar questões, levantar os problemas é um papel da literatura”. Além de crer que, com isso, ele nos relembra que não dá para ficar só olhando o passado, pois as questões já não são mais as mesmas dos anos 1970 ou 1980, pode-se indagar que questões a literatura deve propor hoje. E de que forma? Elas estarão no próximo Pepetela?
REAL FICCIONALIZADO
Perguntas, perguntas, perguntas. Ou levantar questões, como diz Pepetela. Porque tenho certeza de que esta é uma questão relevante e que precisa ser levantada: por que não ver (e ler) Pepetela além do mito, além da formação nacional, além dos rótulos que lhe foram oferecidos. Não deixar que o personagem-autor fique maior do que os personagens-personagem, como, por exemplo, a figura de Miguel Cerveira Pereira, personagem real, mas ficionalizado com primor por Pepetela, que apresenta o sujeito violento, impiedoso e desonesto, mas ainda assim com uma graça e uma diversão na sua lógica própria de ver o mundo e seus feitos na administração de Angola e na conquista do reino de Banguela no século 17, que faz o leitor procurar a próxima fala dele. Ou, para falar de puríssima criação ficcional, o já mais que citado Jaime Bunda, tipo cômico, detetive que mora num quartinho, impagável com suas tiradas intelectuais, citando “o espanhol Kierkegaard” ou terminando uma frase cheia de sabedoria com “assim falou Zaratustra”.
Sim, Pepetela tem muito a dizer sobre Angola, sua história (nos anos 1960, em Argel, trabalhou com a ideia de escrever a primeira história de Angola feita por angolanos, pesquisou demais), suas lutas e contradições. Mas também tem muito a dizer da sua literatura, da sua ficção, da sua linguagem, da sua prosa. Não, não deixemos de conhecer a sua vida, de refletir sobre sua obra toda. Mas lembremos: sua obra toda. Fica o convite: vamos ler Pepetela hoje.