Thomas Mann se referiu certa vez a uma estirpe de autores literários que classificava como escritores-sismógrafos, aqueles capazes de intuir, a partir de sinais ainda incipientes na cultura, grandes abalos históricos e tendências a transformações radicais na sociedade que estariam ainda por se materializar. Algo talvez próximo a isso seja a concepção poundiana de artista como antena da raça e da arte como uma espécie de “sistema de alarme premonitório” que desvendaria, antes mesmo dos cientistas sociais ou dos políticos, os ovos da serpente— como no filme de Bergman — que estariam próximos da eclosão. Em ambos os casos, atribui-se um papel premonitório ao artista/escritor que, através de suas obras, captaria no tempo presente algumas disposições sociais ainda latentes, mas que poderiam chegar a ter relevância geral na transformação da vida coletiva e dos valores culturais.
Antes de fazer algumas considerações a respeito de A festa do Bode, obra de Mario Vargas Llosa que recebeu nova edição em português pela Editora Alfaguara, com tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, gostaria de propor a hipótese de que o autor peruano não se encaixa no perfil de escritor que mencionei no parágrafo anterior; parece-me que sua antena artística está quase que invariavelmente apontada para um passado recente, e nas repercussões críticasessenciais que esse passado histórico estabelece com seu próprio tempo – com o nosso tempo, portanto. A relação que sua literatura estabelece com o futuro não se dá como um presságio, mas na forma de uma advertênciabásica: “não repitamos — nós, os latino-americanos — nossos próprios erros históricos”.
Para o crítico Raymond L. Williams, Vargas Llosa é o criador não de uma Comédia humana, à maneira deHonoré de Balzac, mas do “drama permanente dos países da América Latina”. Um livro como A festa do Bode, que teve sua primeira edição em 2000, é um exemplo claro do que estou sugerindo. A partir do mundo real – da história recente de um regime ditatorial na América Central –, Vargas Llosa cria um universo de ficção sobre o qual faz recair, implacavelmente, esse elemento adicional no qual reside a essência do seu exercício narrativo: a crítica– seja cultural, política ou moral. Vejam-se, por exemplo, obras como Conversa na catedral(1969), A guerra do fim do mundo(1981) ou O sonho do celta (2010), entre outras, em que Vargas Llosa, utilizando a história como matéria viva, injeta o elemento ficcional misturado à sua visão crítica da política, das ideologias e da cultura. Para o peruano, “A literatura é fogo, isso significa inconformismo e rebelião, a razãode ser do escritor éo protesto, a contradição e acrítica”. O elemento fortemente político de sua literatura se averigua justamente nesse caráter crítico de seus romances em relação a todas as instituições e pessoas que abusam de suas prerrogativas, que se excedem no exercício do poder e se aproximam do autoritarismo.
A festa do Bode– parte fundamental de um coerente projeto literário e crítico que o autor peruano vem construindohá muitos anos –é um romance histórico que aborda a figura do ditador dominicano Rafael Leonidas Trujillo (1891-1961), conhecido como El chivo(o bode), apelido que ganhou devido a seu intenso apetite sexual, orientado, principalmente, a meninas muito jovens. O tirano exerceu o poder durante 31 anos na República Dominicana, de 1930 até 1961. Treinado na juventude junto aos marinesnorte-americanos, tomou o poder mediante um golpe de estado contra o presidente Horacio Vásquez, que era seu aliado e o havia nomeado a vários cargos políticos e militares importantes. Após assumir o comando do país, Trujillo, como acontece com a maioria dos autocratas, passou a alimentar estrategicamente o culto à sua própria personalidade, conferindo a si mesmo uma série interminável de títulos, honrarias e condecorações; passou também a reprimir duramente qualquer forma de oposição política e a suprimir a liberdade de imprensa e de opinião.
Exemplo perspícuo da máxima de que o poder absoluto corrompe absolutamente, o ditador, por fim, transformou todo o país em uma extensão de si mesmo e de suas vontades – a capital Santo Domingo, por exemplo, passou a se chamar Ciudad Trujillo. Para completar seu projeto de poder, apropriou-se de quase todas as indústriase instituiu o terror policial como forma de manter a ordem e a subserviência da sociedade. Chegou a instituir que o feriado do dia das mães fosse realizado na data de nascimento de Dona Altagracia Julia Molina, conhecida como “Excelsa Matrona”, sua mãe. No ano de 1937, ordenou talvez o ato mais terrível da história do país: o massacre de cerca de 150.000 haitianos de origem humilde que habitavam a região da fronteira, com a justificativa xenofóbica de que estava prevenindo a nação de elementos indesejados e de rebeldes.
A obra de Vargas Llosa mostra com detalhes todo esse clima paradoxal de exaltação e de medo em relação à figura dolíder supremo. Os principais fatos históricos da época estão presentes na narrativa, mas o que dá vida a todo esse painel são os, digamos, dramas humanosda história, a reconstrução ficcional das personalidades individuais. A realidade histórica do terror ditatorial ganha vida concreta nas contradições humanas tão autenticamente representadas em personagens como Urania ou Amadito; o horror da época é revivido pelo leitor através dos relatos de sofrimento desses homens e mulheres que Vargas Llosa nos apresenta de forma tão convincente.
O romanceé composto portrês focos narrativos básicos entrelaçados e paralelamente apresentados. No presente, Urania Cabral, filha do braço direito de Trujillo, o senador Cabral, regressa a Santo Domingo para prestar contas ao seu passado traumático e mostrar à família o que seu pai — considerado um homem íntegro e devotado à família — foi capaz de fazer para recuperar a simpatia e os favores do ditador. O segundo plano narrativo detalha o dia 30 de maio de 1961, desde a hora em que Trujillo se desperta até o momento do atentado que acaba no assassinato do velho Bode por um grupo de ex-aliados, inspirados por estas palavras de São Tomás de Aquino: “A eliminação da Besta é bem vista por Deus, se com ela se liberta um povo”. É na narração deste dia que o autor apresenta o funcionamento da alta cúpula do regime. No terceiro foco, vemos as perspectivas individuais e entendemos as motivações pessoais daqueles que viriam a se tornar os carrascos do ditador, os quais, em sua maioria, pertenciam ao círculo de assessores civis e militares mais próximos do líder.
Com uma obra como esta, Vargas Llosa atesta que a literatura — a boa literatura, ao menos — pode ser, em si mesma, um instrumento crítico, pois nos mostra a realidade de forma complexa, e vai muito além do que o maniqueísmo dos discursos políticos de uma determinada época e lugar deixa entrever. A ficção tem a capacidade de mostrar que a realidade humana, permeada de contradições,nãopode ser reduzida a discursos políticos ou ideológicos, fundamentados em oposições binárias. O autor, através do expediente ficcional, ainda que baseado nos fatos fundamentais da história, e tendo realizado uma ampla pesquisa documental e bibliográfica, conseguiu criticar de forma mais ampla não só a ditadura dominicana de Trujillo, mas qualquer pretensão política de alcançar o poder de forma total e arbitrária. Além dessa diatribe, A festa do Bodesugere a culpa fundamental do conjunto da sociedade para que se estabeleça um regime plenipotenciário como o dominicano: Vargas Llosa aponta a responsabilidade essencial de todos aqueles que, por ambição ou pusilanimidade, permitiram que tudo aquilo acontecesse.
Em geral, nas obras do escritor peruano, o indivíduo sempre ganha relevo como agente moral e como fator determinante na configuração da realidade, mas nunca como sujeito isolado — principalmente quando se trata do gênero romance, no qual o escritor, o narrador e o personagem aparecem, necessariamente, em embate com a alteridade, na vida em sociedade. Nenhum escritor, na opinião de Vargas Llosa, pode negar a dimensão política da vida humana em sua literatura; ainda que tenha desprezo pela política institucional ou pelas ideologias, aquele que inventa um mundo povoado de seres que se relacionam coletivamente estará tratando de questões direta ou indiretamente políticas e, portanto, as obras literárias terão que abordá-las. As grandes obras ficcionais devem sua complexidade justamente a uma representação da realidade que aceita a incompreensibilidade da totalidade das coisas, do caráter contraditório dos desejos humanos e das visões de mundo individuais. A ficção, assim entendida, é um manifesto contra as tentativas totalizantes de explicação ideológica da realidade, pois assumir uma ideologia é aceitar um mundo teleologicamente organizado, totalmente compreensível e eticamente coerente.
A literatura, diz-nos Vargas Llosa, não é um simples espelho dessa realidade em que estamos inseridos, mas uma ilusão criada, a partir do real, através da fantasia e da palavra, para que vivenciemos uma espécie de “realidade paralela”. Este poder subversivo da ficção muitas vezes precisou ser combatido pelo poder constituído e pelas ideologias políticas. Talvez seja possível afirmar que, em Vargas Llosa, literatura e ideologia são fenômenos radicalmente opostos. A ficção literária aceita de antemão sua natureza ilusória e limitada; as ideologias, por outro lado, tentam se impor como versão final da história, o caminho necessário da humanidade.
Os livros de ficção aplacam transitoriamente a insatisfação humana e também a atiçam, esporeando os desejos e a imaginação. É compreensível, então, que os regimes que aspiram a controlar totalmente a vida desconfiem das obras de ficção, e que as submetam a censuras. Para o escritor, “a literatura não deve ser política, ou melhor, não deve ser somente política, ainda que seja impossível para uma boa literatura não ser também — e destaco o ‘também’ — política”.
A natureza ficcional da literatura vai se configurar sempre como um manifesto contra o que já existe, e neste ponto estaria a sua importância e pertinência social. As obras literáriasestãocheias dos elementos da vida cotidiana, ainda que sejam uma eterna insubmissão a ela. A festa do Bode, portanto, é um exemplo eminente de como ficção pode ainda ter relevância social e pode, segundo o autor, por si só, ser “uma acusação terrível contra a existência sob qualquer regime ou ideologia: um testemunho ardoroso de suas insuficiências, de sua incapacidade de nos preencher. E, portanto, um corrosivo permanente de todos os poderes que desejaram ter os homens satisfeitos e em total conformidade”.