Um dos capítulos mais instigantes das Confissões, de santo Agostinho (354-430), é, para mim, o que se intitula O encontro de Deus, particularmente os tópicos que falam sobre a “tríplice tentação”: das concupiscências da carne e dos olhos (o desejo libidinoso e os “movimentos lascivos” que o atormentavam durante o sono), e da “ambição do mundo” (as tentações do “louvor”, da “vanglória” e do “amor-próprio”). Neste capítulo, o teólogo expõe as suas “feridas” e pede a Deus que tenha compaixão pelas enfermidades da sua alma; afinal, “não é a vida humana sobre a terra uma tentação contínua?”.


Mas além dessa “tríplice tentação”, Agostinho declina sobre aquelas tentações que envolvem os sentidos: a “gula”, a “sedução do perfume”, a “sedução dos olhos” e o “prazer do ouvido”. Porém, é nestes dois últimos tópicos que Agostinho se volta para os gêneros artísticos. Aqui, o Bispo de Hipona reafirma o que já dissera em outros textos: o alimento da arte é a mentira. Neoplatônico, Agostinho cultivava uma séria desconfiança em relação à arte e àqueles que a produziam; em particular, os poetas, que não se furtavam, com as suas allegoria in verbis (também conhecida como a alegoria dos poetas), em faltar com a “verdade” e propagar falsidades. Em A cidade de Deus, Agostinho denomina os poetas de criadores de “fábulas mentirosas”, “falsas”, “torpes” e “indignas”. Ainda nesta obra ele se volta contra os poetas, os dramaturgos e os atores. Discorrendo sobre os dois conceitos de teologia correntes em seu tempo — o dos filósofos gregos e o dos teólogos da Igreja —, ele evoca Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.). Este classificava a teologia em três gêneros: o mítico (“fabuloso”), cultivado pelos poetas; o físico (“natural”), exercido pelos filósofos; e o civil (“político”), matéria dos sacerdotes e moradores das urbes. Para Agostinho, as teologias mítica e civil comungavam dos mesmos princípios. Ambas se voltavam para os deuses pagãos e, como tais, não podiam oferecer ao cristão “a vida eterna”, a vida “em que a felicidade não tem fim”. Afirma ainda que a teologia mítica “semeia as torpezas dos deuses com ficções, (a civil) colhe-as com aplauso. Aquela espalha mentiras, esta recolhe-as.” Em A doutrina cristã, Agostinho assinala que, “certamente, há no homem mentiroso a intenção deliberada de dizer falsidades”. Logo, “todo mentiroso atenta contra a fé, porque quer obtê-la daquele a quem engana — no momento mesmo em que está a violá-la. Todo violador da fé é injusto”.


Se a teologia física é própria ao mundo (criação de Deus), a mítica e a civil são próprias ao teatro e às cidades (invenções humanas). “A teologia fabulosa, teatral, cênica, pejada de indignidades e torpezas, reduz-se à teologia civil. E esta, que se julga, e com razão, merecedora de censura e desprezo, é parte da outra, considerada merecedora de culto e prática”, afirma. Em suma, a teologia mítica é uma “imundícia da teologia fabulosa”. Com ela, os poetas, teólogos e os sacerdotes pagãos que a acatam.


Assim, quando trata da “sedução dos olhos” nas suas Confissões, Agostinho acusa os artistas de criarem obras que seduzem exteriormente a vista dos homens em detrimento da sua interioridade. No caso, “Aquele que os criou e destroem o que por meio d’Ele fizeram”. Em tom de profunda reprovação, ele afirma que “os artistas e amadores destas belezas externas tiram desta suma Beleza apenas o critério para as apreciarem. Só não aprendem a regra para as usar bem! Contudo, esta também lá está. Porém, não a veem, porque do contrário não iriam tão longe, mas reservariam para Vós toda a sua força, e não a dissipariam em fatigantes delícias”. Em resumo, a arte pagã é uma fôrma sem alma, pois a verdadeira arte é aquela que se reconhece como criação de Deus, que não busca como único propósito a sedução dos olhos, mas se deixa possuir “por aquele Deus que criou estas coisas tão belas”. No caso, “a beleza e a variedade das formas, o brilho e a amenidade das cores”.


É perseguindo este raciocínio (a defesa de uma arte que oblitere o seu caráter de diversão e que encerre a palavra divina como o seu único alimento) que Agostinho aborda “o prazer do ouvido”; particularmente, a música, gênero que “com mais tenacidade” o prende e o subjuga, apesar de Deus o ter libertado desta tentação. Mas como “a vida humana sobre a terra (é) uma tentação contínua”, confessa que continua a encontrar “algum descanso nos cânticos que as Vossas palavras vivificam, quando são entoadas com suavidade e arte”. Mesmo não se sentindo preso à música, quando a escuta sente dificuldades em abandoná-la. Assim, o único meio que encontrou de preservar a sua interioridade espiritual foi se voltando para as composições em que a palavra de Deus vive, pois “Quando ouço cantar essas Vossas santas palavras com mais piedade e ardor, sinto que o meu espírito também vibra com devoção mais religiosa e ardente do que se fossem cantadas de outro modo”.


Mas, mesmo fazendo concessão aos cânticos, Agostinho defende que entre a melodia e os versos de louvor, os compositores devem dar ênfase aos versos. Assim, tomando o exemplo de Santo Atanásio, defende que o leitor dos Salmos deve recitá-los com tão diminuta inflexão de voz que mais pareça um leitor do que um cantor. Ou seja, a melodia deve se submeter às palavras, como se fosse uma espécie de mantra, elevando o espírito em direção a Deus, pois quando a palavra rivaliza com a música o espírito se perde no prazer da melodia e não frui o Verbo de Deus. Porém, sem querer “proferir uma sentença irrevogável”, ele afirma que se vê inclinado “a aprovar o costume de cantar na igreja, para que, pelos deleites do ouvido, o espírito, demasiado fraco, se eleve até aos afetos de piedade”. Mas quando a música termina por lhe sensibilizar mais do que as letras que se cantam, admite, com dor, que caiu em pecado. “Neste caso preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro”, confessa.


Estas torturantes reflexões poderiam ser mais uma entre tantas outras de um cristão dos séculos 4 e 5 (vivendo entre dois mundos: o pagão e o cristão) se elas não tivessem como autor Santo Agostinho, um dos mais influentes teólogos da Igreja. Afinal, escrevera quase 100 livros, cerca de 300 cartas e dos oito mil sermões que proferiu, mais de 400 chegaram até nós. Pode-se mesmo dizer que o cristianismo só abandonou a sua condição de seita judaica depois que ele lhe calçou com um sistema teológico e filosófico que tinha como princípio o método tipológico entre o Velho e o Novo Testamento; método onde um Testamento prefigura o outro, sendo o Velho a “figura” da qual o Novo é o “espírito”. A importância da sua obra sobre a Igreja só seria ameaçada no século 13 com Tomás de Aquino, que tentará harmonizar, não raras vezes de maneira infeliz, o pensamento platônico e o aristotélico. Desse modo, sendo o mais importante pensador do cristianismo ao longo de sete séculos, a defesa de Agostinho de que, na música, a oração deve sobressair mais do que a melodia contribuiu, certamente, para que um século depois da sua morte, em 430, o papa Gregório Magno oficializasse determinados cantos da tradição judaica como o gênero musical a ser adotado e cantado nas celebrações da Igreja. Estes cantos, denominados de cantos gregorianos, se caracterizam por ser uma música de uma só melodia (monódica), de conceito modal, de ritmo livre e não medido. Baseado na acentuação e nas divisões do fraseado, o canto gregoriano tem um vocal monofônico que pode ou não ser acompanhado pela repetição de uma voz principal com o organum (a chamada segunda voz), que segue o cantochão ou canto plano. Sendo assim, esta segunda voz, também chamada de voz acompanhante, harmoniza a melodia tanto no seu início quanto no seu término. Ao longo do seu desenvolvimento, as notas vão pouco a pouco se separando até atingirem intervalos de quarta, quinta e oitava paralelas. A partir daí, o canto segue lado a lado na mesma direção até as vozes se aproximarem no final do cantochão e chegarem ao término da música juntas.


Das sete disciplinas que, na Idade Média, compunham as artes liberais a música ocupava, na hierarquia, o quinto lugar. Observe-se que a arte era, na Idade Média, uma forma de conhecimento que se aprendia por meios de regras. Assim, arte não era um conceito restrito à “obra artística”, como a entendemos hoje, mas também uma habilidade ou conhecimento técnico adquiridos pelo estudo ou pela prática. A música, no caso, como uma arte reduzida a regras, era constituída pelas artes do canto e da poética. Porém, resta uma pergunta: por que só a música integrava as artes liberais? Tenho duas hipóteses. Primeira: a música, por sua estrutura precisa, era, e é, frequentemente comparada com a matemática (matéria da aritmética, da geometria e da astronomia). Segunda: a música é o único gênero artístico que prescinde de um referente. Ou seja, a música refere-se a si própria. Como estudioso dos signos, Agostinho buscava conhecer as coisas (de rebus) e os sinais (de signis); ou seja, para ele só se conhece as coisas por meio dos sinais. No entanto, em De Magistro ele defende que apesar da palavra (Verbo) ser um sinal que significa coisas, há coisas que nada significam e coisas que significam outros sinais. Ele também defende em A doutrina cristã que existem determinados signos, a exemplo das palavras, que são criados e empregados unicamente para significar algo. Sendo assim, tanto em um caso (coisas que são signos) como no outro (signos que existem para significar algo, denotar), o termo signo é empregado “(...) para significar alguma coisa além de si mesmo”. Ora, a música, em um caminho inverso a esta tese, não significa nada além de si mesma, pois ela é um significante (som, nota musical) sem significado. Logo, ela não seria um signo? E não sendo um signo, a música não seria uma linguagem, mas um fenômeno além ou aquém da linguagem? Como lhe dar um significado? A resposta dada por Agostinho passava por dar ao significante um significado e, por extensão, transformá-lo em signo. No caso, submetendo a música à palavra (o Verbo). Assim, a música deixaria de seduzir pelos seus aspectos externos (melodia, ritmo e harmonia) e sedimentaria a sua alma na palavra que louva a Deus. Ao submeter o canto aos salmos e versículos, a música excluiria da sua alma (o referente) as “fábulas mentirosas”, “falsas”, “torpes” e “indignas”.


Se durante séculos a tese agostiniana foi vitoriosa, a polifonia, que começou a ser praticada por volta do século 10, terminou por submeter cada vez mais a palavra à melodia e, por extensão, foi minando o canto gregoriano como a forma cristã por excelência. No entanto, a ideia de que, em uma composição, a palavra é mais importante do que a música tem reflexos até os dias que correm. Afinal, mutatis mutandis, o rapper não é uma música que calça o seu referente em palavras em detrimento da própria melodia em si?