Existe algo de específico na crítica literária feita por escritores? Alguma coisa que só autores de ficção são capazes de apreender, quando escrevem sobre literatura? São perguntas que me faço quando leio resenhas, artigos, aulas e conferências de Milan Kundera e J. M. Coetzee, Italo Calvino e Cesar Aira, Thomas Mann e Vladimir Nabokov, Elias Canetti e Jorge Luis Borges. Esse tipo de crítica exerce sobre mim um fascínio especial. E, a julgar pelas sucessivas edições de coletâneas e ensaios de escritores, devem interessar a muito mais gente. Por quê, afinal?

 

Se houver algum tipo de predicado intrínseco ao ensaísmo de autor, é pouco provável que esse atributo seja condição suficiente para lhe assegurar um lugar especial em relação às demais variedades de crítica. As fronteiras são muito tênues, porosas, e o que está do outro lado sequer se configura como unidade – a “crítica de não autor”. Os textos ensaísticos de um ficcionista também são marcados por idiossincrasias e parcialidades: podem ser bons ou maus, elogiosos ou frios, preguiçosos ou afiados. Não adquirem um estatuto diferenciado apenas pelo fato de terem sido escritos por romancistas, contistas ou poetas.

 

O que parece ser o aspecto diferencial na crítica de autor, sua especificidade, é a coexistência, em uma mesma obra, de projetos autorais simultâneos, um crítico e outro ficcional, que podem ser paralelos (Mann), articulados em alguma medida (Nabokov, Canetti, Calvino), ou mesmo indissociáveis (o caso de W. G. Sebald, cujo Guerra aérea e literatura, por exemplo, pode ser lido como uma espécie de braço armado de sua ficção). Na confluência dessas linhas aparentemente contraditórias reside a singularidade da crítica de autor – ao menos de uma certa crítica de autor, produzida pelo seleto grupo capaz de atuar simultaneamente, e com brilho, nessas duas frentes.

 

No ensaio A cortina, Milan Kundera compara o romancista que escreve sobre sua arte com o pintor que recebe alguém em seu ateliê: “ele falará de si mesmo, mas ainda mais dos outros, dos romances que ama e que estão secretamente presentes na sua própria obra”. O autor-crítico é alguém que sabe e deseja se posicionar publicamente em relação às próprias escolhas, explicitando procedimentos de leitura que atuam na contramão dos trabalhos de monumentalização das tradições literárias. Sua visada anticanônica demanda uma reescrita da história da literatura, com base no critério do valor de uso das obras particulares, esparramadas sincronicamente, apropriadas em função de uma “poética do romance, que não pertence senão a ele”, o autor-crítico, “e naturalmente, portanto, se opõe à poética de outros escritores”.

 

Mas trata-se de uma história literária muito peculiar, executada por um anti-historiador, para quem o tempo não é um fluxo contínuo, e sim massa de modelar. Uma história literária baseada no anacronismo. O leitor-visitante do ateliê do romancista é convidado a visualizar, como que de dentro, o making of de uma voz, lá no “porão da história”, onde, ainda nas palavras de Kundera, “o futuro do romance está se decidindo, se transformando, se fazendo, em lutas, em conflitos, em confrontos”. Faroleiro de si mesmo, hermeneuta dos seus próprios projetos estéticos, o autor-crítico é um fagocitador voraz de leituras, responsável pela pilhagem dos mausoléus das tradições letradas.

 

Leitor especialmente bem-talhado nas jornadas particulares da Bildung – a formação no cânone e contra o cânone –, o autor-crítico, como percebeu a ensaísta Leila Perrone-Moisés em seu ótimo Altas literaturas, demonstra plena consciência da radicalidade intrínseca ao desafio fundador da modernidade: a autocertificação. Mas o autor-crítico é alguém que não se contenta com a instituição dos próprios critérios de ajuizamento: ele quer, sobretudo, compreender suas alternativas e situá-las no horizonte das escolhas realizadas por outros ficcionistas. Quer se certificar da própria autocertificação. Para tanto, o autor-crítico explora os projetos autorais de outros escritores – compreendidos, ou designados, como produtos de escolhas coerentes, estéticas intencionais. Nesse caso, a ideia de projeto é ela mesma uma ficção, mais uma dentre suas ficções.

 

O desejo de autognose, de um conhecimento que parta de si e atue para si, solicita uma reconstrução do cânone literário estilhaçado. Mas este, na obra do autor-crítico, adquire contornos instáveis, porque destituído de pretensões universalistas e voltado para seu processo de formação e dissolução no interior de uma poética particular. O cânone é subjetivo, mas ainda assim, ou talvez exatamente por isso, é carregado de autoridade.

 

Isso significa que a crítica de autor é puramente instrumental? Que ela se apresenta como um mero tubo de ensaio do ficcionista? Que por não se despir totalmente da persona de criador, o autor-crítico terá sempre um olhar monológico, pouco generoso com tudo que não diz respeito ao seu gosto? Se for assim, por que essa crítica haveria de interessar a mais alguém, além do autor que a elabora, ou outros escritores preocupados com as técnicas e filigranas de um saber-fazer?

 

O foco do autor-crítico no seu projeto estético não deve ser confundido com uma egotrip hermética. Como teórico da práxis, ele é obrigado, em sua viagem ao redor do próprio umbigo, a se afastar de si mesmo, na tentativa de dar conta do que mais lhe interessa nas obras alheias: os procedimentos que conferem algo de único, de singular, de inovador, a certos escritos. Ou, o que é o outro lado dessa moeda, o exame de fracassos, desacertos e limitações. Os textos críticos de J. M. Coetzee apresentam pouco mais que lampejos de sua voz como ficcionista. Mas ela está lá, atenta ao que importa, produzindo atritos. Se o ensaísmo de autor possui uma evidente dimensão instrumental, ele é também uma espécie de lição de anatomia cujas condições de possibilidade são o saber-fazer (alguma coisa que eles, os autores-críticos, compartilham), e a longa experiência na dissecação minuciosa de um objeto – a própria literatura.

 

“Só os escritores”, escreve Roberto Calasso em A literatura e os deuses, “estão em condições de abrir-nos os seus laboratórios secretos. Guias caprichosos e evasivos, são, no entanto, os únicos a conhecer passo a passo o terreno”. É evidente a afeição de Calasso, ele mesmo um autor-crítico, a uma espécie de conhecimento secreto partilhado por poucos, a formas de sensibilidade vedadas aos meros mortais: “Quando lemos os ensaios de Baudelaire ou de Proust, de Hofmannsthal ou de Benn, de Valéry ou de Auden, de Brodski ou de Mandel’stam, de Marina Cvetaeva ou de Karl Krauss, de Yeats ou de Montale, de Borges ou de Nabokov, de Manganelli ou de Calvino, de Canetti ou de Kundera, percebemos logo – ainda que um possa detestar o outro, ou ignorá-lo ou opor-se a ele – que todos falam do mesmo objeto.”

 

No ensaísmo de ficcionistas, palavras como literatura, autor e obra possuem concretudes muito tangíveis. Reconhecidas e compartilhadas por um grupo heterogêneo e acéfalo – precariamente reunido em torno de um saber-fazer e de um interesse comum –, essas categorias conferem ao escritor o sentido de pertencimento a uma comunidade, além de possibilitarem uma philia, uma amizade, tanto pela coisa em si, a literatura, como pelos que a cultivam, os leitores (sem os quais essa comunidade é impensável), no que talvez seja o último vislumbre da noção romântica e humanista de Weltliteratur, literatura mundial, como pensada por Goethe e retomada, quando já era impossível revivê-la, por Auerbach. Para além das fronteiras nacionais e das amarras teóricas, o ensaísmo de autor é um dos últimos espaços em que ainda é possível amar a literatura sem a preocupação, ou o êxtase, com seu desaparecimento.

 

Felipe Charbel é professor adjunto de Teoria da história na UFRJ