Por Janio Santos

 

Bem-vindo ao lead, o exuberante pedaço de um texto jornalístico em que apresentamos a que ele veio. Teóricos fundamentalistas da arte da informação diriam que neste espaço deveríamos responder a questões fundamentais – o quê, quem, onde, como, quando e por quê – para capturar a atenção do leitor médio e deixar que decida se quer prosseguir, ou não, com desdobramentos. Um exemplar seminal de resumo.

 

Em terra de escrevinhanças completas, resumos são personagens fundamentais para os que se queixam de uma surrada era da não leitura, em geral atribuída ao preço dos livros, ao sucateamento de bibliotecas públicas, aos socos e pontapés da cultura de massa e, enfim, à ascensão de um mercado fast reading, composto pelo jornalismo online e seus primos bastardos – blogs, microblogs e, pior ainda, as calhordas redes sociais –, uma homenagem gorda à leitura descompromissada.

 

Certos números apontam outra tendência. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope para o Instituto Pró-Leitura, braço do Ministério da Educação, registrou 95 milhões de leitores no País, há três anos, montante mais gracioso que os 26 milhões contabilizados no ano 2000. Enquanto, antes, brasileiros liam em média 1,8 livro anual, as páginas saltitaram para 3,7 livros lidos per capita. Mas, diz o relatório, de cada 4,7 livros lidos por um brasileiro no ano, 3,4 são indicados pela escola. E aí brota a lista de exigências literárias cumpridas com jeitinho especial.

 

DISPUTAS DE MERCADO
A profusão de resumos de obras de literatura brasileira na internet indica que as listas escolares, bombardeadas pelos programas de vestibular, fundaram um nicho de consumo literário instantâneo. “Os alunos sempre pedem resumos. É um consenso de que eles devem ler os livros, mas isto não é possível. Ou melhor, não acontece”, pondera Jorge Alves, professor de literatura e sócio de um dos colégios mais vestibuleiros do Recife. O professor aponta, na prática, o que conceitua exímia peça de resumo multimídia que encontramos vacilando na Google: um arquivo de PowerPoint universitário para o qual, no contexto neoliberal, o resumo literário seria fruto da instrumentalização da literatura, coadunada à lógica capitalista. Em outras palavras, resumos são peças de alto valor porque, como diz Alves, “o colégio e o curso são empresas, e existe uma questão mercadológica para se atender. Disputa-se aluno a tapa, em meio a rankings muitas vezes imprecisos”.

 

Na opinião do professor, o acesso a obras completas é prejudicado ainda pela infusão geométrica de títulos nas listas de indicação, somada ao costume comum de tomar a leitura como obrigação curricular. “Existe uma dissintonia entre as universidades. Em Pernambuco, por exemplo, as universidades federais e estadual exigem a leitura de livros diferentes. No 3º ano do ensino médio, os alunos chegam a ter 16 livros para ler, o que é impraticável”. O modelo de vestibular seriado, realizado ao longo dos últimos três anos escolares e oferecido em instituições como a Universidade de Pernambuco (UPE), seria alternativa para desafogar o sacrifício literário.

 

MELHOR QUE A ENCOMENDA
Passei Web, Mundo Vestibular, Curso do Fulano e outros jargões de marketing feroz tentam capturar vestibulandos em incontáveis sites por onde resumos transbordam. Machado de Assis, Jorge Amado, José de Alencar e Graciliano Ramos são cânones recorrentes nas relações, que incluem um ou outro estrangeiro.

 

Vários textos circulam anônimos, mas às vezes são assinados por professores de literatura e comumente são excertos compostos de trabalhos acadêmicos. Nos portais mais arrojados, mestres dissertam sobre as obras em vídeos-drops. Páginas rabugentas de anúncios online, por sua vez, oferecem coletâneas de obras resumidas – para todos os vestibulares do Brasil, garantem – a R$ 20, em meio a ofertas de CD-ROM de idiomas e cópias de livros didáticos. Enviamos um e-mail, e o serviço funciona.

 

O variado menu poupa o trabalho de docentes como Jorge Alves, que lembra ter trocado empenho de síntese por “sofisticadíssimos” resumos de Vestido de noiva ou de O santo e a porca, “que não têm a superficialidade de um resumo para ensino médio e nem tantos academicismos”. Por outro, descredita os próprios originais, vistos como blá-blá-blá diletantista perto de um resumo eficaz. “Um olhar atento sobre as provas mostra que elas dão um recado implícito aos alunos: recorram aos resumos”, polemizou, certa vez, o professor João Amálio Ribas, sobre os processos de seleção paranaenses junto ao portal Vida Universitária.

 

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da instituição, Maria Zélia Versiani rechaça a supervalorização do resumo entre os mais pragmáticos, e prefere percebê-los como treinamento didático e convite à leitura aprofundada. Num momento em que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que não prescreve títulos de literatura, tem sido adotado progressivamente como prova de ingresso nas universidades, a pesquisadora prevê horizonte de leituras menos instrumentalizadas.

 

“Se por um lado preocupa o fato de o exame não indicar obras literárias, por outro, e com boa dose de otimismo, podemos vislumbrar experiências de leitura mais significativas, sem a pressão do vestibular, e que, portanto, não sejam substituídas por resumos”, sugere.

 

COMO FAZER UM BOM RESUMO
Maria Auxiliadora Carvalho é professora de biblioteconomia na Universidade Federal de Pernambuco e já lecionou em ementas para resumidores cientistas, mas o passo a passo falha quando aterrissa na literatura. A professora, que acha mais difícil resumir filmes que livros, diz que “resumo de ficção é algo até questionável. É muito difícil alguém dizer, através de um resumo, o que é um livro, se não do que se trata”.

 

Ronaldo Correia de Brito, que teve seu Livro dos homens resumido para o vestibular da Universidade Federal de Goiás (UFG), é assertivo – “resumos não são bons”, ainda que cumpram seu papel com alguma generosidade em certos casos mais narrativos, avalia. “Não acredito que Guimarães Rosa pudesse fazer um bom resumo da obra de Guimarães Rosa. No caso dele, o deleite é a linguagem, e não acho que qualquer resumo teria sucesso”.

 

A notícia de inclusão de Os rios turvos na lista de indicações para o exame da UPE chegou contente para Luzilá Gonçalves. “Mas logo me contaram que, diante de um aluno que queria lê-la, uma professora aconselhou: ‘Não compre. Eu faço o resumo para vocês’”. Aos poucos, a autora foi conhecendo o produto das sínteses. “Foi um desastre. Interpretaram, concluíram, disseram coisas que não falei.” Maria Auxiliadora nos auxiliou com sugestões metodológicas para o bom resumidor, se não com modestos conselhos. Primeiro, pensou consigo, é bom dispensar Frederick Wilfrid Lancaster, estrela bibliográfica da ciência da informação. “São muitas normas, mas para a literatura é mais difícil”. Coerência, coesão e consistência, assim como em textos científicos, são requisitos razoáveis. A contextualização histórica é imprescindível, citações são fundamentais e frases atraentes para apaixonar secundaristas, desejáveis.

 

Cartilha suficiente para sintetizadores seria Como fazer um resumo, da filóloga portuguesa Maria Almira Soares: resumir bem seria “atingir o equilíbrio entre o mínimo de palavras e o máximo da informação relevante”, escreve a autora. Entre as artimanhas do menos é mais, o linguista holandês Teun Adrianus van Dijk já teria sistematizado métodos de encolhimento: apagamento, quando se jogam fora ornamentos de estilo ou narração; generalização, quando se dispensam detalhes a partir de critério semântico; e construção, quando uma sucessão de eventos se resolve em um, simplesmente.

 

Tal lapidação, digna de parnasianismo cartesiano, seria obra de autor, observa Anco Márcio Vieira, professor de Literatura e Teoria Literária na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mas, mais uma vez, feita à imagem e dessemelhança do original. O caso do tradutor, exemplo típico de disputas por assinatura literária, seria mais nobre. “Um bom tradutor é aquele que deixa marcas. Muitas vezes, a solução que ele dá sai melhor do que o original. Já o resumo parte do princípio de que você tem um leitor que não tem nenhum interesse em ter a experiência estética da leitura, mas apenas saber do ‘assunto do livro’”.

 

HOMENAGEM À NÃO LEITURA
Talvez até haja algo irresumível. “Mas acho que todo escritor é interpretável”, relativiza Ronaldo Correia de Brito. Alguns resultados, no entanto, seriam dignos de fruição mais cuidadosa que a média das sínteses. “Algumas adaptações literárias tornaram-se obras de muita qualidade. A Ilíada e a Odisseia de Gustav Schwab transforma os epítetos, os versos alexandrinos, as inversões, numa leitura extremamente agradável. As mil e uma noites, de Antoine Galland, são talvez as mais clássicas”.

 

Como todo resumo meticuloso tem fartas citações, lembramos o caso radical de adaptação fictícia, esmiuçado no conto Pierre Menard, autor do Quixote, de Jorge Luís Borges. O narrador traça defesa indefectível do colega Menard, que teria penado para reescrever a obra de Miguel de Cervantes, 300 anos depois. Reescrevê-la, ipsis litteris, palavra por palavra, o que se tornou um imbróglio metafísico para o empreiteiro. “Ser, no século 20, um romancista popular do século 17 pareceu-lhe uma diminuição”, escreve Borges, “menos árduo que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote mediante às experiências de Pierre Menard”. O autor, por um lado, vinha sugerir que um texto literário somente o é em determinadas circunstâncias de tempo e espaço, relativizando méritos de autoria inclusive para a cópia – não estariam sendo, os resumidores, diminuídos? Por outro, como sugere Anco Márcio, ele viria propor o exato oposto da verve denotativa do resumo. “O conto é a metáfora da experiência com a obra. Como toda experiência, ela é individual, única e histórica”.

 

Tanto é pessoal que Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura francesa, nuançou ainda mais o flerte entre obras e seus consumidores. A despeito de uma hierarquização entre bons leitores – de livros – e maus leitores, afeitos a enunciados fragmentados, apressados ou abjetos, Bayard tentou esboçar atrevida teoria da leitura, dissecando modos de ler e de, que bom, não ler.

 

Em sua obra Como falar dos livros que não lemos?, o professor pareia casos em que obras lidas da primeira à última página são facilmente esquecidas, enquanto outras que nem ao menos folheamos – sejam shakespearianas, bíblicas ou adjacentes diversas – são capazes de volta e meia ressoar em nossas vidas, tal como se as conhecêssemos de cor. Tais questões – o que é ler?, o que é ter lido? – dariam, enfim, humilde crédito aos imodestos resumos. Ou, como escreve Bayard, “é até desejável, para falar com precisão de um livro, não tê-lo lido inteiro, eventualmente sequer tê-lo aberto”.

 

Luís Fernando Moura é jornalista