1. Entre uma linha e uma palavra, o espiral. Um pouco mais aqui, um pouco mais acolá, sempre eterno recomeço, reversão em torno de um centro que atrairá essa dança ao seu próprio movimento. Centro fixo que caminha, que se repete e se difere - mais central, mais esquivo, mais imperioso. As palavras, os números, as formas geométricas são, antes de mais, linhas riscadas, desenhos, que se juntam ao redor do mesmo limite, do mesmo desejo, da mesma ignorância. Da mesma impossibilidade de decisão. Nesse circundar, além da ilusão de ter atingido o centro por caminhos que serpenteiam, espera e esquecimento. Sucede que, no espaço literário, os acontecimentos são centrais, chamam à indecibilidade: aquilo que pode ser vivido ou é espera - nada acontecerá - ou é esquecimento - isto nunca aconteceu -, sem pressuposição ou dependência entre os pares, ou dos pares a nenhum espaço que seja exterior ou interior - ao sujeito, ou a um tempo. Nada aconteceu, tudo é expectativa, ainda estar por vir. Emaranhado sem começos, sem presente, sem uma primeira vez. Um livro, mesmo fragmentário, possui um centro que o atrai. O centro é fora, um espaço sem lugar.

 

2. Lógica do sentido. Um devir Alice do pensamento que nos permitiria admitir que um homem muito pequeno aos saltos é um homem igual às outras pessoas - só que por menos tempo. Eis a série O bairro, de Gonçalo M. Tavares, aberta com pulos de certo senhor Valéry que desenhou seu sonho logicamente impossível: suspender os efeitos da gravidade e abandonar-se no ar. Sucede também que real e impossível não são termos antitéticos no espaço literário. A irrealidade da ficção é capaz de construir uma experiência real. E, de fato, essas experiências não são decalques biográficos. São como homenagens, diz Gonçalo. Escritores emprestam seus nomes às ruas. Quem espera que elas se pareçam com os donos de seus nomes? Paul Valéry em O senhor Valéry e a lógica; Emanuel Swedenborg em O senhor Swedenborg e as investigações geométricas; e o mesmo com os desenhos tênues de Bertolt Brecht, Roberto Juarroz, Ítalo Calvino, Karl Krauss, Robert Walser, André Breton. O bairro é uma poética geográfica em aberto e a disposição de seus personagens responde à fotografia deste momento. Um sítio para onde algumas pessoas mudam, de onde outras saem. Hoje, no mesmo prédio vivem o senhor Rimbaud, o senhor Balzac e o senhor Carroll. Em outra casa, moram o senhor Musil, o senhor Foucault, o senhor Wittgenstein, o senhor Beckett e o senhor Orwell. Lá longe, um ponto no meio da neve, está o senhor Walser.

 

3. Nada aconteceu? Não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal num estado de coisas. Ao invés de reversão, falar de balbucio, de rumor - quando as palavras se encaminham bem, quando o contorno do centro-sentido é harmonioso, quando o barulho evapora – ou, ainda, falar de síntese disjuntiva do acontecimento. Trata-se de uma posse inaugural. Ter o mundo antes que ele o seja, ter o mundo depois que ele não o é mais: a teimosia que resta quando tudo desaparece e o estupor do que aparece quando não há nada. E por que perguntar sobre o sentido do acontecimento? O acontecimento é o próprio sentido. De certo que o acontecimento pertence à linguagem, mas a linguagem é o que se diz das coisas (ou que não se diz delas). Há, nesse ponto, uma escolha ou um destino. Para uns, a ventura de pensar que a própria vida se parece frágil demais para si mesmo, a escapar em um ponto presente numa relação determinável consigo; para outros, a ad-ventura de pensar com saúde, tomando-se fraco demais para uma vida demasiado grande, a lançar suas singularidades por todas as partes, sem qualquer relação consigo nem com um momento presente. Apenas o instante impessoal que se desdobra em ainda-futuro e já-passado. Algo como o deserto, a impossibilidade, o neutro ou a outra noite, aqui ditos com acentos estoicos. Existe no primeiro caso, o momento presente da efetuação, de encarnação - pronto, chegou a hora - quando tudo é tomado enquanto um antes e depois daquele momento -, limitado pelo ponto de vista daquele que o encarna. Mas, no último caso, acena algo menos covarde, o acontecimento, em seu futuro e em seu passado, tomado em si mesmo, esquivando-se de todo presente, distante das limitações de um estado de coisas. Tudo é impessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem particular. E nada adiantaria tratar um cavalo-leitor de tração como um cavalo-leitor de corrida, ou o inverso. Nada disso é literário.

 

4. Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte. O que do mundo deixa se envolver pela linguagem? Deveríamos separar em estábulos a linguagem e o acontecimento de um lado, e o mundo e seus estados de coisas do outro? Na verdade, estamos diante de duas formas de tomar a linguagem e o mundo. De um lado, aquela pretendida pela lógica clássica, fazendo deslizar, sobre um mundo-referência, a adequação formal de uma proposição-linguagem. Do outro lado, está um conceito - acontecimento - que segue entre linguagem e mundo, distinguindo-se, no que tange à linguagem, da proposição, e no que tange ao mundo, dos estados de coisas: ao mesmo tempo sentido das frases e o devir do mundo.

 

5. O domínio atua sobre o corpo e sobre a expressão. Tudo se oferece em termos de melhor e pior, de mais desejado e menos desejado. Em Gonçalo, signos linguísticos e signos plásticos insinuam uma ruptura deste domínio. São desenhos para serem lidos, e frases que passaram naturalmente ao desenho. Afirmação e semelhança disjungem, mas se relacionam, articulam-se, agenciam-se. É o desenho do mesmo liberado do “como se”. Nega-se a ordenação transcendente do representante, encontra-se um centro-acontecimento. Sob este olhar, o objeto que se examina e suas partes só existem em função da capacidade de dobrar-se, um sobre os outros. Sabe Gonçalo: um devir Alice do pensamento é também um devir Antonin Artaud do pensamento (um devir não imagético do pensamento). Pode-se desenhar linhas com a potência de convulsionar a linguagem. Basta que a natureza seja apaixonada nessa operação, basta que algo arraste tudo consigo, antissintaticamente.

 

6. Do senhor Blanchot ao senhor Foucault. Jamais acreditar nas maravilhas da interioridade, nas armadilhas da subjetividade. Dá a volta na busca da verdade, sem se fazer estranho a ela. Melhor, encontrar onde estão os perigos dessa busca, denunciando suas relações de poder. Imaginar outras ruas como aquela na qual moraram Sade e Hölderlin, depois Nietzsche, Mallarmé, Artaud, Bataille, Klossowski. Onde toda identidade perdeu-se, fugiu, a começar pelo corpo que escreve: em vez de ser aquele que de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso do seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de desaparecimento possível.

 

7. E que língua nasce daí? A mesma língua que fez o campeão de natação dizer ao senhor Kafka: eu falo a mesma língua que você e, no entanto, eu não compreendo nada. O centro é um outro radicalmente diferente. Outro conjunto, outro conceito. Há pessoas que dizem emprestar seu discurso ao outro, ou que dão voz ao outro. Estas pessoas estão mentindo. Quando o outro disser que não aceita suas palavras (ou que são palavras bondosas, mas incapazes de afecção segundo o plano de imanência, o diagrama que deveriam habitar), a bondade falará com mais violência que qualquer rejeição. Digo, a imagem não é um prolongamento do real, é uma contemporaneidade. Assim como a imagem, o discurso é uma outra possibilidade do ser, é uma outra versão imaginária, imanente, neutra, jamais algo derivativo, algo que aguardava em potência para ser formulado nem algo que pode ser emprestado ou tomado. O discurso é um ralo, um destino, uma ausência, não oferece escolha aos estados de coisas nem às proposições. É algo que atualiza aquilo pelo que é atualizado, de modo sempre mais impessoal na pessoalidade.

 

8. Poder e discurso não são a mesma coisa, nem podem vir a ser. Não são dialéticos. Estão em uma relação sem relação, tal a imagem com o objeto em si, tal a palavra com o imaginário. Contradizer-se é o movimento essencial desse pensamento, dessa lógica infantil, desse devir Alice da linguagem.

 

9. Poder e saber formam um sistema, unem o diagrama e o arquivo, os articulam a partir da diferença de natureza que guardam. Os personagens do O bairro de Gonçalo surgem doces, delicado, gentis, surgem ternos se comparados à gravidade dos homens de seu Reino. Mas uma lógica persiste, um centro, um nada de vontade ameaçando a natureza improfanável dos dispositivos. Algo – maldades, bondades - quer ser ultrapassado, perecer, porque não ignora a liberdade da autodestruição ativa. Com ela, e só com ela, é possível transformar a negação em afirmação, é possível restaurar a atividade dos espíritos superiores em seu direito. O eterno retorno, o ser do devir, é sempre seletivo, porque não se trata do retorno do espírito de segunda categoria. Há um centro gravitacional autodestrutivo. Minha doutrina ensina: viva de tal modo que deva desejar reviver, é o dever – pois de todo modo você reviverá. A pergunta fundamental que se lança é: quero fazê-lo um número infinito de vezes? É preciso saber onde está a preferência de cada um, e não recuar, vivê-la à fratura. O que você quiser, queira-o de tal modo que também queira seu eterno retorno. Há personagens errantes que buscam eliminar de sua escrita e de sua vida todos os semiquereres, as meia vontades e para isso é preciso que se autodestruam. A negação exprime uma afirmação da vida e o eterno retorno é a prova a que são submetidas as forças reativas dos espíritos fortes. O que retorna é o que pode ser afirmado.

 

10. O ponto é o início de um livro. Surge antes da primeira letra da primeira frase, nota Gonçalo ou o senhor Swedenborg. O centro é o início. O enunciado não se define pelo que significa ou designa, mas é a curva que une pontos singulares. Trava o enunciado uma “não-relação” com os pontos singulares que liga, e a força que une tais pontos é o fora do enunciado, mesmo que coincida com aquilo que ele é. A curva-enunciado integra na linguagem a intensidade dos afetos, as relações diferenciais de forças, as singularidades de poder. Assim também deve fazer ao seu modo as visibilidades, por um caminho comparável, mas não correspondente. O senhor Hjelmslev está sempre à porta. As análises literárias não se limitam apenas ao enunciado. São capazes de encontrar curvas, e são capazes de encontrar também os quadros, que são como as curvas para a visibilidade, linhas de luz. De modo que quadro-descrição e curva-enunciado são pares heterogêneos, como dito na primeira nota deste texto, duplas-pinças, lagostas, que regulam as legibilidades e as visibilidades. Ver e falar, relações de saber, sempre estiveram presos nas relações de poder que eles atualizam. Relações de forças que não são simplesmente exteriores (a exterioridade é ainda uma forma), mas estão do lado de fora, em um “não-lugar” de “não-relações”. Pensar é chegar ao “não-estratificado”, ao lado que não tem forma. O lado de fora é sempre a abertura de um futuro, com o qual nada acaba, pois nada nunca começou – tudo apenas se metamorfoseia.


 

Paulo Carvalho é mestre em comunicação social


*O autor preferiu deixar anônimas as citações grifadas em itálico