Durante muito tempo desejei ter nascido em séculos anteriores ao meu. Isso porque a minha angústia e o meu desejo de leitor - ou de poeta que ansiava por grandes encontros e convivências - sonhavam com os cafés parisienses onde Baudelaire, Verlaine ou Rimbaud atravessavam as madrugadas rabiscando poemas em guardanapos; com os bares londrinos onde Poe, Keats ou Byron se misturavam aos bebedores que gritavam seus versos como hinos às paixões; ou com as ruas do Recife nos tempos em que se poderia esbarrar com Castro Alves num sarau organizado por Eugênia Câmara. O anacronismo ou a impossível sincronicidade desses encontros me faziam inventá-los, transformando-me num anfitrião do sonho. Com relação ao século 20, minhas angústias recaíam sobre o meu desencontro com os jovens Bandeira e Drummond, Cabral e Murilo Mendes, o que sempre me deu a certeza de ter nascido pelo menos 20 anos atrasado. Ainda que tenha me encontrado pessoalmente com um João Cabral já maduro ou mesmo me tornado amigo de um Ferreira Gullar eternamente jovem, o desejo do encontro com os escritores que construíram parte importante do meu cânone particular sempre foi uma obsessão. O alento inevitável seria uma certa contemporaneidade moderna e a irmandade do espírito que reúne todos os poetas.

 

Foi em 1994 que a leitura de um livro-poema recém- traduzido no Brasil renovou em mim a alegria de ter nascido no século passado. Esse livro, ou esse poema, é Omeros (Companhia das Letras, 1994, 298p.), do poeta antilhano Derek Walcott. Afinal, pensei, se tivesse nascido um século antes teria perdido o incalculável prazer da leitura de um dos mais belos textos que conheci até hoje. E nisso - concluía - estou em vantagem se comparado a todos os que me antecederam: pois eu conheci a poesia de Derek Walcott e eles não. Saber-me contemporâneo desse poeta é, portanto, uma dessas felicidades a que chamamos rara.

 

Penso agora em Omeros. É preciso falar da obra-prima do poeta cuja produção literária reúne riqueza e variedade que o colocam ao lado dos clássicos e cujas qualidades já foram reconhecidas pelo maior de todos os prêmios - o Nobel de Literatura, em 1992. Para o leitor brasileiro que dispõe de tradução e edição nacionais desse livro, o mesmo deve ser citado como obra fundamental não só de Derek Walcott, mas da poesia moderna e contemporânea. Como experiência pessoal, o que posso dizer é que a leitura de Omeros deixou em mim a certeza de ter conhecido uma obra ímpar, sem paralelo na poesia de sua época. Isso porque a sua abordagem é resultado de uma sensibilidade moderna que, munida de toda tradição ocidental, registra uma experiência única em tempo e lugar específicos: o século 20 e a ilha de Santa Lúcia, nas pequenas Antilhas, Caribe. Por isso, como monumento poético e humanístico, essa obra eleva-se acima de mapas e cronologias, dignificando o que se entenda por permanência. Ainda como poesia, Omeros é uma ampla e delicada narrativa dos costumes e tradições de uma civilização sob o olhar de um homem que é parte dela, que está em cada verso, em cada imagem, em cada palavra.

 

Por sua abrangência, torna-se irrelevante a discussão do gênero poético de Omeros (se é épico ou não), o que, a meu ver, apenas o aprisiona num escaninho teórico - sempre aquém de sua grandeza -, ainda que toda poesia épica se sustente também, ou principalmente, pela força lírica de suas imagens. A favor dos que encontram no poema suficientes argumentos para uma voz épica positiva - ou seja, livre dos defeitos que resultam em equívocos ou na mera pretensão -, acrescente-se então a nota de seu tradutor brasileiro, Paulo Vizioli, quando afirma que os mitos retratados por Walcott refletem “arquétipos recorrentes, procurando por meio deles retratar homens simples - os pescadores de Santa Lúcia - na épica batalha pela sobrevivência num meio hostil (...), ou a luta pela identidade e pela integração, de um e de todos os indivíduos, de uma e de todas as raças”. Se assim, portanto, o quisermos, o poema se torna ainda mais universal (e até hodierno), constituindo-se numa metáfora dos conflitos raciais contemporâneos, consequentes das grandes migrações - os africanos e europeus do Leste deslocando-se para a Europa Ocidental; os mexicanos e outros latino-americanos invadindo ilegalmente os Estados Unidos - que enfrentam cotidianamente as batalhas da discriminação racial, cultural ou religiosa.

 

Imune a qualquer especulação, o que Omeros e toda a poesia de Derek Walcott traz em si é a força de imagens poderosas que se sucedem numa floração permanente.

 

Como já observamos, o tempo e o lugar de quase toda a obra é o aqui e agora dos mares e praias de sua ilha natal, Santa Lucía, nas Antilhas; as ruas e casas de Castries - a capital do país; o seu mercado público etc. “As bancas do mercado continham tanto a história/ das Antilhas quanto a de Roma, os frutos de um mal,/ onde os pratos-de-metal oscilantes só se equilibravam// com a lágrima férrea do peso - cada bacia de latão/ nivelava no mesmo horizonte - mas nunca iguais,/ como o velho e o novo mundo, com a equidade das aparências.” Ou ainda: “A glória da manhã esmaecia. A fumaça escrevia a mesma história desde a aurora do tempo. A fumaça era o tempo a se queimar.”

 

Algumas observações sobre os personagens de Omeros. Os nomes de seus protagonistas nos remetem amiúde aos heróis de seu ancestral literário grego - Homero -, que o livro obviamente homenageia. No poema de Walcott, nomes da Ilíada batizam seus atores, como a tríade principal Achile, Helen e Hector, que formam o triângulo amoroso da trama. Há também o preto velho Sete Mares, ex-navegador e pescador de Santa Lucía, que é cego, bardo e profeta, uma reverência ao próprio Homero. Há ainda o negro Philoctete - dupla homenagem aos gregos Homero e Sófocles - que carrega um ferimento sem cura em uma das pernas; e a dupla Plunkett e Maud, um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial e sua mulher - aqui a homenagem se estende à moderna literatura irlandesa (Joyce é uma lembrança recorrente nas referências que podemos anotar em Walcott). Assim como na história grega, em Omeros, Helen é o centro da grande batalha, ou da batalha íntima e passional entre Hector e Achille “pelos olhos oblíquos amendoados de sua beleza de ébano”. Em torno deles todos os outros personagens tentam vencer suas angústias com seu tempo e lugar - o lugar de suas origens, principalmente. Pois cada um, desde o inglês Plunkett até os nativos da ilha, parecem estar em busca de uma identidade com raízes locais.Todos, de alguma forma, refletem o projeto poético e humanístico do próprio autor.

 

Tomando como exemplo o lançamento de Omeros no Brasil em 1994, creio que um dos principais problemas do mercado editorial brasileiro no campo da poesia é a carência de boas traduções como essa, ou, quando as temos, a interrupção de uma sequência de publicações que traga a público um conjunto mais abrangente de obras de um mesmo autor contemporâneo. Note-se, por exemplo, o total desconhecimento da poesia de Tomas Transtromer - Prêmio Nobel de Literatura 2011 - no Brasil. Isso ocorre com nomes como Seamus Heaney, John Ashberry e Derek Walcott, para citar apenas três dos poetas fundamentais da poesia em língua inglesa escrita hoje no mundo. No caso de Walcott, dois títulos de sua poesia ainda carecem de imediata tradução e publicação no Brasil: The Arkansas Testament, de 1987, e Selected Poems, de 2007 - este último reunindo parte substancial de sua poesia escrita até aquele ano. No caso de The Arkansas Testament - que já possui tradução para o espanhol desde 1994 (Ed. Visor Madrid - Colección Visor de Poesía)-, apenas este livro já colocaria Derek Walcott entre os grandes poetas do século 20. Escrito e publicado três anos antes de Omeros, The Arkansas Testament reúne dois conjuntos de poemas da mesma altitude do grande livro que o sucedeu. Dividido entre There e Elsewhere, nele estão poemas escritos em (e para) Santa Lucía (There) e poemas escritos em (e para) outros lugares do mundo (Elsewhere). O seu mais recente livro de poemas - ou o que tenho em mãos - é White Egrets, de 2010.

 

Completando uma lista muito particular do que considero uma bibliografia básica do poeta, pensador, dramaturgo e ensaísta Derek Walcott, outros títulos seriam fundamentais para aqueles que buscam um conhecimento mais profundo desse escritor de 81 anos, nascido em Castries em 23 de janeiro de 1930. Pelo menos em poesia, The Bounty (1997), Tiepolo’s Hound (2000) e The Prodigal (2004) devem fazer parte de uma biblioteca mínima, além dos citados anteriormente. Já na área de ensaios, What the Twilight says (1998) atende a uma iniciação ao pensamento crítico recente de Walcott. Além desses - o que pede mais atenção dos encenadores e críticos teatrais contemporâneos, principalmente fora dos Estados Unidos -, talvez dez de suas 20 peças de teatro poderiam ser relacionadas aqui. Finalmente - e aqui falo também como crítico de arte - é preciso não esquecer Derek Walcott como artista plástico: o poeta é um hábil aquarelista, e revela em suas pinturas a mesma força, elegância e delicadeza presentes em sua obra escrita. Aspectos humanos e culturais de sua ilha natal, em cenas com barcos, praias e pescadores são temas recorrentes em sua obra pictórica. Suas aquarelas estão nas capas da maioria dos seus livros, e iluminam, com a luz antilhana de Santa Lúcia, uma poesia inesquecível e universal.

 

Weydson Barros Leal é poeta e crítico literário.