O sucesso estrondoso que Jonathan Franzen obteve com seu último romance, Liberdade (que está sendo lançado no país pela Companhia das Letras), foi, ao mesmo tempo, previsível e inesperado. Previsível porque Franzen já carregava consigo uma enorme aura de respeito desde seu romance As correções, publicado em 2001, e sua nova obra era esperada há anos. Previsível, também, porque o gênero que consagrou Franzen, o romance de costumes, se adequa à perfeição para os temas que ele escolheu trabalhar em Liberdade: assuntos atualíssimos, que vão desde a influência da Apple na informática (e nas relações sociais) até o aquecimento global, passando, claro, pelo governo Bush e pelo comportamento dos republicanos e democratas norte-americanos. Por outro lado, quem de fato esperava que Liberdade se tornasse um best-seller instantâneo? Que Franzen seria o único escritor a figurar na capa da Time na última década? Que seu livro seria lido pelo presidente Barack Obama? E o mais chocante e, por isso mesmo, tema central deste artigo: quem esperava que um livro tão comportado e “correto” seria considerado pela crítica uma das obras mais importantes do século 21?
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A Literatura mundial sempre simpatizou com rebeldes. Se não com rebeldes stricto sensu, pelo menos com gente esquisita, estranha, obsessiva. Não me refiro apenas à junkies como William Burroughs ou a qualquer outro beatnik. Falo também do beberrão Faulkner, das confusas e deprimidas Virginia Woolf e Sylvia Plath, da religiosa Flannery O’Connor, do amalucado James Joyce. Ou, para tomar um exemplo mais contemporâneo, pensem em Roberto Bolaño. Apesar da qualidade impressionante de sua obra, parte de seu sucesso de público se deve à imagem construída ao redor dele: poeta exilado, ladrão de livros, “detetive selvagem”. Agora, por favor, senhor Franzen, pare junto à luz. Vamos tirar uma fotografia. Camisa para dentro da calça, barba bem feita, óculos de escritor sério. Se uma garota levasse Jonathan Franzen para jantar com a sua família e o apresentasse, “Mamãe, este é meu namorado”, qual mãe não se apaixonaria por Franzen? Ele é ou não o genro perfeito? Educado, elegante, simpático. Um nova-iorquino que tem como hobby – atenção – observar pássaros.
Claro, não podemos julgar uma pessoa pela sua imagem (ainda mais uma imagem construída pelas mídias), muito menos a sua obra. A “fotografia” de Franzen está sendo apresentada aqui, para além da ironia, pelo fato de que sua persona de bom moço se conecta diretamente com suas declarações e, em certo sentido, com (aquilo que enxergo como) as limitações de seu último romance.
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As correções (2001), o romance anterior de Franzen, passou despercebido pelo público brasileiro, apesar do sucesso no resto do mundo. Ainda assim, conquistou alguns fãs por aqui. Lucas Murtinho, o idealizador da Copa de Literatura Brasileira, por exemplo, considera essa obra um exemplo de romance ambicioso que tenta unir criatividade formal com uma trama complexa e ótimos personagens. Murtinho lamenta que no Brasil seja tão rara a existência de romances desse porte. Obras de fôlego, não focadas em apenas uma coisa (“livro de personagem”, “livro de linguagem”, “livro de enredo” e outros rótulos que às vezes damos aos romances que se especializam em apenas um aspecto). A crítica de Murtinho representa, em certo nível, a espera da crítica pelo novo “grande romance”. O curioso, em se tratando de Jonathan Franzen, é que os críticos norte-americanos enxergaram “o grande romance” mais em Liberdade do que em As correções.
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Concordarei com Murtinho: As correções une pontas difíceis de ligar. Seu estilo fragmentado, que mescla diversos estilos, se encaixa no que se convencionou chamar de pós-modernismo na Literatura. Um leitor de As correções consegue ver ligações entre a prosa de Franzen e a de Jonathan Safran Foer, Nicole Krauss e David Foster Wallace (listando apenas conterrâneos e contemporâneos de Franzen). E, ainda assim, trata-se de um livro profundamente humano, que nunca se perde na verborragia exagerada de um Pynchon (que, muitas vezes, por melhor que seja sua prosa, esquece que está lidando com personagens humanos, com sentimentos e dilemas morais). Enfim: As correções capta muito bem o zeitgeist, o espírito do seu tempo, na forma e na trama. Mas o hype em cima desta obra foi brando, se o comparamos com Liberdade. Antes mesmo de chegar às livrarias norte-americanas, Liberdade já recebia o carimbo de “o grande romance americano do século 21”. Estava na capa da Time, estava no programa da Oprah.
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E por que, na opinião deste leitor, Liberdade não seria tudo isso? Em primeiro lugar, porque o romance de Franzen representa um retrocesso (na opinião pessoal e intransferível deste leitor) estético na sua carreira. Como o próprio autor disse em entrevista à Paris Review (cujas citações daqui são extraídas da tradução publicada na revista Serrote #7), falando sobre como hoje em dia não se interessa mais pela sonoridade e pela “aparência” gráfica de suas frases: “Hoje em dia eu tenho uma estética quase oposta – estou interessado na transparência”.
Na minha formação como leitor, um dos maiores aprendizados foi que a linguagem literária nunca é transparente. Ela se vale de sua opacidade para gerar a possibilidade de múltiplas leituras e interpretações. A linguagem sem ambiguidades ou ironias, “transparente”, era adequada para as bulas de remédio e panfletos políticos. Por que Franzen abandonou a mescla de estilos, a inventividade, em prol de uma linguagem clara e límpida? Teria alguma relação com o bom-mocismo de sua imagem? Franzen, na mesma entrevista, falando sobre o início de sua carreira, conta: “Eu era um menino magricela e medroso tentando escrever um grande romance. A máscara que eu assumi foi a de um escritor de meia-idade extremamente esperto, cultíssimo e de retórica incontestável”. Apesar de o autor relembrar esse momento com um tanto de sarcasmo, Liberdade é, de certo modo, a culminação desse plano: Franzen se tornou o “escritor de tio” por excelência. Sua prosa perdeu qualquer ímpeto juvenil, repleto de vigor, e se tornou uma prosa transparente, favorecendo apenas os personagens, a mensagem política, o comentário social.
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Para além dessa nova simplicidade (que desanda em um estilo “simplista” vez ou outra), há outros problemas pontuais em Liberdade, como o final tão amarradinho e simpático que parece digno de um filme bobo de Hollywood. Pior, no entanto, está a inclusão de capítulos narrados por uma das personagens, Patty, que escreve no mesmo estilo que o narrador onisciente em terceira pessoa do resto do livro. O leitor que passa por esses capítulos narrados pela personagem chega a cogitar se não se revelará, ao final, que foi Patty quem escreveu o livro todo. Só uma reviravolta metalinguística explicaria o fato de que o registro linguístico da personagem é idêntico ao do narrador. Tal reviravolta não acontece.
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Só um tonto descartaria Liberdade como mero fenômeno midiático. Franzen pode ter feito melhor no passado (e As correções está aí para nos provar isso), mas seu último romance, apesar de ser um dos maiores exemplares de uma Literatura tranquila, sem espaço para a invenção, ainda é muito divertido.
Divertido, sim. “A diversão ainda é uma parte importante da escrita. Quero dar prazer em tudo que escrevo”, conta Franzen, na mesma entrevista da Paris Review. E as centenas de páginas de seu romance são compulsivamente legíveis. O livro usa a esperta estratégia dos best-sellers de deixar um gancho no final de cada capítulo e faz com que o leitor se importe com cada um dos personagens construídos.
Quanto aos personagens: mesmo com a linguagem murcha de Liberdade, Franzen cria seres humanos com suas palavras. É inegável. Cada um dos membros da família Berglund respira, tem carne, osso, cérebro e sexo. E o autor coloca esses indivíduos em situações-limites, onde seus valores éticos são constantemente testados. Há uma complexa arquitetura de relações familiares em jogo. Ainda assim, nenhuma atitude de seus personagens parece inadequada às suas personalidades. São figuras coerentes do início ao fim, e isso não é uma tarefa nada fácil para um ficcionista.
Tudo seria tão mais fácil, se pudéssemos detestar Jonathan Franzen e descartar seu livro como mais um romance chato de um jovem nova-iorquino bem comportado e de claras intenções políticas. Liberdade não aponta novos caminhos, não transgride, não inventa. Porém, no esporte que joga – o do realismo educado – é um atleta de fôlego e talento.
Antônio Xerxenesky é escritor.
Barba bem feita e camisa por dentro da calça
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