Parece história de cinema. Um padre de 95 anos, ícone filosófico e intelectual de várias gerações no Recife, tem em casa vários volumes de poemas, que foi escrevendo ao longo da vida. Os poucos amigos que tiveram acesso aos originais tentam convencê- -lo a publicar. Tratam os manuscritos como uma preciosidade literária.
De jeito nenhum. Nem pensar. Jamais. O padre não arreda o pé. Mantém o costume de muitos anos. Entrega os escritos à amiga Célia Veloso, bibliotecária aposentada da Faculdade de Direito, que datilografa tudo e manda encadernar. São 14 livros de Filosofia, 13 de Poesia.
Cada exemplar tem um formato de distribuição. Um exemplar fica com o autor, outro com Célia, o terceiro ele dedica a um amigo – sem autorização para publicar. Na primeira página de cada volume, algum aviso do tipo:
“Aos amigos confiáveis, para empréstimo, com espera de devolução”.
Ou:
“A qualquer um: Este exemplar é meu. Por favor, devolva-o, se lhe for emprestado. E desculpe o estilo direto. Afinal, estamos no Brasil. Recife, 17 de dezembro de 1991”.
A pré-estreia
Livraria Cultura, 15 de fevereiro de 2011. O auditório está cheio, para o lançamento do livro Poemas, de Daniel Lima. Uma publicação de 400 páginas, editada pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE).
Sentado, na primeira fila, escutando os elogios rasgados à sua obra, Daniel Lima está quietinho como um passarinho que saiu do ninho por algumas horas. Ameaçou não ir, buscou alguma dor que não surgiu, alegou um cansaço inexistente, até que cedeu. Foi, mas ameaçou fazer alguma travessura. Como protesto, não deu entrevistas.
Mas agora está lá, na primeira fila, com seus cabelos brancos e sorriso de menino. Escuta, sorri, abençoa a blasfêmia. Sim, os poemas foram finalmente publicados, com prefácio de Lourival Holanda e Zeferino Rocha. Contrariando a lógica do mercado editorial, a obra esgota em poucos dias.
Um detalhe daria mais tempero à publicação. Um pequeno grupo, sob o comando da escritora Luzilá Gonçalves, arquitetou uma espécie de “contrabando poético” dos originais. Só assim, Daniel Lima saiu do ineditismo literário.
“Há meio século Daniel Lima produz uma poesia de qualidade singular, mas que zelosamente subtrai ao olhar do grande público. Num movimento de atração e repulsão, ele afasta o público enquanto atrai e fascina seus amigos e mais chegados. Por sorte nossa, alguns destes amigos venceram, não sem muito custo, a resistência de Daniel, subtraindo os poemas que formam esta seleção”, diz Lourival Holanda no prefácio.
Lembra também dos excessos da poesia em tempos de velocidade e novas mídias.
“A poesia contemporânea parece sofrer de uma paradoxal fraqueza: a indigência por excesso. Excesso de facilidade dos novos meios – que possibilitam pressa, mais que cuidado, na exposição de sua poética”.
Lourival destaca o estilo solitário de Daniel, que sempre fez questão de “guardar ferozmente” sua independência frente a seitas e confrarias literárias.
“Cada semana a mídia consagra e entrega um grande poeta – para a indiferença e esquecimento da semana seguinte. As rodas literárias fazem e desfazem famas, entre murmúrios e elogios vagos – tudo submetido ao caprichos do mercado, essa lei letal às letras”.
Ao sair da livraria com meu exemplar, li os primeiros poemas e não senti o impacto esperado. Em casa, fui mergulhando na obra e senti a profundidade. Havia mesmo algo vertical, uma espécie de luz própria, única. Precisava contar a história do contrabando.
Eu já tinha ouvido falar do “Padre Daniel Lima” várias vezes, ao longo dos últimos anos. Era quase como uma entidade, uma criatura à parte, como se pertencesse a outra civilização. Um homem cheio de belos manuscritos, mas avaro com o publicar. Que era algo raro e estranho nos dias de hoje – um grande poeta anônimo. Um homem menos do espetáculo e mais da “aventura espiritual”, como lembrava Lourival. Um ser humano com o desafio de “reamarrar mundo e sentido”.
Certa vez, uma amiga me presenteou um CD, onde o escritor Jomard Muniz de Brito, admirador de sua obra, recitava alguns poemas selecionados. Mas era tudo e era pouco.
Parecia que Daniel Lima era um personagem de ficção, envolvendo poetas, críticos literários, romancistas, alguém que não existia de verdade, mas estava num lugar imaginário, guardando seu tesouro para um tempo futuro. Um professor de Filosofia, Latim, Estética, que influenciou muitas gerações, agora fora de cena, apenas aumentando seu baú de poemas e a contemplação da vida.
Cinco dias depois do lançamento, fui à casa de Luzilá Gonçalves, no Poço da Panela. Queria saber os detalhes do bem sucedido contrabando literário e seus desdobramentos.
Ela, que foi sua aluna no curso de Letras da UFPE, recordou de várias histórias envolvendo o amigo, célebre por seu comportamento libertário e travesso, seja dando aulas, seja nas posturas como padre. A definição de Dom Helder Camara resume a personalidade de Daniel:
“Meu padre quase doido e quase gênio”.
Deixemos a vida para depois. Vamos à obra.
Luzilá disse que pediu emprestado os livros Cancioneiro tímido, Asa, abismo e voo, Cantos rápidos e Quase. Conseguiu sair com os quatro volumes originais quase sem acreditar. Falou com Leda Alves, presidente da CEPE.
“Consegui”.
Leda Alves conhece o homem há muito tempo.
Foi um passo além ao comentário de Dom Helder. “Meu Deus, Daniel é um gênio, vamos publicá-lo”. A trama começara a ganhar forma. Luzilá entregou os originais ao chefe do departamento de Ciência da Informação da UFPE, professor Marcus Galindo, que escanenou todo o material e passou para CD.
Quando tudo começava a se encaixar, Luzilá voltou à casa do padre.
Avisou:
“Daniel, estamos fazendo um livro com seus poemas”.
“Não pode! Não dei ordem! Amiga traidora, espiã!”, foi a resposta.
“Daniel, você é padre. Isso é um pecado – avareza”.
O padre reclamou muito.
“Pra que isso?”
“Mas Daniel, você precisa deixar alguma coisa”.
“Eu não quero deixar nada”.
A principal acusação era a de “traição”, mas na história da Literatura, não fossem certas traições, a humanidade teria perdido grandes obras. A conspiração foi adiante, e o livro foi publicado.
Após a conversa com Luzilá, só me restava um desafio – conhecer pessoalmente o padre Daniel Lima. Acertamos uma visita para uma semana depois.
“Foi você, Luzilá!”. Acusação e absolvição.
Chegamos ao apartamento de Célia, no bairro da Torre. Trata-se de uma mulher carinhosa, que há vários anos cuida do amigo Daniel, datilografa suas garatujas com diligência, dessas criaturas que aprenderam desde cedo o verbo cuidar.
Daniel, sentado na sala, com seus chinelos e meias, tinha o livro ao lado. Luzilá me apresentou, e percebi pelo sorriso, que o mais novo autor da CEPE era na verdade um menino travesso, com vocação para movimentos verticais. .
Rapidamente a conversa gira em torno do lançamento.
“Ele queria nada. Como eu fico aqui, botou a culpa toda em Luzilá”, diz Célia.
“Foi você, não foi?”, pergunta Daniel.
“Foi Luzilá”, responde.
Célia não resiste.
“Ele gostou tanto, que vive com o livro nas mãos”.
“Estou vendo se encontro erros”, rebate o padre.
Depois de um silêncio, olha para Luzilá.
“Foi você, Luzilá! Uma pessoa em que eu confiava tanto...”
“Você me deu um livro. Os outros quatro você me emprestou”.
Célia me conta que datilografava tudo quando chegava em casa, após o expediente.
“Ele escrevia, eu ia batendo”.
Luzilá pega o livro, começa a ler um poema. Daniel fica com os olhos bem acesos. É notório que está em festa com a publicação, é um comparsa da própria traição.
“Colhes uma flor sem nome num jardim qualquer,
numa tarde como as outras
e, no entanto, toda a tua vida se recolhe
nesse ato humilde,
todo o teu passado se reflete
num gesto obscuro,
e se recapitula tudo o que fizeste
desde os mais remotos tempos em que não existias
senão no desejo de teus avós,
quando eras apenas uma forma vagamente possível,
um voto de amor não formulado ainda,
talvez nem isto.
Ao colheres uma flor,
a tua vida inteira se refugia neste gesto.
E é por isto que a flor estremece”.
Daniel abre um sorriso de menino.
“Não desconfiei nada desta traição”.
Pergunto se ele gostou do livro.
“Gostei”.
“Então estou perdoada”, diz Luzilá.
“Está”, responde.
“O que vinha de editora importante aqui, pedir os escritos dele... Ele dizia que mandava daqui a um mês e nada”, diz Célia, que também procura na Internet algum texto sobre o amigo.
Luzilá passou a ler outros poemas, e o clima de sarau instalou-se no apartamento de Célia. Levei uma pequena filmadora e pude registrar a alegria do novo autor pernambucano.
Entre um poema e outro, fragmentos da vida de Daniel. O nascimento em Timbaúba. Albertina, a mãe. Honorina, a irmã de Albertina que o criou. A vocação para o sacerdócio. A expulsão do Seminário de Olinda, os estudos na Paraíba. Os oito irmãos. A mania de não atender telefonemas, a não ser através de códigos misteriosos, que poucos amigos tinham acesso. O dia em que estava atrasado para dar aulas na Faculdade, passou uma ambulância, ele desmaiou, para pegar carona. Perto da Faculdade, avisou:
“Pode parar, que já fiquei bom”.
“Agora você vai para o hospital”, respondeu o motorista da ambulância, e ele perdeu as aulas.
“Ele adorava ser doido”, comenta Célia.
Depois, ela vai lá dentro, em um dos quartos, e traz um livro encadernado, intitulado Perdidos e achados, de 1991, ainda inédito. Ele imediatamente pega, como um menino que zela pelos brinquedos, antes de passar para os amigos.
Já era fim de tarde quando perguntei a Célia se poderia conhecer o apartamento. Ela me leva ao quarto dela, me mostra uma estante. Estão lá, vários volumes encadernados. Originais que poucos amigos tiveram acesso.
Pego um a um, folheio, vejo as dedicatórias. Há poesias, textos curtos, anotações, filosofemas. O sonho de qualquer editor.
Súbito, penso em botar um na bolsa, sorrateiramente, e levar um desses originais para ler em casa. A bolsa, porém, ficou na sala, e mal conheci o padre. Desisto da ideia.
Passamos ao quarto onde Daniel dorme, tem suas coisas.
“Ele tem uma casa aqui perto, mas vai lá só de vez em quando. Está cheia de livros e manuscritos”, diz Célia.
No quarto, em cima de uma cômoda, vejo um material encadernado, semelhante a uma apostila.
Na capa, o título: Daniel Lima por ele mesmo – depoimentos e entrevistas. Organizado e apresentado por Zildo Rocha – 2005.
Pego o material, levo para a sala. Mostro e pergunto o que é.
Ele imediatamente puxa para si, olha, folheia. Desconversa.
“Ele escreveu um estudo sobre Dom Quixote, um livro. Não sei onde está”, conta Célia.
Enquanto Luzilá lê mais poemas, pego de volta os depoimentos e entrevistas. Basta ler alguns trechos, para saber que se trata de um material que envolve Filosofia, Literatura, reflexões sobre sua vida, sua jornada pelo mundo. Anoto alguns trechos. São escritos da alma.
Mais inéditos, publicados sem autorização do autor.
“Quase assumi a personagem de Cervantes de um jeito tal que ela se grudou em mim até hoje. Eu era ele, o ‘cavaleiro dos leões’, o louco varrido que pensava certo mas agia errado, que melhorava as coisas piorando tudo, que via numa rude lavadeira a bela Dulcinéia, sonho e a realidade fundidos e confundidos, meu herói doido que sonhava que estava acordado e assim dormido realizava sonhos tão verdadeiros, os quais não podiam existir senão na sua cabeça. Então me disse: ‘ Ser louco é preciso! A questão estará na dosagem’”.
Li o texto em voz alta. Ele gosta.
“Qualquer dia vamos na minha casa, para você conhecer. Tenho muita coisa escrita lá”.
Depois completa:
“De vez em quando vou lá, para reler minhas coisas. Quero ver se subi ou desci”.
Célia e Luzilá falam da casa, a grande bagunça do padre Daniel Lima, cheia de originais, repleta de livros. Certa vez, teve um princípio de incêndio, a ação dos bombeiros para apagar foi mais devastadora que o próprio fogo. Fico imaginando os tesouros que Daniel tem ainda guardados.
Leio e anoto mais trechos.
“Sim, sou um homem feliz. Tudo vem dando atribuladamente certo. Não aconteci para fora, estou acontecendo para dentro. A cada dia sei que subo a escada que aparentemente vou descendo e vou me aproximando mais e mais de mim e saindo da caverna de sombras e figuras para a verdade de mim mesmo: o encontro esperado desde o primeiro dia”.
Peço a Luzilá que leve emprestado, tenho ganas de ler todo o material. O lado avarento de Daniel entra em cena.
“Preciso ler, para ver se tem erros”.
Antes de sair, tenho tempo para anotar mais um trecho:
“Como Dom Quixote, mais de uma vez deixei que Rocinante, na encruzilhada, decidisse por mim nessas jornadas de espantos. Aliás, a filosofia maior (a que incorporei à minha vida, quando já na maturidade) me levou a sentir, vivencialmente, que existir, ser um vivente homem, não se pode entender sem a insegurança”.
Antes de sairmos, leio um poema, um dos que mais me tocou, um desses textos que engasga, que arrebata, ilumina.
“Meu irmão, te verei um dia
despojado de tudo o que não és
desse rosto não teu
das aparências, dos guisos, das mentiras
dos disfarces.
Te verei meu irmão
tão diferente
e desnudo e pequeno
tão tu mesmo e tão outro
e passearemos por galáxias vadias
e céus e infernos longos
e falaremos nada tantas horas
que o tempo se fará de nossas falas.
Te verei meu irmão
mas talvez não me vejas
tão diferente estarei
tão pequeno e desnudo
tão parecido a ti nas vaidades mortas
na humildade do rosto enfim reencontrado”.
No último gesto do encontro, peço a Daniel que faça uma dedicatória em meu exemplar. Ele escreve:
“Samarone: Vai aí este livro, que escrevi numa fase de sono; meio sudorento, mas muito alegre e feliz, pois aprendi mais um nome difícil, que decorei para usá-lo em momentos de êxtase. Leia-o e esqueça-o antes de gozar qualquer loucura maior. Do amigo Daniel”.
Por último, a data improvável:
“Recife, 2.980”
Antes de sair, combino retornar na semana seguinte, para uma visita ao seu reduto, repleto de originais e livros. Prometo levar um livro meu de presente.
“Venha sim e traga seu livro”.
É preciso concordar mais uma vez com Lourival.
“Poética clandestina como as festas íntimas. Resta dar razão a Daniel por resistir ao assédio dos críticos: em seu jardim interior as orquídeas levam longo tempo em paz preparando o esplendor de sua floração”.
Nota: Em junho, o jornalista contará como foi a visita à casa do padre Daniel Lima.
Samarone Lima é jornalista.