Na sua apologia ao Cristianismo (Pensamentos, Martins Fontes, 2001), escrita quando a loucura já lhe batia à porta em forma de visões de abismos, Blaise Pascal (1623 — 1662) escreveu a seguinte obviedade sobre aquilo que lhe parecia a coisa mais bem distribuída no mundo, a busca da felicidade: “Todos os homens procuram ser felizes: não há exceção... Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que vão enforcar-se”.

Aqui, o especialista em números e miséria humana acenava para a tensão entre o que chamava de diversão e verdadeira felicidade. Escritos aforísticos e melancólicos, como golpes no narcisismo antirreligioso (“condição do homem: inconstância, desgosto, inquietude”), preparam o leitor da citada obra para conclusões de igual teor saturnino (“se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não precisaríamos deixar de pensar para nos tornarmos felizes”).

Reflete Pascal que nada seria tão insuportável ao homem como estar em pleno repouso: sem paixão, sem ocupação, sem diversão (“Ele sente, então, o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio”); desenhando, a partir daí, a sintomatologia meridiana (“incontinente, sairá do fundo de sua alma o aborrecimento, a melancolia, a tristeza, a aflição, a raiva, o desespero”).

Ainda de acordo com o pensador, não tendo podido os homens curar a morte, a miséria, a ignorância, e que por consequência terem achado de bom aviso, para se tornarem felizes, simplesmente não pensar nisso, um desequilíbrio subjetivo se instaurou: no desgosto se esconderia a cura, e no divertimento o mal (“e ambos são uma prova admirável da miséria e da corrupção do homem e, ao mesmo tempo, da sua grandeza, de vez que o homem se aborrece de tudo e só procura essa multidão de ocupações porque tem a ideia da felicidade que perdeu e que, não a achando em si, é por ele procurada inutilmente nas coisas exteriores, sem poder contentar-se nunca, porque ela não está nem em nós nem nas criaturas, mas somente em Deus”).

FELICIDADE E SOLIDÃO
Dissemos, não há nada de original na generalização pascalina apresentada na introdução deste texto. Platão, en mémoire, já havia indagado em passagem também generalizante do Eutidemo: “Não é verdade que todos os homens desejam ser felizes?”, para mais adiante constatar a evidência do que perguntara: “De fato, quem não deseja ser feliz?”. E alguns, certamente, agora já puxam da memória questões semelhantes trazidas por Aristóteles, Epicuro e Descartes, ou pelos posteriores Kant e Espinosa, por exemplo. Mas sejamos um pouco mais objetivos: voltemos a Pascal, para indicar débitos e negativas de sua reflexão com a de outro marco do pensamento acidioso, a do também francês e cristão Michel de Montaigne (1533 – 1592).

Notem que Pascal e Montaigne são um dos paralelos mais bem entrincheirados da história do pensamento moderno. Se por um lado não é possível, mesmo para o leitor casual, não perceber as semelhanças entre as dicções, escolhas de termos, convergência de ideias, assim como as marcas comuns de derrisão da filosofia sistemática; da representação da fraqueza do homem; da preocupação com a conduta moral; de incontáveis afinidades nas preocupações psicológicas e literárias; por outro lado, a maneira como Pascal critica seu antecessor por reduzir a condição humana unicamente à sua miséria e desamparo cria um débito igualmente forte, mas, por essa perspectiva, negativo (aliás, esse é o motivo pelo qual uma possível denominação para o local de reflexão de Montaigne seja a do fideísta cético, enquanto pensadores como Pascal ou Kierkegaard desenvolvam seus trabalhos no campo do ceticismo ou pirronismo cristianizado).

“Coisas exteriores...”, falava Pascal na última passagem de patente flerte com esse seu antecessor: a consolação vinda dos divertimentos tinha nos escritos de ambos sempre algo (digamos assim, anacronicamente) de social. Divertir-se, para Montaigne ou Pascal, era conviver ou regozijar-se com os valores da convivência em sociedade, coisa que acontecia em geral, virtualmente ou não, sempre longe da introspecção que a escritora Virgínia Woolf associaria à arquitetura do “quarto do escritor”. “O nosso instinto nos faz sentir que é preciso procurar a nossa felicidade fora de nós. As nossas paixões nos levam para fora, mesmo quando os objetos não se oferecem para excitá-las. Os objetos de fora nos tentam por si mesmos e nos chamam, mesmo quando não pensamos neles”, acrescenta sobre isso Pascal. Dessa maneira, chegamos ao que nos interessa diretamente no presente incurso, a saber: à ideia de felicidade, desenhada no limiar entre o viver como o outro e a solidão.

N’Os ensaios (as citações desse texto são da última edição do livro em português publicada, no final do ano passado no Brasil, pela Companhia das Letras segundo tradução de Rosa Freire D’Aguiar), Montaigne de maneira um tanto diversa de Pascal (e concorrem para essa diversidade o fato do primeiro ser um “sensualista”, como veremos adiante) valorizará um tipo de solidão interior como meio e fim da felicidade; Mas que solidão seria essa? Ajuda-nos a responder o pensador Erich Auerbach em texto de apresentação à obra (publicado em português originalmente no livro Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica, de Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr., Editora 34):

“A solidão interior é a sua própria vida, seu existir em si e consigo mesmo, sua casa, seu jardim e sua câmara de tesouros. Para lá carrega tudo o que conquistou de precioso em suas andanças pelo mundo”. Mas alerta Auerbach: essa fuga nada tem de cristã como alguns podem pensar. “É algo que ainda não tem nome. Montaigne abanda-se a si mesmo. Dá livre curso a suas forças interiores – mas não somente ao espírito: o corpo deve ter voz, pode interferir em seus pensamentos e até nas palavras que ele se põe a escrever”, explica.

No movimento em que escreve (quando reserva um lugar para a fé cristã, mas ao invés disso preocupado com questões da vida e da morte, como se a fé não existisse - donde resulta parte do ressentimento de Pascal), cobrando existência de um público que ainda não havia para lê-lo, Montaigne alerta que solidão advogada por ele não seria meramente espacial: “não basta mudar de lugar, é preciso remover os atributos do povo que existe em nós, é preciso sequestrar a si mesmo e reaver a si mesmo”.

A este respeito, o fato da forma de expressão de Montaigne ter sido o ensaio, um gênero inventado pelo próprio pensador, e além de tudo, inclassificável, ou seja, de modo eminente de um “não especialista” (não filósofo, não religioso, não poeta e não cientista), é efeito e causa justamente desse “desejo de si mesmo” pré-romântico por traz da busca da solidão (um tanto mais contemporâneo aos agoras da modernidade dado que o desaparecimento é um tema que nunca saiu de moda na Filosofia ou na Literatura desde Montaigne, e aliás é sintomático que a Filosofia tenha buscado este eclipsar na Literatura): “a maior coisa do mundo é saber de si mesmo. É tempo de desligarmo-nos da sociedade, posto que nada podemos lhe conceder”, escreve em capítulo intitulado “Sobre a solidão”.

Mas há índoles mais aptas à solidão, adverte Montaigne: exatamente aquelas que não são ativas e ocupadas, que não empenham-se por todo lado, que não se apaixonam por todas as coisas, que não se oferecem,nem se apresentam ou se dão em todas as ocasiões. Segundo o escritor, é preciso dar adeus a toda espécie de trabalho, qualquer que seja a sua aparência, e fugir em geral das paixões que impedem a tranquilidade do corpo e da alma, assim como das volúpias que vêm da aprovação de outras pessoas: “É preciso fazer como os animais que apagam seu rastro na porta da toca. O que deveis procurar não é mais o que o mundo fala de vós mas como deveis falar a vós mesmos.”

Montaigne é moderno porque opera por rupturas mesmo e sobretudo em relação àquilo que há de mais privado: “é comedido e observa os usos e costumes; sozinho, consigo mesmo, ele é diferente. Usos, costumes, leis e religiões desaparecem. Estou sozinho, a morte é certa. Não estou em casa, estou em viagem – não sei de onde venho nem pra onde vou. O que possuo, o que me resta? Eu mesmo”, ressalta Auerbach.

O ÍNDICE DA MODERNIDADE
É justamente nesse sentido que para Auerbach, Os ensaios são “apenas um dos sintomas” da existência de Montaigne, algo que inevitavelmente também nos lança em um das obras mais influentes do século 20, O mal-estar na civilização (1930), de Sigmund Freud (1856 – 1939). A Psicanálise, costumava afirmar Jacques Lacan, é ela mesma um sintoma (de quê mesmo?!), parte indissociável da vida em sociedade, vida moderna. (Como aponta o já citado Davi Arrigucci Jr., Montaigne é na verdade um precursor de três lentes que compõem nossos modos de ver o homem e o mundo contemporâneo: Nietzsche, Marx e Freud, influenciando-os respectivamente na centralidade da questão dos valores; no desvendar da face do interesse e sua base material; e no escrutínio da face sombria da personalidade). Mas vamos agora em direção a Freud.

Em O mal-estar na civilização (as citações que aqui exporemos estão na última edição do título em Português, fruto da tradução de Paulo César de Souza para Companhia das Letras), pois, Freud também desvela o antagonismo irremediável entre as “exigências da pulsões” e as restrições da civilização.

O criador da Psicanálise afirma, assim, em passagem que poderia ter sido escrita por um dos dois pensadores que aqui trabalhamos brevemente: “a vida, tal nos coube, é difícil demais para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos.” E onde Freud escreve paliativo Pascal usaria um termo geral, as diversões, e Montaigne, volúpias (algo que como vimos, não condena completamente).

Freud de uma maneira muito semelhante a Pascal afirma que a finalidade da vida é “o princípio do prazer”.Pergunta-se: o que pedem os homens da vida e desejam nela alcançar? Para responder com uma generalização análoga à do pirronista cristão: “É difícil não acertar a resposta: eles buscam felicidade, querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres”.

E adverte Freud: trata-se de um programa inexequível (como veremos, justamente por seu caráter social): “podemos dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se ache no plano da Criação”’ (e note que admitir a miséria como modo irremediável do estar no mundo, e separá-la do desejo divino é um dos débitos incontornáveis a Montaigne).

Já a infelicidade, diz o psicanalista, seria bem menos difícil experimentar. “O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós como forças pesadíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos”, aponta. E ressalta Freud ecoando seus antecessores: o sofrimento vindo da convivência causam mais dor que qualquer outro.

Qual a maneira mais crua e também a mais eficiente de evitar a infelicidade ou o sofrimento? A intoxicação, reponde. Mas a opção obviamente não é única: as “técnicas da arte de viver”, segundo ele, são muitas. É possível dominar as fontes internas das necessidades (como acontece nas práticas religiosas ocidentais, que geram apenas uma “felicidade da quietude”) ou ainda recorrer aos deslocamentos da libido que nosso aparelho psíquico permite (a sublimação dos instintos empresta aqui sua ajuda). Estão entre estas últimas, a alegria do artista no criar, a alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade, exemplos onde a intensidade da felicidade é amortecida, comparada à satisfação de impulsos instintuais grosseiros e primários.

Elenca ainda Freud a possibilidade de se recorrer à vida da fantasia (como acontece com a fruição de obras de arte); à religião (que deprecia o valor da vida e deforma o quadro do mundo real de maneira delirante); à ruptura à Montaigne empreendida pelo eremita (com a ressalva, “o indivíduo que, em desesperada revolta, encetar este caminho para felicidade, normalmente nada alcançará; a realidade é forte demais para ele); à fruição da beleza; e, por fim, talvez a mais comum destas tantas técnicas, à busca do amor, quando, é claro, “nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento” porque “nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor.”

Em resumo, Freud defende em O mal-estar na civilização (um livro que recebeu na primeira edição vienense o título de A infelicidade na cultura), que a cultura (kultur, palavra alemã traduzida para a edição inglesa como “civilization”) é construída sobre uma renuncia à pulsão, o recalque. E cada homem não recalca seus impulsos impunemente: se a perda não for compensada, distúrbios inevitáveis daí surgirão.

A civilização exige, assim, de cada sujeito, um grande sacrifício de renúncia oferecendo-lhe em troca bens para os quais precisa ser treinado. Segundo Freud, estão entre os principais traços ou objetivos finais da cultura (e na verdade poderíamos dizer, do projeto moderno como um todo): a beleza, a limpeza, a ordem, as realizações intelectuais, a existência de um único tipo de vida sexual, e o que não é menos importante, uma grande atenção ao modo como são reguladas as relações entre os homens. Sobre esse último traço, aliás, Freud escreve: “O resultado final de ser um direito para o qual todos – ao menos todos capazes de viver em comunidade – contribua com o sacrifício de seus instintos”, para que ninguém seja, ao final, transformado em “vítima da força bruta”.

Assim, em conclusão, vemos nestes três pensadores, de tribunas muitíssimo distintas, um caminho superposto e em profundo diálogo com o nosso tempo. E se nos dois primeiros, Montaigne e Pascal, a ideia da busca dos prazeres da convivência aparece como substituta de uma verdade mais profunda e, portanto, feliz, e no segundo, os imperativos sociais que regulam esses prazeres é o que está justamente na causa do desconforto, não podemos negar um desenvolvimento do quadro social analisado por Freud, que aproxima sua teoria cada vez mais dos antecessores.

Nunca é demasiado lembrar que, hoje, o princípio do prazer é quem preside as instâncias de regulamentação e a ele estamos, ao invés de separados pelos antigos imperativos sociais, submissos por ordens mais eficientes (onde a negociação entre segurança e liberdade é a questão central). Algo, enfim, que Freud repudiou: o agenciamento entre os valores muito limpos e muito ordeiros da civilização e a injunção ao prazer (que o senso comum julga tratar-se de liberdade sem o ônus da perda total da segurança). Claro, a felicidade continua no horizonte dos que vão se enforcar na próxima árvore ou dos que vão se refestelar na próxima praça de alimentação. Mas talvez, para além ou aquém da felicidade, nos reste o caminho de Montaigne. Procurar a maneira mais adequada para falar a nós mesmos, nem que para isso seja preciso recorrer à clínica.

Paulo Carvalho é mestre em Comunicação Social.