Sempre Susan

Arte sobre imagem de divulgação

Conheci O amigo, lindo romance de Sigrid Nunez, na tradução de Carla Fortino para o português, e fiquei encantada. O livro me pareceu singelo, calmo, contemplativo, de uma delicadeza ímpar, atento aos detalhes e aos pequenos movimentos. Embora passe por grandes temas, como amizade, morte e luto, ganha força nas miudezas. Na ocasião, não poderia dizer que a escritora Susan Sontag, com sua prosa afiada e ritmo veloz, poderia ser a principal influência literária de Nunez. Foi só mais tarde que soube que as duas haviam sido amigas íntimas e que chegaram a viver no mesmo apartamento durante o período em que também foram sogra e nora: Nunez namorou por mais de dois anos o único filho de Sontag, David Rieff, no final dos anos 1970. Em um arranjo pouco convencional, os três dividiram o mesmo endereço, a festejada cobertura com vista para o rio Hudson, em Manhattan, Nova York, nos Estados Unidos. Por lá, passavam celebridades de diversos campos da cultura, num clima efervescente e badalado, como a vida social de Sontag costumava ser. Mais reclusa e silenciosa, Nunez tentou acompanhar o ritmo, entre fascinada e atordoada, até que decidiu alugar um apartamento para si mesma e se mudar dali.

Essa e outras informações biográficas de ambas as escritoras estão no livro Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag, escrito por Nunez e publicado em português recentemente pela Editora Instante, também com tradução de Fortino. Dela, a editora publicou ainda O que você está enfrentando e essas três obras têm em comum uma narradora que está às voltas tanto com o adoecimento (a depressão em O amigo e o câncer nos outros dois) como a mortalidade de pessoas queridas. Os ensaios de Sontag sobre temas afins se tornaram célebres no mundo todo: Doença como metáfora/AIDS e suas metáforas (tradução para o português de Paulo Henriques Britto e Rubens Figueiredo, Editora Companhia das Letras) são dois títulos que tiveram e continuam a ter ampla repercussão. Mas, para além da aproximação temática, a prosa de Nunez e de Sontag não poderiam ser mais diferentes. Ainda assim, que bonito constatar que existe um elo profundo entre elas.Que a influência possa se dar de uma maneira mais difusa e complexa.

Sempre Susan é um livro de memórias, uma elegia e um ensaio autobiográfico de Nunez mais do que uma biografia da própria Sontag. Se tomarmos o dito popular como referência, sabemos que se Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo. Ao falar de Sontag, Nunez acaba oferecendo também um rico retrato de si mesma e de sua formação como escritora. Seu livro é honesto, inclusive porque abarca contradições da própria autora, e a ambivalência dessa relação complexa.

No livro e também nas entrevistas que concede a respeito, Nunez faz questão de enfatizar que a ficção de Sontag, diferentemente dos ensaios, raras vezes lhe causou empolgação. Não teria sido propriamente os textos de Sontag que moldaram a sua própria jornada como escritora, mas, antes, o que se passava nos bastidores. A paixão pela leitura, as muitas referências bibliográficas que passou a conhecer por indicação de Sontag, as conversas sobre levar o ofício da escrita completamente a sério, como um trabalho muito mais do que uma vocação. Enquanto Nunez era uma jovem recém-formada de vinte e cinco anos, Sontag era uma autora consolidada, com um percurso admirável, no início de seus quarenta. Elas se conheceram quando Sontag se recuperava de uma mastectomia, consequência de um câncer de mama agressivo, e precisava de ajuda para colocar a correspondência em dia. Nunez, que trabalhava na New York Review of Books, da qual Sontag era colaboradora, foi indicada para ajudá-la.

Essa foi a pedra angular do que podemos chamar de amizade entre as duas, a amizade que levaria Nunez a conhecer o filho de Sontag e a se apaixonar por ele. Durante boa parte do relacionamento, os dois moraram com a mãe/sogra, que fazia questão de ter o filho por perto, embora se recusasse a exercer a maternidade de forma convencional. O filho a chamava apenas de Susan, “sempre Susan”, como no título do livro, nunca de mãe. A própria Sontag também teve como mãe uma figura improvável, que rende uma das imagens mais desconcertantes do livro: quando era mais nova e foi diagnosticada com anemia, a mãe lhe trazia um copo de sangue que pegava no açougue. Essa imagem de uma mulher-vampira, uma mulher-bruxa, não deixa de ser reafirmada em outros momentos do texto, de formas mais sutis.

Para quem não está familiarizado com a biografia de Sontag, pode parecer que Nunez faz um retrato nada lisonjeiro da escritora. Já entre quem conhece um pouco de sua vida, a obra tem sido descrita como uma espécie de defesa fervorosa dessa escritora e artista multitalentosa, que deixou contribuições também na fotografia e no cinema. Nunez apresenta um retrato que não soa apaixonado, mas, sim, uma aproximação profundamente humana de Sontag, que não é retratada nem como megera, nem como mártir, embora seja possível vislumbrar seu temperamento tempestuoso, bem como seu sofrimento persistente. Não se trata de mais uma narrativa simplificada de um gênio incompreendido. Embora Sontag tenha sido, à sua maneira, um pouco dos dois – uma pessoa genial e tantas vezes incompreendida.

Não deve ter sido fácil viver tantas vezes à sombra de uma força inspiradora e destrutiva como ela. Não deve ter sido fácil suportar a ironia, a invasão, a raiva, a condescendência, o sadismo. Ao ler o livro, ainda somos capazes de sentir o gosto amargo que essa relação teve e continua a ter para Nunez. De outro lado, há a admiração profunda, o reconhecimento, o carinho, e, por que não, também o amor que se estabeleceu entre elas. Nunez diz que, na ocasião da morte de Sontag, décadas depois, não leu os obituários publicados porque não se interessava pelo que as outras pessoas diziam sobre ela. Mas se contradiz logo em seguida e demonstra que, sim, acompanhava as críticas e encontrava nelas ora conforto e validação, ora incômodo e indignação.

Talvez Sempre Susan seja o mais longo e sincero obituário que alguém já escreveu sobre Sontag. Sem qualquer pretensão de objetividade, encharcado pela percepção e pela sensibilidade de Nunez, é um relato complexo e amoroso que não se apoia em clichês. A boa vontade da autora com Sontag é notável, mas isso não a impede de ver, nem de narrar, sem jogos psíquicos fáceis de desmontar, toda a sombra que também a acompanhava, a sombra que a própria Sontag projetava sobre sua luz. Longe de parecer apenas uma pessoa fascinante, para o bem e para o mal, a Sontag a que somos apresentados é uma pessoa que sofre, sofre, sofre. De diferentes maneiras, mas sempre. Fumando compulsivamente, dormindo pouco, usando medicamentos derivados de anfetamina para produzir mais e mais, se preocupando em excesso com a própria imagem, embora não se considerasse uma pessoa vaidosa, e sendo consumida por opiniões inflamadas, por desafetos e por ressentimentos, como o de não ver o seu trabalho sendo remunerado da forma que deveria.

Sontag se portava como mentora de Nunez, lhe apresentando inúmeras coisas novas, de obras literárias a filmes, de comidas a viagens. Mas nem sempre o fazia por generosidade, ao contrário. Se Nunez crescia com a “educação” oferecida, parece ter se sentido apequenada tantas vezes. Mas, diferentemente de Sontag, para quem seus ídolos precisavam se sustentar como deuses no Olimpo, Nunez consegue acomodar a ideia de que Sontag foi uma figura tão forte quanto frágil, tão encantadora quanto destrutiva, tão suscetível à beleza do mundo como absolutamente cruel.

Enquanto avançava na leitura, foi difícil não pensar na relação de amizade entre outras duas mulheres que escrevem, a relação entre Lila e Elena da tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Nunez seria um pouco como Elena Greco, a narradora: disciplinada, dedicada, servil – para usar uma das palavras favoritas de Sontag, segundo Nunez. Já Lila, a amiga brilhante que tanto inspira quanto intimida Elena, seria um pouco como Sontag: irascível, indomável, cortante. A influência que Lila exerce sobre a escrita de Elena, a narradora de Ferrante, é reforçada ao longo de 1.700 páginas. Perto ou longe, Lila é a faísca que mantém a escrita de Elena em movimento. Mas Nunez, como Elena, afinal não é tão servil assim. Por exemplo, não aceita as sugestões que Sontag faz a seus textos, mantendo-se firme em sua própria caminhada e impondo uma distância que a protege.

Essa relação ambivalente entre Elena e Lila se tornou emblemática quase que instantaneamente: embora tenha sido publicada há apenas uma década, entre 2011 e 2014, a história da literatura parecia ávida por essa referência, por um retrato complexo de uma amizade entre duas mulheres. Hoje, fica difícil ler ou reler qualquer outra história de amizade, verdadeira ou ficcional, e não tomá-la como mapa, como referência. Se podemos pensar em outros relatos, como o da amizade entre Simone de Beauvoir e Élisabeth Lacoin, a Zaza, que inspirou a escrita do romance As inseparáveis (Editora Record, 2021), também é verdade que a ambivalência tensionada por Ferrante, a opacidade com que a escritora italiana apresenta a relação das protagonistas, talvez esteja uma nota acima e ganhe contornos quase míticos.

Nunez, a seu modo delicado e calmo, com uma assertividade que se dá em outro compasso, oferece um retrato íntimo e multifacetado de sua mentora, amiga e ex-sogra, uma mulher inteligentíssima, ácida, irônica, provocativa. É difícil não se incomodar com a forma passiva-agressiva com que Sontag exercia poder sobre a narradora, mas é importante lembrar que agora é Nunez quem tem o poder: é ela a narradora do livro. Sontag não está mais aqui para oferecer a sua versão. O que podemos fazer, se o interesse for esse, é confrontar Sempre Susan, um livro de memórias alheias e próprias, com outros relatos biográficos de Sontag e assim ter uma panorama mais amplo.

Susan Sontag, sem dúvida, foi uma grande pensadora e continua iluminando as discussões contemporâneas sobre os mais diversos temas. As obras de Sigrid Nunez, mesmo as mais lidas e premiadas, têm um alcance consideravelmente menor. Mas é estimulante poder observar pela fresta desse livro como duas mentes brilhantes vêem e interagem com o mundo, cada qual à sua maneira, de forma mais humana do que exemplar. E é ainda mais estimulante estar em companhia de uma autora que conseguiu não se curvar nem se intimidar diante da potência que se forçava sobre ela e agora é capaz de escrever como alguém que mais observa do que julga. Coisa cada vez mais rara.

Se Sontag era uma pessoa que perseguia a beleza insistentemente, é verdade que também não sabia sequer o nome de uma libélula. Quando Nunez escreveu um conto em que uma libélula aparece, Sontag lhe perguntou se ela havia inventado o inseto. Alheia ao mundo natural, avessa à vagarosidade da vida fora das grandes cidades, quando Nunez tenta apresentar a libélula à mentora, descrevendo-a, Sontag rapidamente se entedia e se desinteressa. Não sei como seria o retrato de Nunez feito por Sontag, mas sei que o de Sontag feito por Nunez só consegue ser tão vibrante porque ela se interessa por cada pequena coisa a respeito da pessoa sobre quem está escrevendo.