Certo espectro do vampiro ronda um conjunto de experiências culturais feitas no Brasil a partir dos anos 1960, de Dalton Trevisan a Rita Lee e até Clarice Lispector − pois Macabéa, para quem a tia contava histórias de vampiros com intuito de castigá-la, se olha no espelho e não se vê. Em maior ou menor grau, nas várias linguagens artísticas e mesmo em programas televisivos (como “Bento Carneiro, o vampiro brasileiro”, personagem de Chico Anysio), ao longo de, pelo menos, uns vinte anos, a presença insistente de variados tipos vampirescos chama a atenção e faz pensar por que tantos escritores e outros artistas passaram a mobilizar tal figura para dizer algo da dinâmica do país, do lugar da arte ou de novas condições sensíveis ou existenciais.
A coincidência histórica com o período da ditadura militar, por um lado, não parece trivial. Um dos grandes estudiosos do Drácula de Bram Stoker, Leonard Wolf, diz que vampiros costumam aparecer, afinal, em qualquer lugar onde tenha sangue. Ou seja, o clima sombrio, noturno e de horror geral do período da ditadura talvez pudesse lembrar dos clássicos góticos, sendo Drácula a síntese mais perfeita do mal. A esse respeito, nota-se ainda que, nas lendas de vampiro, muito antes do romance de Stoker, o personagem era encarnado por Vlad III, ou Dracul, um perverso torturador do século XV.
Por outro lado, tal coincidência com o período da ditadura não explica tantas manifestações e pontos de vista tão díspares. Nesse sentido, a relação dos artistas com o imaginário em torno de Drácula pode ser mais ambígua e complexa do que parece à primeira vista, oscilando entre a repulsa, o deboche, a atração e o fascínio. A imagem de Drácula é múltipla e causa interesse por diferentes motivos. Em certos momentos, como nas obras de Trevisan e do poeta Sebastião Uchoa Leite, a figura do vampiro vai além da mera tematização ou do assunto, e chega a se consolidar como figura-chave de um programa literário − “minha real Penélope era Drácula”, vai dizer Uchoa Leite no poema Duas visitas, que remonta, segundo as evidências, a um diálogo do poeta com Ana Cristina Cesar a respeito de seu black book, o livro Antilogia (1979), que contém uma série de poemas vampirescos.
O projeto se estende ao livro seguinte, Isso não é aquilo (1982), que conta com poemas que fazem referências diretas ao vampiro, a exemplo de Complainte de Nosferatu: “sou o pele pálida/ o espalha-ratos/ com unhas e dentes/ isto é:/ o que não é”. A crítica Viviana Bosi (USP) propõe que, no caso de Sebastião, definido como “poeta-vampiro”, os dejetos serão o alimento de sua poesia, “que se dirige a nós com hostilidade”. Flora Süssekind, por sua vez, chama a atenção para o procedimento parasitário de Uchoa Leite, cuja poesia sobrevive do sangue alheio − o que se nota, por exemplo, em seu forte caráter citacional, mas também na temática do crime. Nessa chave de leitura, a visita que faz à casa de Ana Cristina Cesar em Duas visitas poderia ser interpretada também, alegoricamente, como uma cena vampiresca.
Mas até mesmo nas menções mais circunstanciais, a exemplo do que ocorre em A hora da estrela (1977), o vampiro chega a mostrar as suas asas, ao sugerir, nesse caso, uma importante característica da personagem Macabéa − a invisibilidade, oriunda da dificuldade do reconhecimento de sua imagem no espelho − e que vai além da mera coincidência histórica. Diz o narrador de Clarice: “Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com a sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma”. Meses antes, Clarice havia entregado à sua editora a tradução que fez de Entrevista com o vampiro, da autora estadunidense Anne Rice, que estreava então na literatura.
DA TRANSILVÂNIA A TREVISAN
O vampiro de Curitiba (1965), de Trevisan, ocupa lugar de relevo nesta galeria − que conta ainda com vampiros que se espalham, no mesmo período, pelos filmes de Ivan Cardoso, pela célebre canção de Jorge Mautner, Vampiro, e em poemas de Maria Lúcia Alvim e até Carlos Drummond de Andrade, como se verá. No caso de Trevisan, a figura vampiresca não apenas se apresenta como chave de leitura crucial para toda a obra do autor, mas também porque o livro em questão inaugura uma abordagem do vampiro que prepondera depois no Brasil − a abordagem paródica, que adapta o tipo gótico aos jeitos nacionais, dando uma boa avacalhada no conde da Transilvânia.
Barbara A. Bannon, crítica literária estadunidense, ao se referir ao livro de Trevisan, chegou a falar de um estilo “ironicamente gótico”. Outro leitor da sua obra, José Luiz Matias, saiu com este trocadilho em artigo sobre o tema que resume a questão a seu modo: tal vampiro seria de tipo trevisânico, não mais transilvânico. Nelsinho, o vampiro trevisânico, tipo de “galã barato”, anda pelas ruas de Curitiba, às vezes de ônibus, em pleno horário do rush, usando calça e camisa de mangas curtas (no máximo um paletó, “para bem impressionar”). Se vê um botequim, entra para beber uns conhaques, e no meio de um gole e outro se admira “de relance no espelho” − o oposto de Macabéa, portanto, além de um contrassenso total se tratando de um vampiro, como ele próprio reconhece: “desde quando se reflete a imagem do nosferatu?”
Mas em seus desejos, e sobretudo em sua repelência, o personagem de Nelsinho (tratado às vezes como “herói”, outra ironia) também guarda algo de Drácula, por exemplo ao imaginar uma mulher que assedia pendurada de cabeça para baixo, “esvaída em sangue”, pois afinal − ele filosofa: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro”. Como Drácula, Nelsinho persegue mulheres pelas ruas em busca de sangue − em seu caso, pelas ruas da capital paranaense, onde procura não só sangue, mas principalmente sexo.
A crítica Berta Waldman, pesquisadora que mais se dedicou à obra de Trevisan, argumenta que os seus personagens, forjados no espetáculo ridículo do cotidiano, são também como vampiros na medida em que reduzem o outro − as mulheres − a objetos de consumo. É o que ocorre também com o Drácula de Bram Stoker, que vive da morte (do sangue) do outro, mas por diferentes meios e sob outras condições. No caso da ficção de Trevisan, Waldman chega a falar de uma espécie de “discurso-vampiro”, que se afirma reproduzindo outros clichês, por exemplo nas figuras do “cafajeste” e do “malandro”, estereótipos da masculinidade nacional. Seria possível pensar, nesse caso, em um (anti)ritual antropofágico, ou uma antropofagia de sinais trocados: afinal na antropofagia devora-se o outro para se modificar, por meio de um profundo interesse na alteridade; já na mordida do vampiro, suga-se o sangue alheio para permanecer igual, e para tornar o outro mais do mesmo.
A paródia do vampiro, ou mesmo a avacalhação com a figura aristocrática do conde, que se adapta e se modifica em solo brasileiro, tem novas consequências em nosso audiovisual. Dois casos exemplares, mas não os únicos, são Nosferato no Brasil (1971) do cineasta underground Ivan Cardoso − no qual Torquato Neto faz o papel do vampiro, em imagem do poeta que se tornou conhecida − e o personagem humorístico “Bento Carneiro, o vampiro brasileiro”, de Chico Anysio, que foi altamente popular na televisão ao longo dos anos 1980.
MAIS DOIS VAMPIROS BRASILEIROS
No filme de Ivan Cardoso, cujo vampiro toma água de coco nas areias de Copacabana vestido de capa vermelha e sunga, o clima de terror dá lugar ao “terrir”, terror para rir, segundo a feliz expressão de Haroldo de Campos sobre a obra do cineasta. Filmado de dia, é como se o excesso de sol − nossa “tropical melancolia”, diria Torquato em Marginália II − funcionasse como um antídoto ao clima sombrio do país, e uma antítese ao próprio gênero gótico. Sendo o vampiro mortal pela incidência solar, Ivan Cardoso buscou na poesia uma luz, e explicou ao espectador logo no início do filme, por meio de uma legenda-piada: “Onde se vê dia, veja-se noite”. Filmado em super-8, era impossível rodar cenas noturnas... ou seja, Nosferato no Brasil − desde o título que acentua um outro lugar para as experiências do vampiro − parece parodiar não apenas o personagem de Stoker, mas grande parte da tradição cinematográfica que se dedicou a representar o Drácula com ares fidalgos, da filmagem expressionista de F. W. Murnau (1922) até as produções estreladas por Bela Lugosi (1931) e Christopher Lee (1958) − ao todo, dizem os especialistas, são mais de duzentas adaptações.
Já Bento Carneiro, o vampiro de Chico Anysio, “aquele que vem do aquém e do além e donde tiver os morto”, é palhaçada total: com sotaque caipira, procura assustar os “desinfeliz” com sua presença “macabra” − ou “malígrina”, como costumava dizer − mas a verdade é que ele não coloca medo em quase ninguém. Para começar, Bento Carneiro fala muito, ao contrário do Drácula, que se define mais pelo silêncio. Diz que tem superpoderes (“se eu querer é só embalançar a minha capa”) mas vira motivo de chacota mesmo entre os mais mortais: “você com essa vassoura na mão está mais parecendo uma bruxa aposentada”, dizem na sua cara. Preguiçoso, prefere sair andando do que desaparecer. Quando voa, é confundido com urubus e helicópteros. Com a série de Chico Anysio, entramos com tudo nos anos 1980, e as histórias de vampiro − seriadas, outra vez repetidas, vilipendiadas − se repetem como piada de mau gosto.
VAMPIRO É SEXO
No final dos anos 1970, duas composições de artistas mulheres convocam a presença do vampiro dirigindo-se a ele em tom sexual, mas também ambíguo. Em A rosa malvada (1980), livro de Maria Lúcia Alvim, encontra-se Nosferatu, poema publicado quase ao mesmo tempo da célebre canção de Rita Lee, Doce vampiro (1979). Em ambos os casos, e nisso as letras se parecem, o vampiro se apresenta como uma figura essencialmente erótica, aspecto amplamente explorado nos clássicos cinematográficos e crucial também no livro de Stoker − a ponto de um crítico, Daniel Farson, classificar Drácula como um dos romances mais eróticos de toda a literatura inglesa.
No poema de Alvim, Nosferatu é descrito em dois pequenos versos, mas que dão conta do fascínio que causa: “Olho de vidro, dente de espada,/ sopro de guerreiro afeito à noite”. Ele é enigmático, vigoroso e, de certo modo, virtuoso também (um “guerreiro”). Já na canção de Rita Lee, as virtudes do vampiro são resumidas na sua pretensa doçura que aparece desde o título, o que não deixa de surpreender, levando-se em conta o histórico desfavorável do personagem. Mas se trata, nas duas composições, de um erotismo com tintas trágicas, ligado à morte, como já havia ocorrido com a canção de Mautner (“Eu cantando do teu lado a morrer”). Ou brinda-se a morte − e o sangue é servido como licor − ou se derrama “um jeito de morrer”. Em poema do mesmo período, Pequena estética, Sebastião Uchoa Leite faz associação semelhante entre amor e morte, mas com chave irônica: “mas a morte/ é tão metafórica/ e sexy/ é tesão certa”, diz o poeta.
Difícil saber se Alvim conhecia a música de Rita Lee ao escrever o poema que, apesar de tais semelhanças com a canção, apresenta também um forte contraponto em relação a ela: se a cantora clama e deseja pela chegada do vampiro, no poema a vinda de Nosferatu já aconteceu, e foi mais para amarga (“Não era bem isso que eu queria,/ no entanto, ele veio”). De certo modo, as duas letras representam as vozes das duas heroínas do livro de Stoker, meio vampiras também, e que se comunicam com Drácula “por telepatia”: Lucy reivindica para as mulheres maior liberdade, inclusive sexual, daí que não tenha bom destino dentro da moral puritana do romance; já Mina é mais sóbria e circunspecta (mais vitoriana, portanto).
No caso de Rita Lee, ela ainda chega a citar, de modo direto, cenas específicas do romance, como o fato de que o vampiro não entrava em nenhuma casa se não fosse convidado (“vou abrir a porta/ pra você entrar”). Ou ainda a comunicação telepática que Drácula estabelecia com as suas vítimas, como foi dito, que a cantora explora não só em letra (“a gente faz amor/ por telepatia”, versos de Mania de você) mas também em suas performances, quando costumava manipular um teremim antes do canto para invocar o vampiro (instrumento que produz sons estranhos e que se toca sem contato físico).
Há ainda no período muitas outras ocorrências de vampiros, às vezes esdrúxulas, que são prova cabal, pelo conjunto, da extrema popularidade do personagem naqueles anos: o vampiro dá as caras em canções meio trashs, como Vampiro doidão, atribuída às vezes a Raul Seixas mas feita, na verdade, por Tukley Ganzert, e também em um rock de Jô Soares, Vampiro (1963), composto e cantado por ele próprio; em filmes da pornochanchada, como As taras do mini-vampiro (1987), estrelado por Chumbinho; em uma obra visual engraçada de Pedro Escosteguy, O vampiro de rabo preso (1968); em poema-quadrinho de Tavinho Paes, do livro Hamburguer do coração (1975), no qual um homem pergunta a uma interlocutora em letras garrafais: “Você acredita em vampiros?” Não se sabe a resposta, pero que los hay, los hay...