Ilustra Artigo GGAlbuquerque VitorFugita

“O que que faz na quarentena?”, nos pergunta Adriana Calcanhotto, com voz séria e monocórdica fazendo passinhos robóticos sobre uma batida funk de Dennis DJ. Na sala branca da sua casa, iluminada por luzes coloridas piscantes e com uma bandeira do Brasil estendida ao fundo, ela encara a câmera fixamente com seus olhos azuis arregalados. E responde à própria pergunta:

Senta/ Senta/ Senta/ Senta/ [...] Senta a bunda/ Senta a bunda/ Senta a bunda/ [...] Senta a bunda e estuda/ Senta a bunda e estuda/ [...] Senta a bunda e lê, lê/ Senta a bunda e vai à luta.

“Para Adriana, o ato de sentar pode transformar o país”, escreve Igor de Albuquerque ao analisar, em Modos de sentar — texto vencedor do concurso de ensaísmo da revista Serrote —, a deserotização da sentada proposta pela cantora. Mas, afinal, por que deserotizar nossas demandas políticas? Por que o estudo e a luta estariam dissociados da energia erótica?

No clipe de Parabéns piranha (tu agora tá formada), Tati Quebra Barraco é uma professora que incentiva a quebra de uma placa de “proibido dançar” instalada numa universidade. Assim, Tati segue um caminho contrário ao tom imperativo de Calcanhotto e nos encaminha a um conhecimento que é avivado pelas capacidades da sentada. Em vez de castração, a luta política torna-se desejante e a revolução tem o calor do erótico como seu principal catalisador:

Parabéns, piranha, tu agora tá formada/ Continua estudando mas não esquece da sentada/ [...] Piranha formada com diploma na mão/ Piranhas doutoradas farão revolução.

“Nós, professoras e professores, raramente falamos do prazer de eros ou do erótico em nossas salas de aula”, escreveu bell hooks. Como uma colega de sala da funkeira carioca da Cidade de Deus, a norte-americana faz uma análise (auto)crítica do eros e erotismo no processo pedagógico. “Treinadas no contexto filosófico do dualismo metafísico ocidental, muitas de nós aceitamos a noção de que há uma separação entre o corpo e a mente. Ao acreditar nisso, os professores entram na sala de aula para ensinar como se apenas a mente estivesse presente, e não o corpo. Chamar atenção para o corpo é trair o legado de repressão e de negação que nos tem sido passado por nossos antecessores na profissão docente, os quais têm sido, geralmente, brancos e homens. Mas nossos antecessores docentes não brancos se mostraram igualmente ansiosos por negar o corpo. As faculdades predominantemente negras sempre foram um bastião da repressão. O mundo público da aprendizagem institucional é um lugar onde o corpo tem de ser anulado, tem que passar despercebido”.[nota1]

O que hooks e Quebra Barraco nos mostram é que, mais do que um discurso moralista qualquer, a persistência em admoestar o rebolado funk, educar para transformá-lo na “bunda lê lê” que vai à luta por uma suposta pátria nacional revela uma atualização da tentativa de controle biopolítico do corpo negro. Enjaular os movimentos e os passinhos escuros, enquanto Nego do Borel e o DJ Rennan da Penha faziam o Baile da Gaiola, no Rio de Janeiro, cantar, todos os fins de semana: Me solta, porra.

Pode chegar, pode chegar/ Que a festa vai começar/ Sabe aonde você tá?/ Naquele lugar que tu ouviu falar/ Aonde tu senta, aonde tu sobe, aonde tu desce, aonde tu rebola/ Sabe aonde você tá?/ É no Baile da Gaiola/ Aaaaai, me solta, porra!// Deixa eu dançar, deixa eu dançar, deixa eu dançar [...]/ Aaaaai, me solta, porra!

Do funk ao pagodão, passando pelo trap e brega funk, as musicalidades periféricas do Brasil consolidaram um novo imaginário popular sobre a sentada, que efetivamente passou do ato de repousar as nádegas para o movimento sexual. Mas o erotismo que orbita o sentar — bem como sua associação íntima com a mulher negra — está longe de ser novo.

No conto A cadeirinha (1898), o mineiro Afonso Arinos fantasia sobre as sentadas recebidas por uma “cadeirinha azul, forrada de damasco cor de ouro velho”. O escritor excita-se imaginando “as cadeirinhas conduzidas por lacaios de libré, onde as moçoilas e as damas de outrora se faziam delicadamente transportar”. Mas o seu tesão é cortado instantaneamente quando a imaginação o tira das imagens das sinhás carregadas pelos escravizados e o lembra das pretas que “profanaram” o assento: “Alguma mulata velha e alentada, apreciadora da mecha ou do rolão, a refocilar-se na cadeirinha, espalhando a toucinheira das nádegas num dos assentos fronteiriços”.

A racialização da sexualidade e a sexualização do racial foram dispositivos constituintes da colonialidade e do mundo conceitual branco. E se por um lado as culturas musicais negro-periféricas envolvem imaginários e arquétipos sexuais do racismo, o sentido mais profundo desse vocabulário da putaria não está exatamente nos arquétipos, mas sim nos usos criativos que se faz deles. É comum ver, por exemplo, a sexualização do corpo negro ser positivada como poder racializado: “Elas gostam do preto porque o preto faz direito”, gaba-se o baiano O Poeta. “Tu se amarra na pretinha”, canta confiante a MC Rebecca. E onde L7nnon passa, escuta os gemidos de “ai, preto”. Para Osmundo Pinho, existe nas periferias um vínculo entre o antirracismo e a objetificação que dá as condições de uma versão vernácula do antirracismo. A sexualidade e o erótico tornam-se canais de expressão poéticos de um poder que irradia para além do sexual.

“Essa porra aqui/ Não é Tiktok/ Isso é baile funk/ Senta senta e fode fode” — a voz rasgada dos MCs Xangai e Bicho Solto estabelecem uma demarcação: em oposição à lógica algorítmica e dos modelos estabelecidos repetitivamente pelas trends em nossas linhas do tempo, o baile funk é o ambiente — físico e símbolo — de liberação. É deixar as correntes elétricas do desejo passarem embrazadas pelo corpo inteiro.

Então vem MC Naninha e anuncia: “Me separei, porra! Tô solteira agora! Aqui no baile de favela eu vou sentar na tua piroca!”. Mais que um hino de boas-vindas à farra e devassidão da solteirice, Naninha parece cantar de uma forma que faz da sua sentada uma arma. Uma arma sua — e só sua. A vibração de suas cordas vocais ao soltar o grito rouco do refrão encarna um tesão vigoroso, autoafirmativo e autocentrado que é capaz de concretizar o impensável. O seu rugido faz tremer também a nós, que sentimos sua voz perfurante. A MC Mari também alimenta a sentada como um dispositivo particular de sua própria força: “Você vai levar uma sentada!”, canta ela com voz gutural em um beat que soa como uma cascata de socos. Em ambos os casos, o tom envolvente e lúdico da sedução funkeira passa longe. Suas vozes parecem tirar da garganta uma força ardente e desconhecida, ainda sem nome, que é movida apenas por uma autodeterminação e uma vontade de colocá-la para fora. Acima de tudo, um poder que está contido nelas.

Em É por isso que sofre, Tati Quebra Barraco — ela de novo, a mamãe da putaria — retorna e aconselha: “Homem é para sentar/ vocês, vocês querem amar”. Os versos lembram outros hits recentes: Não pode se apaixonar e Sentada desapegada. Na primeira, a MC Danny alerta a Xand Avião: “A Danny senta com carinho/ só não pode se apaixonar”. Na segunda, Felipe Amorim e Nattan, dois expoentes do novo forró e piseiro, puxam os versos: “Eu me apaixonei pela mulher certa/ Que gosta da putaria, que gosta do que não presta/ A sociedade tá mal acostumada/ Tem mulher que quer amor, mas a minha só quer botada”. Entra, então, MC Mari, enfatizando sílaba por sílaba: “É só sentada sem amor sentada que não vale nada/ Sen-ta-da de-sa-pe-ga-da”.

Apesar de rondar o mesmo imaginário, as músicas possuem nuances diferentes. Enquanto Danny, Nattan, Felipe e Mari celebram o desapego em si, dentro de um prazer festivo, a música de Tati parece acionar outras coisas mais. Em Sentada desapegada, o sentar fala da/constitui a mulher — é ela que “gosta do que não presta” e que “só quer botada”. Em Por isso que sofre, ao contrário, a sentada é a ferramenta que transforma o homem no objeto — invertendo o que eles mesmos, em muitas outras músicas, gabam-se de ter feito com as mulheres. No filme Suzume (2022), do diretor Makoto Shinkai, uma maldição transforma o mocinho em uma cadeira (sugestivamente, uma cadeira três pernas). Na música de Tati, os caras são propositalmente transformados em cadeiras. Homem é pra sentar.

Em Sentadona, Davi Kneip, MC Frog e o DJ Gabriel do Borel versam sobre aquela que, eles supõem, é a mulher antítese da sentada desapegada. E portanto, aquela que eles (acreditam) que será iludida pelos seus dotes e sua malandragem:

Diz que o coração é gelado/ E que nunca emocionou/ Mas todos que ela senta essa mina apaixonou/ Quer dar golpe em bandido, logo eu experiente/ Em menos de duas semanas ela se iludiu com a gente.

Luísa Sonza interrompe a conversa contando uma outra versão da história em sentaDONA (Remix) s2, feita em parceria com os meninos — “Não fica preocupado se chamei de namorado/ É que contando com você eu acho que tenho mais uns vinte”:

Onde eu quico/ Onde eu sento/ Eles me pedem em casamento/ Coração da mãe é grande, eu não tô perdendo tempo// Sentadona, sentadona, sen-ta-do-na/ Fala que é sem sentimento/ Mas quando eu sento apaixona.

Na voz de Luísa, a sentada serve de contranarrativa ao discurso masculino de dominação (pelo afeto) e superioridade (pela ausência dele, o “coração de gelo”). Invertendo a perspectiva, ela nos coloca no seu ponto de vista para exaltar aquela força rascante que arde nas vozes de MC Naninha e MC Mari, destacando os poderes que estão dentro de si. É uma intenção que parece escapar dos modos de sentar de Pipoco, o funknejo de Ana Castela com Melody e DJ Chris no Beat:

Nós tá embaçada/ Na galopada/ Nem oito segundo’/ O peão não aguenta com essa sentada [...]/ Meu beijo vai te viciar/ Minha pegada vai fazer você gamar/ Debaixo do meu chapéu não vai mais sair/ Eu sou o combo perfeito pra iludir.

Enquanto Luísa Sonza aborda uma espécie de soberania de si e consciência independente (como enfatiza com o “DONA” em caixa alta no título da música), para Ana Castela e Melody a sentada aparenta ser direcionada, sobretudo, ao homem e à conquista dele. É mais um recurso para seduzir e laçar o peão do que a celebração de suas próprias potencialidades. O poder erótico afasta-se de sua potência de autoconexão, do gozo que se sabe capaz de sentir (como descreveu Audre Lorde) e é reificado enquanto artifício para viciar e fazer gamar o peão, mantido sob controle debaixo da aba do chapéu delas.

Nestes contrastes sutis talvez residam os impasses políticos da disseminação indiscriminada do sentar na música atual: uma captura do poder erótico libertador construído coletivamente pelas culturas musicais das periferias brasileiras, deturpado e usado como via de reafirmação das hierarquias de gênero. Sabendo que o capitalismo encontrou e encontrará formas de transformar o “empoderamento” em commodity, podemos nos perguntar: em que contexto a sentada é meio de subversão que expande as possibilidades de experimentação e de sexualidade e em que situação (e para quem) ela voltará a reiterar os papéis de gênero?

Nestes embates, as mulheres negras adotaram o corpo e o movimento como um campo de batalha prazeroso. Uma luta contínua que desata tabus a partir da afirmação dos seus modos de sentar. Funkeira, dançarina e pesquisadora, Taísa Machado ressalta que “a ciência milenar de mexer com os quadris” vai das perspectivas ancestrais até a música contemporânea e exerceu papel fundamental na construção da liberdade e transformação das relações. “Aquelas meninas desenvolveram danças que mudaram o jeito de transar das pessoas. E ninguém considera aquilo um saber”, diz ela em entrevista no livro Afrofunk: A ciência do rebolado. 

Um vislumbre dessa transformação foi exibido em horário nobre, em plena TV Globo. A novela Páginas da vida, em 2006, encerrava seus capítulos com depoimentos de uma pessoa real, anônima, contando uma história relacionada ao episódio do dia. Em um deles, uma idosa negra, aos 68 anos, contou como só experimentou um orgasmo aos 45. “Eu fiquei dos meus 14 aos meus 45 anos sem saber o que era isso. Para mim era tudo normal: o homem terminava, eu terminava também”, diz ela, com leveza, mas também seriedade. “Só que aos 45 anos eu ganhei um LP do Roberto Carlos que tinha a música O côncavo e o convexo. Então eu botei na vitrola e fui dormir. E simplesmente, gente, quando eu acordei eu estava com a perna suspensa e a calcinha na mão e toda babada. Aí foi que eu comecei a comentar com as amigas, aí falou assim: ‘Poxa, você gozou!’. Aí foi que eu vim saber o que era o gozo. Aí moral da história: eu sou uma pessoa com 68 anos que o homem pra mim não faz falta”. Certas lutas só são possíveis sentando.

 

NOTA

[nota1] Trecho do ensaio Eros, erotismo e o processo pedagógico, em tradução de Tomaz Tadeu. Publicado em: Guacira L. Louro (org.), O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.