Hallina Beltrão

 

Até o advento da axé-music, no final dos anos 1970, o Recife e o Rio de Janeiro eram as únicas cidades brasileiras cujos carnavais possuíam música própria. No caso do segundo, a marchinha e o samba. No Recife, o frevo em suas três nuances, de rua, canção e de bloco (este somente surgido nos anos 1920), e o maracatu-canção, sobretudo nos anos 1930 e 1940. A diferença entre estas músicas não estava apenas no andamento ou na roupagem, mas no tema das letras.

Enquanto a marchinha carioca, com as exceções de praxe, primavam pela crônica de costumes, de badalados acontecimentos recentes, caprichando no jocoso e no bom humor; o frevo mantinha em suas letras, também com as exceções naturais, algo das antigas modinhas e do cancioneiro popular. Focando a análise nos versos do mais popular, e mais prolífico autor de frevos, Lourenço da Fonseca Barbosa, Capiba, que quase nunca resvalam para o universo que não o do coração do autor, cheio de amores, em sua maioria, malsucedidos. Bastaria mudar o compasso de um frevo-canção, como Casinha pequenina, para ele se tornar uma modinha, apropriada para ser acompanhada por violões plangentes (adjetivo muito em voga nos anos 1930).

Não é exagero afirmar que a maioria dos frevos-canção de Capiba são de uma melancolia e tristeza paradoxais para a festa que pretendem animar. Mais paradoxal ainda sabendo-se que Capiba foi um folião incorrigível até o final da vida, amante da noite, que na juventude costumava ir direto da farra (ou orgia, como então se dizia) para o Banco do Brasil, onde trabalhou até a aposentadoria. O primeiro grande sucesso dele, É de amargar, vencedor de um concurso de músicas carnavalescas em 1934, é duplamente triste. Primeiro, porque composto sob o impacto da morte prematura do Sebastião, ou Tantão, o irmão mais velho. Segundo, pela própria letra, que disfarça a dor da perda do parente, em uma desilusão amorosa: “Eu bem sabia/ que esse amor um dia/também tinha seu fim/esta vida é mesmo assim/não pense que estou triste/nem que vou chorar/eu vou cair no frevo/que é de amargar”. Um outro clássico, de 1936, segue pela mesma vereda do coração despedaçado, Manda embora esta tristeza: “Manda embora esta tristeza/manda, por favor/ pode ser que esta tristeza/ mate o nosso amor”. Obviamente, ao longo de sua longeva carreira, de centenas de composições não direcionadas à folia, ele teve canções engraçadas, alegres, mas seus grandes sucessos, praticamente todos, destilam uma tristeza atávica, mas também intrínseca à índole do próprio Capiba. O irmão dele, Marambá (José Mariano Barbosa), foi compositor bem-sucedido e de frevos-canção com espírito de marchinhas cariocas, entre muitas outras: Criado com vó, Jacaré comprou cadeira, Tire a mão do meu baú ou O balaio da Maria.

Mesmo em composições de Capiba aparentemente alegres descobre-se uma ponta de tristeza em uma de suas estrofes. É o caso de Modelos de verão: ‘Quanta mulher bonita tem aqui neste salão/parece até desfile de modelo de verão/até a viuvinha do artista James Dean... hoje a coisa está pra mim”. No arremate, a confissão da solidão nos versos finais: “...tanta mulher bonita/e minha mãe sem nora”. Oh bela!, um de seus últimos sucessos (de 1970), tem na derradeira estrofe um verbo que frequenta muito a sua música, “chorar’: “...todo mundo se amando/uns sorrindo, outros chorando/ de amor”.

Chorar está da obscura O carro de boi, gravada por Dircinha e Linda Baptista,em 1953 (não é canção carnavalesca), até os citados sucessos É de amargar, Manda embora esta tristeza, Quando se vai um amor (“Há tanta gente que chora/ quando um amor vai deixar, ai, ai/ por um amor eu não choro/ prefiro sempre cantar”), Gosto de te ver cantando (Gosto de te ver querida/ cantando, cantando/ deixa de levar a vida/chorando, chorando”), Júlia (“Ô Júlia, ô Júlia, ô Júlia/o que é que a Júlia tem/a Júlia quando chora/ tem saudade do seu bem”), Não sei o que fazer (“Não sei o que fazer/pra meu amor se consolar/ eu não sei o que fazer/ pra meu amor
não chorar”).

Há várias outras composições em que ele emprega o mesmo verbo para desenganos sentimentais. Uma obsessão temática que só encontra paralelo no gaúcho Lupicínio Rodrigues, cujos amores nas canções também nunca davam certo. Ambos são personagens singulares da MPB, e caminham em direções contrárias. O desfecho das paixões malsucedidas na obra de Lupicínio é passional, feito um tango argentino, clama por vendeta o tempo inteiro. Nada de perdão, mas castigo, sempre, para a ingrata que o abandonou, e aqui o melhor exemplo é Vingança: “Eu não quero mais nada/só vingança, vingança, vingança/aos santos clamar/ela há de rolar como as pedras/que rolam na estrada/sem ter nunca um cantinho de seu/pra poder descansar”. Na música de Capiba há uma aceitação franciscana aos amores desfeitos. Na belíssima Quando se vai um amor, ele escreveu: “Quando se vai um amor/desses que a gente quer bem/a gente espera, seu moço/até que um dia ele vem”. Filosofia que é escancarada em um dos seus poucos sucessos nacionais, e uma de suas canções mais perfeitas, Serenata suburbana. Mais confessional, impossível: “Levo a vida em serenata /somente a cantar/ quem não me conhece /tem a impressão/de que eu sou tão feliz... /mas não é isso não, não../. se eu canto em serenata é para  não chorar /ninguém sabe a dor que eu sinto dentro de mim/ ninguém sabe por que eu vivo tão triste assim/ se eu fosse realmente muito feliz/ não chorava quando canto/ nem cantava para abafar meu pranto”.


José Teles é crítico de música.

 

LEIA MAIS:
Escolha: ele vai pro trono ou não vai?, por Diego Raphael
Um moderno revelado, por Sueli Cavendish