Recentemente, temos visto um verdadeiro ‘tsunami’ de obras de e sobre Lima Barreto nas livrarias. Tá, pode não ser um ‘tsunami’, mas também não é uma ‘marolinha’. Seja como for, a pergunta que não quer calar é: por quê? Todos nós sabemos e reconhecemos a importância da obra desse ‘ilustre escritor brasileiro’, como se poderia dizer em outros tempos – sobretudo quando o assunto é vestibular e semelhantes –, mas, de toda forma, nos perguntamos: por quê?
Não é de interesse deste artigo responder a essa pergunta, mas refletir, correta ou incorretamente, sobre ela. E, claro, fazer com que o leitor reflita também. Dessa forma, reflitamos juntos.
Conhecemos Lima Barreto. Desde a nossa adolescência somos, a princípio, obrigados a lê-lo. Do ponto de vista comercial isso é ótimo, afinal de contas, as editoras têm mercado suficiente para vender seus luxuosos ou populares volumes. Do ponto de vista intelectual, a rigor, é uma catástrofe, simplesmente porque ainda não estamos preparados para saborear, seja de que ponto de vista for, a obra barreteana. Conclusão? Odeia-se Lima Barreto. E o pior: isso se arrasta por um longo período, chegando – se se chega – ao terceiro grau.
Mas, poder-se-ia alegar, isso não ocorre apenas com Lima Barreto. Outros ‘ilustres escritores brasileiros’ padecem do mesmo mal. Sim, é verdade, mas não custa lembrar que este artigo é sobre Lima Barreto, e apenas sobre ele falaremos. Ou não, na medida em que, quando pensamos em Lima Barreto, é quase impossível não lembrar do Ilmo. Senhor Machado de Assis.
Os motivos são muitos e variados, mas aqui colocarei apenas um: o próprio Lima Barreto trata de se diferenciar estética e ideologicamente de Machado, quando o ataca abertamente, acusando-o de se esquivar da ‘causa negra’, se assim podemos chamar. Contudo, sabemos que o assim chamado ‘Bruxo do Cosme Velho’ afirmava, ora explícita, ora implicitamente, que o que lhe interessava era a observação da conduta humana, excluída de raças e classes. Lima Barreto discordava. Assumiu, ao contrário de Machado, se nos é permitido dizer, a sua condição – ou identidade – de “podre” e de negro. Quer uma prova, uma só? Tenha coragem e leia Clara dos Anjos. Compare-o com um Memórias póstumas ou com um Dom Casmurro e tire a prova dos nove por si mesmo.
Talvez por isso – não se esqueça de que estamos refletindo e que, portanto, esta não é uma afirmativa conclusiva e inquestionável – Machado de Assis tenha, pouco a pouco, se afirmado num espaço que caberia, também, a Lima Barreto. No entanto, como todos sabemos, isso não ocorreu. Machado atraiu, seja por qual motivo for, a ‘crítica internacional’, que se debruçou sobre a sua obra, analisou-a, analisou-a e analisou-a. Tradutores se empenharam em vertê-lo para as suas línguas nativas – inglês, francês e outras. E assim Machado foi ganhando terreno, até que o polêmico Harold Bloom o inseriu entre os ‘gênios’ da literatura mundial. Pronto, o Brasil finalmente tinha um escritor do porte de um Tolstói, de um Shakespeare, de um Dante.
Críticos nacionais, com isso, se alvoroçaram. Artigos, monografias, dissertações e teses sobre Machado pulularam, suas obras foram relançadas em diversos formatos, inclusive em áudio, até que no centenário da morte desse bruxo que não é Paulo Coelho – ufa! – ninguém mais aguentava ouvir falar de Machado de Assis. Assim como ocorre com autores canonizados, não gostar de Machado de Assis é ignorância, é não compreender as nuances de sua literatura etc. Estar – ou ser – canonizado é não ser discutido. É ser aceito e ponto final.
Aí voltamos a Lima Barreto, coitado, que viu o seu ‘rival literário’ – cremos que Harold Bloom gostaria desse termo – sobrelevar-se às nuvens, enquanto ele, o ‘pobre’ Lima Barreto, era mais e mais esquecido – menos pelos vestibulandos. Até que... voilà, eis que Lima Barreto volta com força total e invade as prateleiras das livrarias, sem, aparentemente, nenhuma motivo que o justifique. É aqui que cabe a pergunta que fizemos no início deste artigo: por quê? Será que estão tentando, de alguma forma, canonizá-lo? Ou melhor: forçar uma canonização? Afinal, como se diz por aí em outras palavras, um santo só não faz milagre.
Seja por qual motivo for, o que nos resta é comemorar essa ‘ressurreição’ barreteana – se é que é, de fato, uma ressurreição. Embora comparações como a que farei a seguir não sejam lá muito eficientes, Lima Barreto está para a prosa como Augusto dos Anjos está para a poesia. São ambos ‘autores de transição’. Aliás, contemporâneos. Escritores que tiveram a coragem de se arriscar, ideológica e estilisticamente falando, embora, de resto, se distanciem enormemente.
Esquecendo, então, Augusto dos Anjos, e concentrando as nossas atenções em Lima Barreto, voltamos a afirmar que essa ‘ressurreição’ é motivo de alegria. Sim, porque Lima Barreto, ao contrário de seu desafeto, sempre esteve próximo, inclusive linguisticamente, dos párias, dos boêmios, dos pobres, dos arruinados. Isso nos faz lembrar, quase automaticamente, de Dostoiévski, embora não devamos, por motivos óbvios, nos aprofundar nesse ponto. E é essa diversidade de estilos, de pontos de vista, que enriquece uma literatura.
O fato é que Lima Barreto é um grande escritor. E, como todo grande escritor, tem seus momentos de fraqueza. Não é nosso papel apontar quais momentos de fraqueza são esses, mas, acredite, eles existem.
E se este é um momento propício para se ler Lima Barreto, cremos que um bom início para aqueles que o querem saborear verdadeiramente sem compará-lo com Machado de Assis é começar pelos contos. Para isso há uma bela edição dos Contos completos de Lima Barreto, organizada e prefaciada por Lilia Moritz Schwarcz, publicada pela Cia. Das Letras. Tai uma boa razão para gastar aquele dinheirinho que juntamos mensalmente para comprar livros.
A edição não vale apenas pela ‘beleza’ – que, como Kant nos ensina, é, dentre outras coisas, subjetiva –, mas naturalmente pelo que contém. São mais de 700 páginas do melhor e do pior de Lima Barreto, o que não deixa de ser interessante, seja para o leitor de primeiro, seja para o leitor de segundo nível. Afinal, é sempre interessante observar a oscilação natural dos grandes escritores.
Outro título que vale a pena conferir é Diário do hospício e O cemitério dos vivos, publicado pela Cosac Naify. A primeira parte do volume, Diário do hospício, é um dos melhores momentos de Lima Barreto, ironicamente um texto não ficcional. Trata-se, em breves palavras, de uma espécie de documentário literário da internação do autor no Hospício Nacional dos Alienados, entre dezembro de 1919 e fevereiro de 1920 – porque sim, Lima Barreto foi internado num hospício, o que não deixa de ser um privilégio nestes tempos em que ser ‘louco’ e ‘marginal’ é cool.
O segundo texto, O cemitério dos vivos, também aborda a loucura, já não do ponto de vista documental, mas ficcional. Infelizmente o romance não foi concluído por Lima Barreto, porque a experiência por ele vivida no hospício se faz presente nesta peça excepcional. Se, com essas duas dicas, aquele dinheirinho guardado no final do mês não for suficiente, escolha um deles, a seu gosto. Mas não se esqueça: você pode estar lendo o próximo santo da literatura brasileira. Ou não.
Diego Raphael é doutor em teoria literária.
Os livros
Diário do hospício e o cemitério dos vivos
Editora Cosac Naify
Páginas 352
Preço R$ 55
Contos completos de Lima Barreto
Editora Companhia das Letras
Páginas 720
Preço R$ 48