Ilustração site RobertoPiva WEB

Este ensaio faz parte de Morda meu coração na esquina, que sai pela Companhia das Letras com a organização de Alcir Pécora, reunindo a obra completa de Roberto Piva, e com textos críticos de Claudio Willer, Eliane Robert Moraes e Davi Arrigucci Jr. O texto foi publicado originalmente em Mala na mão & asas pretas, da Editora Globo.

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Tudo é noite na poesia de Roberto Piva. Tudo é noite na paisagem estranha e febril que seus poemas deixam entrever, e é também da noite que tudo nasce, fazendo a vida brotar com inesperado vigor, como no poema inicial de Abra os olhos & diga Ah!: “no útero da maçã/ tudo começa/ a anoitecer/ cheio de energia”.

Já em Paranoia a ênfase do poeta nos cenários noturnos supõe uma forte recusa do mundo emblemático do dia, marcado pela racionalidade do capital e pela rotina do trabalho, em função de um mergulho vertiginoso em domínios mais sombrios, onde predomina o caos. “Visão de São Paulo à noite”, por exemplo (também apresentado como “Poema Antropófago Sob Narcótico”), propõe um roteiro psicodélico pelo centro da capital paulistana, vasculhando o “corpo das praças” nas madrugadas para revelar um labirinto obscuro, onde qualquer tentativa de orientação acaba por ceder aos imperativos da desordem. Uma tal opção pela noite, reino da instabilidade, não se resume porém à descrição da paisagem, estendendo-se à disposição interior do eu lírico: “a lua não se apoia em nada/ eu não me apoio em nada”.

Convém lembrar, contudo, que esse estado flutuante, em que tudo se rende ao provisório, indispondo o sujeito a vínculos, jamais se confunde com a solidão. Apesar de misteriosos, os cenários noturnos de Piva pouco têm em comum com as noites funestas evocadas pelos artistas românticos, muitas vezes vividas por personagens solitários, perdidos em meio a uma natureza erma, silenciosa e melancólica. Assim, ainda que o poeta se reconheça como herdeiro da linhagem maldita do romantismo, as paisagens de seus poemas exalam uma agitação e um burburinho que raramente se encontram em seus inspiradores. Nessa poesia pulsante, a escuridão é sempre repleta de acontecimentos, pessoas, objetos, barulhos, e por vezes até mesmo ostensivamente iluminada.

É a noite mundana das boates, dos comércios escusos, das galerias suspeitas, dos bares abarrotados de gente anônima, das saunas de subúrbio, dos lascivos mictórios públicos e sobretudo das calçadas urbanas, onde se cruzam bêbados, artistas, poetas, putas, michês e outros seres estranhos à luz do dia. São todos eles, como se lê ainda em Paranoia, “corpos encerrados pela Noite”, cuja existência por si só reitera a negação da ordem diurna. Não estranha, portanto, que esse cenário libertino inspire ao autor uma eloquente saudação a Sade, talvez o mais noturno dos escritores, evocado como antídoto à “desolação cotidiana”: “A noite é nossa Cidadão/ Marquês, com esporas de gelatina pastéis de esperma &/ vinhos raros onde saberemos localizar o tremor a sarabanda/ de cometas o suspiro da carne” (“Porno-samba para o Marquês de Sade”, em Coxas).

Enfático apelo aos sentidos, como ocorre em quase toda a produção do poeta, que aproxima de forma inequívoca a vida noturna à potência original do sexo. É o que supõe o poema inicial de Abra os olhos & diga Ah!, citado acima, ao associar o útero da maçã a um anoitecer “cheio de energia”, sugerindo a eclosão de uma força vital que tem origem no centro secreto de cada ser. Ou o que sugere o autor em “Bar Cazzo d’Oro” (em Coxas), valendo-se do insólito título de um livro de Thomas de Quincey para dar a dimensão do impacto que lhe causa uma prosaica cena de bar carregada de sensualidade: “O adolescente estava sentado na mesinha com a maçã encravada no meio. De l’assassinat considerée comme une des beaux-arts”.

Trata-se, portanto, de uma energia que pulsa dentro do corpo, mas com tamanha intensidade que, uma vez liberada, termina por contaminar a paisagem inteira. Trata-se, em suma, de um impulso sexual que, insaciável, promove a contínua erotização do mundo, reiterando sem cessar o mote da lascívia e da devassidão, como nestes breves versos de Quizumba: “garoto bêbado chupando o pau do travesti/ Santa Cecília by night” (“Chovia no teu coração de merda”). A noite, aqui, é invariavelmente sinônimo de sexo.

 

Tudo é sexo na poesia de Piva. Mesmo as cenas diurnas, transcorridas na mais intensa claridade, são fortemente marcadas por essa atmosfera marginal e libidinosa, a atestar a prevalência da noite até sob a luz do sol. Coxas, por exemplo, se inicia com um longo poema (“Os escorpiões do sol”) que descreve um encontro erótico entre dois homens no coração da metrópole paulistana. A dicção seca, sem rodeios, a rigor mais próxima da prosa do que da poesia, cria um intervalo entre fundo e forma que contribui para acentuar a estranheza do encontro:

O adolescente ajoelhou-se abriu a braguilha da calça de
Pólen & começou a chupar.
Eram 4 horas da tarde do mês de junho & o sol batia no
topo do Edifício Copan suas rajadas paulistanas onde Pólen
& Luizinho foram fazer amor & tomar vinho.
[…] Você é minha
putinha, disse Pólen. Isso, gritou Luizinho, gosto de ser
chamado de putinha, puto, viado, bichinha, viadinho ah
acho que vou gozar todo o esperma do Universo!
Nesse instante um helicóptero do Citibank se aproximava
pedindo pouso & os dois nem ligaram continuando com
suas blasfêmias eróticas heroicas & assassinas.
O guarda que estava no helicóptero então mirou & abriu fogo.
Luizinho ficou morto lá no topo do Edifício Copan com uma
bala no coração.
Por onde é preciso começar?


Se a saga erótica de Pólen, que o leitor acompanha ao longo do livro, tem sua origem em uma situação a um só tempo lasciva e sinistra, isso acontece justamente porque nela o éthos noturno se vê em absoluto confronto com as determinações do mundo diurno. Ao contrapor a lógica implacável do poder financeiro, próprio do dia a dia da metrópole, à ousadia juvenil do par homossexual que em plena tarde de verão sobe ao topo de um edifício para “fazer amor & tomar vinho”, os versos de Coxas reiteram a opção do autor pela via da transgressão, cuja sintonia com o ideário da contracultura já foi muitas vezes assinalada.[nota1]

A volúpia subversiva do amor homoerótico ocupa, assim, o centro dessa poética, sempre evocada como um antídoto contra todo tipo de aparato repressivo, seja do capital, da Igreja católica, dos guardiões dos bons costumes ou de qualquer outra instância de sujeição da libido. Não é por outra razão que a figura do garoto sensual surge em tal contexto como a encarnação da liberdade, da beleza e da própria poesia.

A noite pertence aos garotos e eles estão por toda parte.[nota2] Basta percorrer as páginas de qualquer livro de Piva para encontrá-los aos montes, como se pode confirmar num breve exame dos títulos publicados neste volume. Seja o “pequeno deus” ou simplesmente o “garoto pornógrafo” de Abra os olhos & diga Ah! (iniciado aliás pela epígrafe de Lautréamont declarando amor aos “pálidos adolescentes”), seja o “petit moreno amante” exaltado em Coxas ou então o “garoto canalha” de Quizumba, seja ainda o prosaico “adolescente da lavanderia” ou um dos “garotos-filósofos de Platão” cantados em 20 poemas com brócoli — a evocação do amante-menino é onipresente nesse imaginário de forte apelo sexual, que se constrói sempre “à sombra/ das cuequinhas em flor” (em Abra os olhos & diga Ah!).

A meio caminho entre a inocência da infância e a vida erotizada do adulto, a adolescência é muitas vezes representada como a porta de entrada na sexualidade, tendo no horizonte um caminho ainda a ser definido. Com efeito, os garotos que povoam a poesia de Piva parecem realmente viver numa espécie de limbo que lhes outorga a possibilidade de assumir qualquer papel, a começar por aqueles ditados pela própria língua: esses “muchachos ragazzi garçons boys garotos com vaselinas-antenas” (“Norte/Sul”, em Coxas), travestidos de anjos, de michês ou de bandidos, podem realmente encarnar qualquer fantasia. Daí que sejam eles os objetos privilegiados dos inesgotáveis devaneios sexuais do poeta.

Mas, ao lado da celebração do homoerotismo, a obsessão pelo garoto deixa transparecer também uma utopia temporal, traduzida na idealização da adolescência como idade de ouro. Tal sonho de permanência no tempo juvenil — como se fosse possível capturar o que é por definição passageiro — pode até mesmo estar na origem de uma certa ideia de redenção pela pederastia, bastante recorrente nessa obra. Seja como for, tudo acontece como se o contato carnal com os “pequenos deuses” garantisse ao sujeito lírico uma juventude eterna, libertando-o das agruras impostas pela passagem do tempo. Entende-se então o motivo mais profundo da erotização contínua do mundo que marca a literatura de Piva, já que ela promete a renovação incessante do desejo e, com isso, a permanência do poeta nos domínios dionisíacos da adolescência.

Esboça-se aí a fantasia de um tempo eterno, no qual se instaura uma orgia louca e interminável, a reverberar na noite lasciva e absurda que cintila na paisagem sensível — mesmo depois do raiar do dia. Eterna e cíclica, essa temporalidade fundada no sexo promove sem cessar o retorno a um presente que só responde ao princípio do prazer e, por isso mesmo, já não se inscreve na história nem na própria duração temporal: “o relógio que bate as paixões delira” (“Bar Cazzo d’Oro”).

 


Embora imaginada fora do tempo, a vida lúbrica ao lado dos belos garotos tem uma localização espacial bem precisa. É sempre a cidade — ou, melhor, a metrópole — que oferece ao poeta oportunidades infinitas de multiplicar e variar seu moto perpétuo do desregramento, abrindo-lhe as portas da surpresa. A agitação urbana provoca continuamente sua imaginação, incitando-o a inventar nexos novos e insólitos entre os seres e as coisas com que cruza em seus giros noturnos, para criar uma mitologia própria na qual o erotismo se compromete por completo com a sensibilidade cosmopolita.

Nesse sentido, a disposição lírica de Piva pode muito bem ser considerada uma atualização daquele “état de surprise” que para Apollinaire definia o espírito do artista moderno que flanava a esmo pela cidade.[nota3] Não por acaso, um dos poemas de Piazzas (“Lá fora, quando o vento espera…”) é introduzido ao leitor com uma epígrafe do escritor francês — “Une nuit de sorcellerie/ Comme cette nuit-ci” — que se vale igualmente da metáfora noturna para realçar a disposição sensível de um sujeito aberto aos convites da rua. Como que oferecendo uma descrição da insólita noitada à qual alude Apollinaire, os versos do poeta paulistano propõem:


O coração gelado do pavão na noite
                         ouvindo estrelas
no vazio de um grande piano
                         não me surpreendendo agora
o sorriso de sua doce anatomia
                                     as pernas quentes no meio da rua
todo o meu rosto deslizando em lágrimas no espelho
o negro animal do amor morreu de fome nos acordes
                         finais de um peito nebuloso
não outra vez
                                     loiros fantasmas
fornicando em meu olho

Como se pode perceber, a “noite de bruxaria” insinuada pela epígrafe reveste-se aqui de uma tonalidade manifestamente urbana, uma vez que a cidade é o pano de fundo da cena lúbrica: “as pernas quentes no meio da rua”. O olhar do poeta para o mundo assume, dessa forma, várias perspectivas ao mesmo tempo: de um lado, mostra-se poroso e até mesmo integrado ao espaço público que se conforma à sua volta; de outro, enfatiza as sensações corporais de uma experiência lasciva, particularizada em detalhes sensíveis, como “o sorriso de sua doce anatomia”. A essas duas camadas soma-se ainda uma terceira, bastante recorrente em sua literatura, que opera no sentido de amplificar a intensidade do ato erótico para predispor o sujeito lírico ao delírio: “loiros fantasmas/ fornicando em meu olho”.

Com efeito, um dos traços distintivos da obra de Piva é o olhar multifacetado, a instaurar uma visão de mundo a um só tempo social, erótica e delirante. Cumpre notar que o autor se vale justamente da alternância vertiginosa entre esses planos, muitas vezes desdobrada em sucessivas justaposições, para criar um forte efeito de tensão, típico de sua poética. Em razão disso, a vitalidade, a inquietação, o burburinho, e até mesmo um certo tumulto que seus versos manifestam com frequência, não se devem apenas aos temas recorrentes da devassidão cosmopolita, mas sobretudo ao notável pacto entre fundo e forma que estrutura a sua impetuosa lírica.

Mas a reunião dessas três dimensões tão distintas, que supõe uma equação bastante complexa na sensibilidade contemporânea, também denuncia o desafio estético enfrentado por Piva. Afinal, nos dias de hoje já não parece possível sustentar um discurso poético que se volte simultaneamente para as necessidades prementes do coletivo, para as inesgotáveis demandas do desejo e para as derivas sem fim da alucinação. Ou, colocando o problema em outros termos: atualmente, como pode um escritor estabelecer relações sensíveis entre uma tradição revolucionária de fundo libertário, o legado libertino de Sade e a herança visionária de Rimbaud sem se apresentar como um anacrônico repetidor das fórmulas surrealistas?

De difícil resposta, essa pergunta dá a dimensão dos riscos aos quais se expõe o autor, ao mesmo tempo que abre caminho para que se percebam os traços singulares de sua literatura. Assim, ainda que haja uma forte inspiração surrealista na escrita de Piva, sua voz poética sempre se particulariza quando comparada à matriz francesa, a começar pelo efetivo abrasileiramento do imaginário surreal que ela deixa transparecer. Não bastasse isso, seria preciso aludir à vocação “anarcomonarquista” declarada pelo poeta, em franca oposição às simpatias de Breton e seus companheiros pelo marxismo, sem esquecer ainda o diferencial do homoerotismo, rejeitado de forma categórica pelos idealizadores do movimento. Antes de tudo, porém, é no projeto de levar à exaustão uma demanda de radicalidade em todos esses planos que sua dicção própria ganha evidência, conferindo-lhe um lugar único também na paisagem literária do Brasil contemporâneo.

Dito de outra forma: embora aqui e acolá a obra de Piva expresse um certo conteúdo programático, bastante afinado com os arroubos libertários que marcaram os jovens da sua geração, sua tomada de partido pela anarquia acaba por prevalecer sobre a militância ideológica, instaurando um generoso espaço para a experiência da errância e o conhecimento da desordem: “eu não me apoio em nada”. Nesse estado flutuante, a sensibilidade inquieta do autor vasculha a lascívia das ruas e das alcovas para então submetê-la ao incansável trabalho da alucinação, apostando no excesso como o único meio capaz de dar conta de uma vertigem que é a um só tempo erótica, estética e existencial.

Escrita insensata, que insiste sem cessar nas próprias obsessões, reiterando o mote transgressivo para deixar a descoberto o princípio de subversão que une definitivamente o sexo à poesia. Escrita arriscada, sobretudo para quem decidiu abraçá-la como tarefa de uma vida inteira, já que a imaginação do excesso não conhece repouso, demandando mais e mais de seus demiurgos. É sempre noite na poesia de Roberto Piva, e o poeta permanece desperto, em constante vigília.

NOTAS

[nota1] Cf., por exemplo, João Silvério Trevisan, “A arte de transgredir (uma introdução a Roberto Piva)”. In: Id., Pedaço de mim. Rio de Janeiro: Record, 2002; Felipe Fortuna, “Roberto Piva: Pivô da anarquia”. Jornal do Brasil, suplemento “Ideias”, 24 jan. 1987; Claudio Willer, “Piazzas de Roberto Piva: Fruição, contemplação e o misticismo do corpo”. Agulha — Revista de Cultura, Fortaleza; São Paulo, n. 40, ago. 2004.

[nota2]Para um desenvolvimento do tema, ver Marcelo Coelho, “Solidão e êxtase”. Folha de S.Paulo, caderno “Mais!”, 22 mar. 1998.

[nota3] “A surpresa”, diz Apollinaire em 1917, “é o maior motivo novo. É pela surpresa, pelo espaço que concede à surpresa, que o espírito novo se distingue de todos os movimentos artísticos e literários que o precederam” (Guillaume Apollinaire, “L’Esprit nouveau et les poètes”. In: Id., Oeuvres en prose complètes. Paris: Gallimard, 1991, t. ii , p. 951).