Noé Jitrik Secretaria De Cultura.Wikicommons jan.23

 

No último dia 6 de outubro, em Pereira, na Colômbia – para onde havia viajado com a intenção de proferir uma série de conferências –, morreu o escritor, poeta, professor e crítico argentino Noé Jitrik (1928-2022). Com 94 anos vividos, Jitrik deixa uma obra tão volumosa como representativa para a literatura argentina e latino-americana. Da sua prolífica caneta saíram várias das mais páginas mais lúcidas do continente, em uma produção incessante e diversa que percorreu décadas e gêneros: da célebre revista argentina Contorno, ainda nos anos 1950, às últimas páginas de ensaio e ficção publicadas nos primeiros anos do século XXI, passando pelo que de mais agudo a crítica literária do seu país pôde receber na segunda metade do século passado.

Nascido em Rivera, pequena cidade fundada por imigrantes judeus quase na divisa entre as províncias de La Pampa e Buenos Aires, Jitrik ensinou literatura nas universidades de Córdoba, Buenos Aires, Cidade do México e na França; pôde articular o pensamento político – marcadamente de esquerda – com a leitura e a interpretação do texto literário; foi o autor de – entre dezenas de títulos – estudos sobre as obras de Horacio Quiroga, Domingo F. Sarmiento e José Hernández; dedicou-se a entender as diferentes etapas do processo da escrita (em Los grados de la escritura), a vanguarda da ficção latino-americana (La vibración del presente), o funcionamento da poesia mexicana (El balcón barroco); foi, desde os anos 1960, o companheiro da também escritora e ensaísta argentina Tununa Mercado, com quem dividiu não só a experiência da literatura como a do exílio.

Jitrik dedicou-se aos textos fundadores da literatura nacional como aos seus contemporâneos: escreveu ensaios luminosos a respeito das obras de Juan José Saer (que lhe dedicaria o romance Nadie nada nunca), Roberto Arlt e Jorge Luis Borges. Mais do que nada, encontrou uma forma e uma dicção que driblavam a fronteira dos gêneros literários; em cada texto de Jitrik, há uma voz de consistência particular, marca pessoal que provoca no leitor uma identificação quase imediata. “A sua escrita de serpenteante sintaxe esquiva a compartimentação: os ensaios, mesmo os mais acadêmicos, se organizam narrativamente e buscam as imagens; a poesia e a prosa de ficção têm um tom reflexivo que as aproximam, por momentos, aos modos do ensaio e da teoria literária; nos livros de memórias, publicados nos últimos anos, proustianamente a reflexão se impõe sobre a evocação de um episódio”, escreveu o pesquisador uruguaio Pablo Rocca a respeito do estilo do autor de Muerte y resurrección de Facundo.

A obra de Noé Jitrik é um manancial de volume espantoso, torrente que permite distintos e múltiplos caminhos de entrada e saída: aqui, busca-se levar adiante uma leitura breve de algumas ocorrências da prosa de ficção e da poesia do autor – no último caso, das que remontam aos inícios da obra.

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De tão fértil produção, a obra narrativa de Noé Jitrik parece escapar a aproximações críticas como as que buscam encontrar um centro, determinada obra ou texto que reuniria as principais preocupações – temáticas, estéticas, estilísticas – de um conjunto ficcional. Sendo de fato assim, também se pode dizer que há determinados pontos, no meio desse longuíssimo caminho de escritura, que parecem oferecer possibilidades de condensação ou de magnetismo; para ali convergiriam algumas constantes, reiterações, imagens comuns a várias etapas da trajetória. Pode ser o caso, penso, de Destrucción del edifício de la lógica, novela curta que o autor publica em 2009, quando o acúmulo da sua ficção já alcançava a sexta década.

Destrucción... aparece como um caso raríssimo (de rara felicidade, vale dizer) de novela breve em que o prazer do texto e a autonomia narrativa dividem espaço, quase que de igual para igual, com a mais aguda articulação dos processos de construção do que se narra e a inteligência que se volta para o fazer da própria literatura. Se, em determinado momento da sua produção (ao escrever sobre a obra de Ricardo Piglia, que delimitaria não em oposição a Borges ou a Roberto Arlt, mas como que se posicionando de maneira crítica em determinada esquina), Noé Jitrik afirma que a literatura argentina do seu tempo poderia se situar mais além da busca por um realismo orientado apenas pelo imediato ou pela composição literária que descarta o real e suas estruturas, na novela aqui mencionada essa ideia aparece trabalhada na prática, ainda que seja movida pelo impulso mais espontâneo. Em Jitrik, a atenção permanente ao funcionamento do texto não exclui o encantamento da narração, o prazer da escrita e da leitura.

A novela, é certo, se funda e se bifurca a partir da graça da linguagem: Escalante, um professor de filosofia recentemente demitido da instituição em que dava aulas, vê-se na rua, em um café do bairro portenho de Balvanera (Malvanera, na ficção do autor), quando irrompe uma série de personagens – todos com nomes que começam com a partícula Esca, como Escalona, Escasany, Escalada, Escalera etc. – que o arrastam para alguns dos espaços do bairro. Surgem, então, um hotel de mala muerte, uma casa abandonada ou ocupada, o retorno ao café ou às calçadas que assistem, de uma manhã ao crepúsculo, visto que o texto dura o que dura um único dia, a um desfile de repetições e de episódios contraditórios. Ao fundo, como uma música insistente, mas que não se completa, estão os ruídos da trama política ou da conspiração: Escalante reflete sobre uma frase de Juan Domingo Perón, observa uma passeata que atravessa a rua e não deixa rastros, vê-se às voltas de um suposto crime, é indagado por duvidosas forças policiais – que precipitam o desfecho da narração.

Carregada de estímulos e de ramificações incessantes, a novela de Jitrik não abandona a velocidade de uma prosa repleta de minúsculos acontecimentos: ocorrências produzidas por uma inteligência risonha e crítica e não pela ânsia dos enredos, como não poderia deixar de ser quando escritas por um escritor que, ainda que imerso no trabalho da ficção, nunca deixaria de ser o crítico que perscruta os movimentos do texto, da interpretação, da produção dos sentidos. Novela policial, novela voltada à linguagem, estranha homenagem a um bairro de Buenos Aires, seja como for, Destrucción del edifício de la lógica carrega em suas páginas breves (que se encerram em um par de horas de leitura) muito do que movia Jitrik em seu duradouro espanto de pesquisador e leitor.

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O conjunto poético de Noé Jitrik, em comparação com os escritos direcionados à crítica ou à narrativa, aparece como relativamente breve e delimitado às primeiras décadas de produção do autor – dos anos 1950 aos 1970, em sua maior parte; e é justamente no âmbito da poesia que tem lugar uma das suas primeiras publicações, o poemário intitulado Feriados que Jitrik lançou à luz em 1956, sob a edição do grupo Contorno, em cujas fileiras participava ativamente à época. Contorno reunia, nos anos 1950, intelectuais que levaram adiante a paradigmática revista de mesmo nome, dedicada à articulação da política com a crítica literária, e buscava estender-se também no ramo editorial – publicaria, naqueles anos, poemas de Ismael Viñas e romances do irmão David Viñas, além da estreia de Jitrik na poesia, ao menos na poesia que encontra sua publicação.

Feriados seria assim apresentado por Ismael Viñas, que assina a orelha da singela edição: “quando Jitrik começou a ler estes poemas, um de nós escreveu uma longa carta que começava assim: tudo isso tinha um ar de regresso, de descobrimento e de posse, meu velho. Relidos, voltamos a nos encontrar em Feriados: uma lenta, um tanto desoladora lucidez, empenhada em reconhecer, em lembrar, com reminiscências que parecem presságios. Uma Buenos Aires reencontrada, que poderia ser qualquer outra cidade, mas que é essa, talvez apenas porque nela vivemos. Essa cidade que é, em definitivo, igual a todas, a não ser porque nela inventamos nosso idioma e fazemos todas essas coisas que significam viver. Isso, e não a geografia: os gestos, o desenho que deixam os desejos, a melancolia”.

Jitrik, que não escolheria nenhum dos poemas de Feriados para uma seleção da sua poesia que preparou em 2012 (quando afirmaria ainda não dispor de nenhum exemplar daquele já muito antigo livro), qualificou a sua primeira poesia de “urbana e confessional”. Era a “poesia do descobrimento da cidade, descobrimento da solidão, descobrimento da experiência que se faz poesia, em um gesto bastante conhecido e do qual me custou me afastar”, descreveu. Como escreveu Viñas, a cidade era a cidade de Buenos Aires, e a solidão e a experiência também se davam em seu registro urbano. A poesia do primeiro Jitrik, entretanto, em nada se aproxima do verso que aponta para a cor local, os costumes, a cidade perdida, os bairros atordoados pela modernização e o crescimento da urbe; importavam, ao contrário, as dobras do lugar, a cidade insone, as fugas dos solitários, as tardes suspensas de um domingo, um desejo de despedidas. A tentativa parece ser a de levar à construção poética o indizível de um anseio, de uma espera ou de uma culpa.

Em Domingos, poema que abre Feriados, lemos: “vas por una calle cualquiera,/ por Lima Oeste junto a los trenes/ o por Entre Ríos vas bajando afiebrado./ en más de un café de los populares/ ves hombres tentados por la aventura/ pero amarrados no se sueltan de las mesas” e, ainda no mesmo poema (neste livro de estreia, os poemas podem ocupar várias páginas), “dejarías atrás los callejones y el hogar/ para sollozar desde lejos su amor por Buenos Aires”. Buenos Aires não desapareceria da poesia futura, mas sua nomeação deixaria de se mostrar tão reiterada; ganhariam espaço, depois, os vislumbres do exílio ou da viagem demasiado longa, como na interrogação que move o poema intitulado Otra vez: “qué hago aquí/ tocando/ el piso/ pisando/ el suelo/ este suelo/ dramático/ aquí/ en un ómnibus/ que empuja/ adentro/ hacia adentro/ trágico/ más adentro/ ¿echará raíces/ mi corazón?/ ¿se cansará/ mi corazón?/ ¿en este suelo/ bajo este cielo?”.